terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Kirill, Putin e a perda da Ucrânia

(Kirill no seu discurso de 10 anos como Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa.)

          Neste 1º de fevereiro, o Patriarca Kirill celebrou seus 10 anos à frente da Igreja Ortodoxa Russa. O evento de comemoração foi realizado no Palácio do Estado no Kremlin de Moscou na presença de Vladimir Putin, presidente da Rússia, Igor Dodon, presidente da Moldávia, e autoridades políticas e religiosas.

          Em seu discurso, Kirill afirmou que os dois grandes desafios do cristianismo nos dias de hoje são a reintegração da Igreja na sociedade, cobrindo o hiato entre ambos e reintroduzindo nas pessoas os valores defendidos pela fé cristã, e a pretensa autoridade absoluta da ciência, que propõe o progresso técnico às custas de princípios éticos e a disseminação do transhumanismo, filosofia que aposta no "melhoramento" da natureza humana. Boa parte de seu discurso foi dedicado a estes temas.

          No início de sua explanação, porém, o Patriarca deu atenção à situação da Ucrânia. Afirmou que a estrutura da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (sem citá-la diretamente), oficializada no último dia 5 de janeiro, consistia numa "estrutura de pseudo-igreja formada por cismáticos". Responsabilizou as autoridades ucranianas e o Patriarcado de Constantinopla pela intrusão no território canônico da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou, e o governo de Kiev de discriminar os fiéis russos, tomar suas igrejas e incentivar o ódio inter-religioso. 

          As declarações sobre a Ucrânia repetiram a acusação de perseguição aos ortodoxos da Igreja Russa pelo governo ucraniano que Kirill divulgou numa carta enviada em 14 de dezembro de 2018 a diversas lideranças políticas e religiosas do mundo, como o Papa Francisco, o Arcebispo de Canterbury Justin Welby, o líder do Conselho Mundial de Igrejas Olav Fyske Tveit, o secretário-geral da ONU Antonio Guterres, Angela Merkel, Emmanuel Macron, entre outros.

          A presença de Putin e Dodon (aliado do presidente russo) na comemoração de sua entronização, o tema político e a carta aos líderes civis e religiosos mostram a atuação política de Kirill em temas nacionais e estrangeiros. Kirill é muito mais do que "apenas" o líder religioso da Igreja Ortodoxa Russa. Ele é também o disseminador de ideias que são compartilhadas pelo Estado russo, com quem trabalha em consonância.

(Discurso de Putin. Palácio do Estado no Kremlin lotado.)

          Antes do Patriarca, Vladimir Putin fez um discurso de aproximadamente dez minutos. Parabenizou Kirill pela data, elogiou seu trabalho e exaltou as ações da Igreja Ortodoxa Russa em diversos campos da sociedade, tanto dentro como fora do país, estabelecendo relações com outros povos e igrejas. Foi aí que Putin lembrou a questão da Ucrânia, fazendo afirmações incisivas e condenando duramente o que considerou como uma "parasitação" da vida religiosa do país pelo governo de Kiev, cujo projeto "não é relacionado à fé, mas a uma falsa fé". Ele foi mais duro ao comparar a ação de Kiev que, em abril, através do Parlamento, pediu a criação de uma Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala, aceita em 11 de outubro por Constantinopla, aos bolcheviques, que perseguiram, controlaram e mataram quase a totalidade dos religiosos ortodoxos na antiga URSS, principalmente entre 1918 e 1939.

"Em essência, há uma grosseira interferência na vida da Igreja. Seus iniciadores pareciam ter aprendido com os sem-Deus do último século, que expulsaram os fiéis das igrejas e envenenaram e perseguiram o clero."

          A frase foi seguida por aplausos do público.

          O presidente afirmou que as autoridades russas jamais aceitarão a interferência do Estado nos assuntos da Igreja, principalmente no exterior, e que "se reservam o direito de reagir e fazer tudo para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião".

          A Constituição da Rússia de 1993 garante a separação Igreja-Estado (Artigo 14) desde a efetiva separação realizada pela Lei sobre Liberdade de Consciência e Associações Religiosas assinada em 1º de outubro de 1990 por Mikhail Gorbachev e reafirmada em nova lei em 26 de setembro de 1997, onde reconhece o papel especial no país da Igreja Ortodoxa Russa e dá reconhecimento especial ao islam, o judaísmo e o budismo, as chamadas "religiões tradicionais".

          A liberdade religiosa, porém, tem sofrido restrições na Rússia, principalmente após a introdução de uma série de emendas às leis de combate ao terrorismo conhecida como Lei Yarovaya, aprovada em 24 de junho de 2016. Sob pretexto de combate ao extremismo, a lei dificultou o registro, a posse de propriedades e a ação missionária de grupos religiosos, principalmente das religiões consideradas "não tradicionais" e que se recusam a se registrar oficialmente junto ao Estado. Os grupos mais afetados foram minorias cristãs e religiões orientais. Uma das consequências mais visíveis foi o banimento do Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia em 20 de abril de 2017. Todas suas instalações passaram às mãos do Estado e as atividades religiosas foram proibidas. Cristãos batistas também foram perseguidos, e até há poucos meses havia em torno de vinte de seus membros na cadeia. Apesar de ser grandemente privilegiada por majoritária, ser considerada uma das religiões tradicionais e gozar de acordos com instituições públicas como universidades, alguns religiosos da Igreja Ortodoxa Russa têm reclamado das restrições imposta pelo governo a grupos minoritários.

          As acusações de Putin sobre o governo de Kiev também servem à região de Donbass numa guerra promovida por combatentes pró-Rússia com apoio de Moscou. Há diversas denúncias de violação da liberdade religiosa, inclusive com o assassinato de quatro religiosos protestantes, como apontou um documento da organização IPHR da Bélgica em parceria com a CCL da Ucrânia ainda em abril de 2015. Essas perseguições são promovidas por batalhões como A Legião Mais Gloriosa do Don, formado por cossacos autoproclamados defensores da fé ortodoxa, e o Exército Ortodoxo Russo, liderado pelo principal combatente russo, Igor Strelkov. Alguns religiosos e sacerdotes da Igreja Russa, ainda que não em sua maioria, têm dado apoio a esses combatentes. A Ucrânia seria o único país do mundo onde há conflito armado de cristãos contra cristãos.

(Da esquerda para a direita: Igor Dodon, Kirill e Putin.)

          Há especulações de como Putin reagirá à perda do território canônico da Ucrânia. Alguns analistas consideram que o Kremlin poderia reagir militarmente no sentido de dar novo fôlego à guerra no país vizinho. Neste contexto, a crise do Estreito de Kerch poderia ser uma isca para desencadear uma nova ação militar.

          Em 22 de dezembro, cinco dias após o Concílio da Unificação em Kiev escolher Epifânio como líder da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana, o Patriarca Kirill afirmou que a Igreja Russa deveria analisar a possibilidade de uma nova concordata com o Estado russo no sentido de aprofundar a cooperação entre as partes; deveria repensar sua ação em prol da unidade da Ortodoxia, rompida em 15 de outubro, e buscar no Vaticano um aliado neste sentido (e, dada a postura de Francisco, a Igreja Católica fará o possível para não desagradar Moscou em nome do diálogo ecumênico); e deverá trabalhar para expandir sua influência no exterior. Estas diretrizes apontam diretamente para a necessidade de reverter a perda territorial na Ucrânia, o prestígio da Igreja na Ortodoxia e da Rússia no cenário mundial.

          Conforme Yuri Ruban, alto funcionário do Gabinete Presidencial do governo de Kiev, Kirill pretende ir à Ucrânia e visitar Pechersk Lavra (Monastério das Cavernas), um dos grandes centros espirituais do mundo ortodoxo e onde, segundo a carta de 14 de dezembro, as autoridades ucranianas estariam tentando privar seu uso por monges da Igreja Russa. A viagem teria como objetivo, entre outras coisas, apoiar os candidatos pró-Rússia à presidência do país, cuja eleição será em 31 de março. Para Yuri, o Kremlin está usando a fé para influenciar politicamente os eleitores ucranianos.

          Mesmo que Kirill vá à Ucrânia sem qualquer pretensão política, sua simples presença exigiria um enorme esquema de segurança e uma complicada negociação entre dois países cujas relações pioraram muito desde 2014. É de se esperar, também, reação de grupos nacionalistas, inclusive de extremistas anti-Rússia. Não é necessário dizer que isto provocaria mais tensão na região. Isto daria à Rússia pretextos para retaliar qualquer ação ucraniana, a exemplo da suposta invasão das águas territoriais russas no caso do estreito de Kerch.

          Por mais que uma visita do Patriarca seja religiosamente legítima (e mesmo que Kirill e Putin não adotassem o mesmo tom nos seus discursos como na ocasião da comemoração de dez anos de entronização do Patriarca, ou que a separação Igreja-Estado na Rússia constituísse uma laicidade estrita), esta seria a ocasião para Moscou arranjar pretextos e agir política e militarmente na Ucrânia.

          Além da das fortes divergências políticas que explodiram com a Euromaidan no final de 2013, a tomada da Crimeia e a guerra que se seguiu em 2014, para o analista Taras Kuzio a formação da Igreja Ortodoxa Ucraniana é mais um capítulo (talvez definitivo) da perda da Ucrânia pela Rússia. Este é o mais duro golpe na pretensão de Putin de restaurar o Império Russo.

          Enquanto a viagem mantém-se no plano das possibilidades, os ucranianos esperam uma reação russa à perda da Ucrânia. Putin, por enquanto, continua apenas na retórica.   

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Russian mercenaries in Venezuela

(Russian mercenaries of the Slavonic Corps, in Syria.)

          Russian mercenaries of the Wagner Group, who have acted in Syria and Ukraine, arrived to Caracas aiming of securing the safety of Nicolás Maduro and other senior Venezuela's authorities. The report in English was initially disclosed, on January 25th, by Reuters Agency, but a survey by the Jametown Foundation showed that, indeed, the mercenaries were sent from Moscow, passing through Dakar (Senegal), Ciudad del Leste (Paraguay) and Havana (Cuba), before arriving to the Venezuelan capital by a comercial flight on 22nd. The semmingly erratic trip's trajectory raises the hypothesis that it was planned for not raising suspicions.

          According to Jamestown, Russian mercenaries arrived in Venezuela as early as May 2018, before the current political crisis, which bean in January with Maduro's inauguration for a new term as president. The new group of combatants was, therefore, added to those already in the country. There would be up to 400 new mercenaries.

          Two days after the news on Reuters, several media outlets reported that Moscow denied sending these mercenaries. Jamestown comments, however, that in general the Russian authorities' reaction have been denial or silence on the matter. On January 23rd, the Kremlin's spokeswoman, Maria Zakharova, admitted that Russian private security companies operated in Sudan and came into contradiction with the Russian ambassador in the country, who in November 2018 had denied the fact. This lapse may be an indication that Russia seeks to keep silence on mercenaries hired by the government on behalf of state interests. There are Russian private companies also operating in Gabon and Central African Republic, as Coda agency has learned in detail.

          As I commented in the last post, Russia has much to lose with the fall of Maduro´s government, which is increasingly isolated internationally, but has explicit support, in addition to the Russians, China and Turkey. The government's fall would be the loss of contracts for large Russian companies, money for non-payment of loans (which Maduro have had difficulties to pay) and especially a space of political and military influence in a region close to the US. A geopolitical adversary besides Washington means the Moscow's triumph in its commitment for the corrosion of the US global leadership. Hence the dispute between of the two countries around Venezuelan crisis.

          So far, Moscow has given no indication that will send military personnel to Venezuela on the possibillity, even small, of a Washington's military intervention. While accusing the US of promoting, with its allies, a coup d'etat in Venezuela and a potential bloodshed, Russia seeks to antecipate itself to a social convulsion or even a foreign intervation using paid percenaries. At least for now.

* Published in Portuguese on January 30th, 2019.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Mercenários russos na Venezuela

(Mercenários russos do grupo Corpo Eslavo, na Síria.)

        Mercenários russos do Grupo Wagner, que tem atuado na Síria e na Ucrânia, chegaram à Caracas com o objetivo de fazer a segurança de Nicolás Maduro e outras altas autoridades da Venezuela. A notícia em inglês foi divulgada inicialmente, dia 25 de janeiro, pela Agência Reuters, mas um levantamento feito pela Fundação Jamestown mostrou que, de fato, os mercenários foram enviados de Moscou, passando por Dacar (Senegal), Ciudad del Leste (Paraguai) e Havana (Cuba), antes de chegar à capital venezuelana por um voo comercial no dia 22. A trajetória aparentemente errática da viagem levanta a hipótese de que fora planejada para não levantar suspeitas.      

          Segundo a Jamestown, mercenários russos chegaram à Venezuela já em maio de 2018, antes da atual crise política, iniciada em janeiro com a posse de Maduro para um novo mandato como presidente. A nova leva de combatentes veio, portanto, a somar-se aos que já se encontravam no país. Seriam até 400 novos mercenários.

          Dois dias depois da notícia na Reuters, vários veículos de comunicação informaram que Moscou negou o envio desses mercenários. A Jamestown comenta, porém, que em geral a reação das autoridades russas tem sido de negação ou silêncio sobre o assunto. Em 23 de janeiro, a porta-voz do Kremlin, Maria Zakharova, admitiu que companhias privadas russas de segurança atuavam no Sudão e entrou em contradição com o embaixador russo no país, que em novembro de 2018 havia negado o fato. Este lapso pode ser um indicativo de que a Rússia busca manter silêncio sobre mercenários contratados pelo governo para atuar em nome dos interesses de Estado. Há companhias privadas russas atuando também no Gabão e na República Centro-Africana, como apurou com detalhes a agência Coda.

          Como comentei na última postagem, a Rússia tem muito a perder com a queda do governo de Maduro, que encontra-se cada vez mais isolado internacionalmente, mas tem apoio explícito, além dos russos, da China e da Turquia. A queda do governo significaria a perda de contratos para grandes empresas russas, de dinheiro por não pagamento de empréstimos (que Maduro tem tido dificuldades de pagar) e, principalmente, de um espaço de influência política e militar numa região próxima dos EUA. Um adversário geopolítico ao lado de Washington significa o triunfo de Moscou no seu empenho pela corrosão da liderança global norte-americana. Daí a disputa dos dois países em torno da crise venezuelana. 

          Até o momento, Moscou não tem dado sinais de que enviará militares para a Venezuela ante a possibilidade, mesmo que pequena, de uma intervenção militar de Washington. Enquanto acusa os EUA de promover, com seus aliados, um golpe de Estado na Venezuela e um potencial derramamento de sangue, a Rússia busca se antecipar a uma convulsão social ou mesmo intervenção estrangeira utilizando-se de mercenários pagos. Ao menos por enquanto.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Russia declares support for Maduro. What now?

(Putin receiving Maduro in his official residente near Moscow, on December 5th, 2018. Promise of political support.)

          Amid Venezuela's severe social, political and economic crisis, Vladimir Putin has called for President Nicolas Maduro to express support to his authority as country's president. Several countries around the world, such as US, Canada, France and Brazil, declared they don't recognize Maduro's new term and has considered Juan Guaidó, National Assembly's president, as the legitimate President in charge.

          In the message, Putin stated that "the worsening of the internal political crisis" is "provoked from outside the country", in allusion, although not exclusive, to the US, and that this interference is a "gross violation" of international law. 

          Noting the votes at the UN, international alliances and statements of Moscow and Washington, mainly after Russia annexed the Crimea and started to sponsor a war in eastern Ukraine, its clear that Venezuela is an ally of the Russians and serves as a Kremlin's space of presence in a region traditionally influenced by the US.

          Last December, Russia sent two Tupolev Tu-160 Blackjacks bombers to Venezuela to carry out military exercises with the local armed forces, where they stayed from day 10 to 14. On day 12, they performed aerial maneuvers lasting 10 hours over the Caribbean Sea. The Tu-160s were introduced in November 2017 and were designed to realize more than 10 thousands kilometers flights being capable to carry nuclear warheads.

          The bomber's presence in Venezuela was a double message to the US, which recently abandoned a treaty over nuclear warheads singed with the Soviets in 1987 (Intermediate-Range Nuclear Forces Traty, INF, which Trump claimed of being violated several times by the Russians) and has being raising the tone of criticism against Maduro's dictatorial government. It may also be a response to the support given to Ukraine by the Americans in the Kerch Strait crisis in November 2018. Secondarily, its also a message to Jair Bonsonaro's Brazil, the largest country in Latin America, which has been a harsh critic of Caracas and seeks an alignment with Washington.

(Tupolev Tu-160)

          There's also the possibility of Russia establishing a military base in the Venezuelan island of La Orchila, in the Caribbean Sea, what would ensure permanent presence of troops in the region and would supplant logistic difficulties, such as displacement and supply of aircrafts such as Tu-160. Although Russian interest in the place is more than then years old and this possibility is unclear, a base in La Orchila would imply in a change in US-led military security in the Americas.  

          The Russian presence is also a way of reaffirming its aliance with Caracas. Between 2016 and 2017, Moscow lent at least U$ 17 billion to Venezuela, and in December 2018 (when Maduro met Putin) promised U$ 6 billion more in investment in oil industry and gold exploration. Such debts are in part paid with oil and the participation of Russian state-owned Rosneft in Venezuelan PDVSA's businesses. In the political field, Maduro has been a staunch Moscow's supporter is its geopolitical actions, such as in Ukraine and neighbouring countries.

          The question that remains in these tension days for the Venezuelans is: will Russia act before the treat of a possible Maduro's downfall? In a tense moment, the possibility of Caracas asking Moscow for a last-minute help stays open since, such as Putin's phone call showed, if the current political crisis is caused by a foreign intrvention would be legitimate for other foreigners (the Russians) to come in denfense of Maduro. In addition, the Russians have much to lose with a possible government's downfall, not only money and contracts, but also a possible mid-term military presence in the Caribbean Sea, region traditionally influenced by Washington. The picture that hasn't been seen in the Americas since the 1962 Missile Crisis could repeat, albeit to a lesser extent than the tension which almost led the world to a nuclear war.

* Published in Portuguese on January 24, 2019.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Rússia declara apoio a Maduro. E agora?

(Putin recebendo Maduro em sua residência oficial perto de Moscou, em 5 de dezembro de 2018. Promessa de apoio político.)

          Em meio à grave crise social, política e econômica que atinge a Venezuela, Vladimir Putin telefonou para o presidente Nicolas Maduro para expressar apoio à sua autoridade como presidente do país. Diversos países do mundo, como EUA, Canadá e Brasil, declararam não reconhecer o novo mandato de Maduro e consideraram Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como presidente encarregado legítimo.

          Na mensagem, Putin afirmou que "a piora da situação política interna" é "provocada de fora do país", um alusão, ainda que não exclusiva, aos EUA, e que essa interferência é uma "grosseira violação" da lei internacional.

          Observando as votações na ONU, as alianças internacionais e as declarações de Moscou e Washington, principalmente depois que a Rússia anexou a Crimeia e passou a patrocinar uma guerra no leste da Ucrânia, fica claro que a Venezuela é um aliado dos russos e que serve como espaço de presença do Kremlin numa região tradicionalmente influenciada pelos EUA.

          Em dezembro passado, a Rússia enviou dois bombardeiros Tupolev Tu-160 Blackjacks à Venezuela para realizar exercícios militares com as forças armadas locais, onde ficaram do dia 10 a 14 de dezembro. No dia 12, realizaram manobras aéreas com duração de 10 horas sobre o Mar do Caribe. Os Tu-160 foram apresentados em novembro de 2017 e foram projetados para realizar voos de mais 10 mil quilômetros de distância sendo capazes de carregar armas nucleares.

          A presença dos bombardeios na Venezuela foi um duplo recado para os EUA, que abandonou recentemente um tratado sobre ogivas nucleares assinado com os soviéticos em 1987 (Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, INF em inglês, que Trump acusou ter sido violado várias vezes pelos russos) e vem aumentando o tom das críticas ao governo ditatorial de Maduro. Também pode ser uma resposta ao apoio dado pelos americanos à Ucrânia na crise do Estreito de Kerch, em novembro de 2018. De forma secundária, é também um recado ao Brasil de Jair Bolsonaro, maior país da América Latina, que tem sido duro crítico de Caracas e busca um alinhamento com Washington. 

(Tupolev Tu-160)

          Há também a possibilidade da Rússia estabelecer uma base militar na ilha venezuelana de La Orchila, no Mar do Caribe, o que garantiria presença permanente de tropas na região e suplantaria dificuldades logísticas, como o deslocamento e abastecimento de aviões como o Tu-160. Ainda que o interesse russo no local tenha mais de dez anos e esta possibilidade não seja clara, uma base em La Orchila implicaria numa mudança da segurança militar das Américas liderada pelos EUA.  

          A presença russa também é uma forma de reafirmar sua aliança com Caracas. Entre 2016 e 2017, Moscou emprestou pelo menos U$ 17 bilhões à Venezuela, e em dezembro de 2018 (quando Maduro encontrou Putin) prometeu mais U$ 6 bilhões em investimentos na indústria de petróleo e na exploração de ouro. Tais dívidas são pagas em parte com petróleo e a participação da estatal russa Rosneft em negócios da venezuelana PDVSA. No campo político, Maduro tem sido um firme apoiador de Moscou nas suas ações geopolíticas, como na Ucrânia e países vizinhos. 

          A questão que fica nestes dias tensos para os venezuelanos é: a Rússia vai agir ante a ameaça de uma possível queda de Maduro? Num momento de tensão, fica em aberto a possibilidade de Caracas pedir a Moscou ajuda de última hora, já que, como mostrou o telefonema de Putin, se a crise política atual é causada por interferência estrangeira seria legítimo que outros estrangeiros (os russos) viessem em defesa de Maduro. Ademais, os russos têm muito a perder com uma eventual queda do governo, não só dinheiro e contratos, mas também uma possível presença militar a médio prazo no Mar do Caribe, região tradicionalmente influenciada por Washington. O quadro que não se vê nas Américas desde a Crise dos Mísseis de 1962 poderia se repetir, ainda que num grau menor do que a tensão que quase levou o mundo a uma guerra nuclear.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

The wish of a Christian Church in Ukraine between Moscow, Constantinople and the Vatican


(Epiphanius I e Sviatoslav)

          In recent days, the leader of the Ukrainian Greek Catholic Church, Metropolitan Sviatoslav Shevchuk, has made several statements to promote unity between Catholics and Orthodox and the long-term possibility that his church and the newly established Ukrainian Orthodox Church merge into only one. This is a very complicated thing, since the two groups have different dogmas and saints canonized by the defense of their respective traditions.

          In an interview given on the day of Orthodox Christmas, on January 7th, Sviatoslav (called "Patriarch" by the Religious Information Service of Ukraine) stated that a unity is possible between the Greek Catholic and Orthodox churches in Ukraine based on the common inheritance of the Batism of Kievan Rus in 988, that began the Christianization of the Slavs. The common aspects of the culture such as liturgy, language and traditions certainly contribute for the unity, since the diaspora's Ukrainian Christians use the mother tongue in the liturgical rite, common to both churches, sometimes alternating Ukrainian with the receiving community's language. This union could be the creation of a Patriarchate of Kyiv recognized by both Rome and Constantinople through an Eucharistic communion.

          Sviatoslav also mentioned the catholic-orthodox dialogue at a universal level. The Catholic Church's ecumenism has began with Pope Paul VI's decree Unitatis Redintegratio, published on November 21st, 1964, at the end of the Second Vatican Council, and was reinforced by Pope John II's encyclical Ut Unum Sint, dated May 25th, 1995. In these documents, the Holy See recognizes the reality of the sacrament of Orthodox communion (allowed to Catholics in specific circumstances) and places the Eucharist, baptism and apostolic succession as the main points of unity between the Catholic and Orthodox churches.

          Another point of direct Ukrainians' interest is the rejection of "uniatism", that is, the conversion of one community to another, as occurred with the Union of Brest of 1596, when Orthodox bishops of the Catholic kingdom of Polish-Lithuanian Commonwealth agreed with Rome the union and gave rise to the Sviatoslav's Ukrainian Greek Catholic Church.

(Ecumenical Patriarch Bartholomew I signing the Tomos - declaration document - that officialized the creation of the Ukrainian Orthodox Church, on January 5th, 2019, in St. George's Cathedral, Istambul. Epiphanius I is on the right.) 

          In his visit to Pope Francis at the Vatican on July 3rd, 2018, the Metropolitan talked about the relationship with Orthodox in Ukraine, who were then discussing the creation of only one church, and reaffirmed the compromise of rejection of uniatism. Thus, Sviatoslav reiterated another important element of ecumenism, stated in the Christmas' interview, which is the establishment of a constant dialogue with Orthodox through the Joint International Commission for Theological Dialogue Between the Catholic Church and Orthodox Church. The body was created by the Patriarch of Constantinoploe Dimitrius I and Jonh Paul II, when this one traveled to Istambul, on November 30th, 1979. The Commission's ultimate goal is the restoration of the Christian Church's unity existing before de 1054 schism. Since then, it has been holding several meetings to seek the common basis of both churches, and then deal with the divergences. The joint rejection of uniatism came in the Declaration of Balamand (Lebanon) in the meeting of June 1993.

          The challenge and desire of the Ukrainian Metropolitan aren't easy at all, with pressure from the Russians and Holy See's guidance. With the Constantinople's Announcement, on October 11th, 2018, of the creation of an Ukrainian Church, the Moscow Patriarchate broke relations with the Ecumenical Patriarchate four days later. This placed the Holy See in a even more delicate position. On July 31st, 2018, Pope Francis had received at the Vatican a delegation led by Metropolitan Hilarion, head of the Department for External Church Relations of the Moscow Patriarchate. At the meeting, Pope said that Catholic Church (and the "Catholic Churches", an indirect statement to the Ukrainian Greek Catholic Church) should not interfere in the relationship among Orthodox and in the Russian Church, depriving other Catholics leaders to influence or express their views on the matter. Thus, the Holy See also presses for Ukrainians Catholics not influence the Orthodox issue in Ukraine, making the Sviatoslav's desire for unity more sensitive. Moscow withdrew the Join International Commission, of which the Ecumenical Patriarchate is a member, and choose to maintain with the papacy only bilateral relations.

          Since at least the 1960's, there has been a movement of Ukrainian Catholics for the elevation of the Greek Catholic Church to the status of Patriarchate. This would result in a strengthening of the national unity and, consequently, an approximation between Catholics and Orthodox in the country, increasing the chances of unity between the two churches. This at the expense of the Russian Church that, with the creation of the unified Ukrainian Orthodox Church on January 5th, lost religious jurisdiction over the country after 332 years. Therefore, a Catholic Patriarchate would further alienate Ukraine from Russia which, with the seizure of the Crimea and the promotion of a war in the neighboring country in 2014, is loosing the battle for the restoration of a Russian Empire with its oficial Church.

(Icon of Unity painted by an Orthodox monk from Mount Athos, Greece, in 1968.)

          Given the provisions, however cautious, of the new Ukrainian Patriarch Epiphanius I (to be enthroned on February 3rd) of collaborating in dialogue with Catholics, the enthusiastic commitment of Sviatoslav and the Ecumenical Patriarch Bartholomew I in ecumenical dialogue and the Ukrainian Catholics' desire per decades of elevating their church to the status of Patriarchate can open the doors to a unity of the churches. If this happen in the future, the consequences will be overwhelming (in a good sense), since Orthodox civilization was constructed over the spread of Christianity in the Slavic world, which would drag hundreds of millions of people into unity with the West. This would directly help the promotion of peace worldwide.

          This is a hard mission that, according to the Catholic tradition, can only be accomplished by the Holy Spirit's action.

* Published in Portuguese on January 21st, 2019.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O desejo de uma Igreja Cristã na Ucrânia entre Moscou, Constantinopla e o Vaticano.

(Epifânio I e Sviatoslav)

          Nos últimos dias, o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana, o Metropolita Sviatoslav Shevchuk, fez diversas declarações no sentido de promover a unidade entre católicos e ortodoxos e a possibilidade, no longo prazo, de que sua igreja e a recém criada Igreja Ortodoxa Ucraniana se fundam numa só. Coisa muito complicada, já que os dois grupos têm dogmas diferentes e santos canonizados pela defesa de suas respectivas tradições. 

          Em entrevista dada no dia do Natal ortodoxo, em 7 de janeiro, Sviatoslav (chamado pelo Serviço de Informações Religiosas da Ucrânia de "Patriarca") declarou que é possível uma unidade entre as igrejas Greco-Católica e Ortodoxa na Ucrânia tendo como base a herança comum do Batismo da Rus de Kiev em 988, que deu início à cristianização dos eslavos. Os aspectos comuns da cultura como liturgia, língua e tradições certamente contribuem para a unidade, já que cristãos ucranianos da diáspora utilizam a língua materna no rito litúrgico, comum às duas igrejas, por vezes alternado o ucraniano com a língua da comunidade receptora. Esta união poderia ser  a criação de um Patriarcado de Kiev reconhecido tanto por Roma quanto Constantinopla através de uma comunhão eucarística.

          Sviatoslav também citou o diálogo católico-ortodoxo a nível universal. O ecumenismo da Igreja Católica teve início com o decreto Unitatis Redintegratio, do Papa Paulo VI, publicado em 21 de novembro de 1964, ao final do Concílio Vaticano II, e foi reforçado pela encíclica Ut Unum Sint, de João Paulo II, de 25 de maio de 1995. Nestes documentos, a Santa Sé reconhece a realidade do sacramento da comunhão ortodoxa (permitida aos católicos em circunstâncias específicas) e coloca a eucaristia, o batismo e a sucessão apostólica como os principais pontos de unidade entre as igrejas Católica e Ortodoxa. 

        Outro ponto de direto interesse aos ucranianos é a rejeição do "uniatismo", ou seja, da conversão de uma comunidade à outra, como ocorreu com a União de Brest de 1596, quando bispos ortodoxos no reino católico da Comunidade Lituano-Polonesa acertaram com Roma a união e deram origem à Igreja Greco-Católica Ucraniana de Sviatoslav. 

(Patriarca Ecumênico Bartolomeu I assinando o Tomos - documento de declaração - que oficializou a criação da Igreja Ortodoxa Ucraniana, em 5 de janeiro de 2019, na Catedral São Jorge, em Istambul. Epifânio I está à direita.) 

          Na visita que fez ao Papa Francisco no Vaticano em 3 de julho de 2018, o Metropolita conversou sobre a relação com os ortodoxos na Ucrânia, que então discutiam a criação de uma única igreja, e reafirmou o compromisso de rejeição do uniatismo. Saviatoslav reiterou, assim, outro elemento importante do ecumenismo, citado na entrevista de Natal, que é o estabelecimento de um diálogo constante com os ortodoxos através da Comissão Mista Internacional para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa. O organismo foi criado pelo Patriarca de Constantinopla Dimítrios I e Joao Paulo II, quando este viajou à Istambul, em 30 de novembro de 1979. O objetivo final da Comissão é o reestabelecimento da unidade da Igreja Cristã existente antes do cisma de 1054. Desde então, ela vem realizando diversas reuniões no sentido de buscar as bases comuns das duas igrejas para depois tratar das divergências. A rejeição conjunta do uniatismo veio na Declaração de Balamand (Líbano) na reunião de junho de 1993.  

          O desafio e o desejo do Metropolita ucraniano não são nada fáceis, com pressão por parte dos russos e orientações da Santa Sé. Com o Anúncio de Constantinopla, em 11 de outubro de 2018, da criação de uma Igreja Ucraniana, o Patriarcado de Moscou rompeu relações com o Patriarcado Ecumênico quatro dias depois. Isto colocou a Santa Sé numa posição ainda mais delicada. Em 31 de julho de 2018, o Papa Francisco havia recebido no Vaticano uma delegação liderada pelo Metropolita Hilarion, chefe do Departamento para Relações Exteriores da Igreja do Patriarcado de Moscou. No encontro, o Papa firmou que a Igreja Católica (e as "Igrejas Católicas", uma indireta à Igreja Greco-Católica Ucraniana) não deveria interferir na relação entre os ortodoxos e na Igreja Russa, desautorizando que outros líderes católicos influenciassem ou opinassem sobre o tema. Desta forma, a Santa Sé também pressiona para que os católicos ucranianos não influenciem a questão ortodoxa na Ucrânia, tornando mais sensível o desejo de unidade de Sviatoslav. Moscou se retirou na Comissão Mista Internacional, da qual o Patriarcado Ecumênico faz parte, e optou por manter com o papado apenas relações bilaterais.

          Desde pelo menos a década de 1960, há um movimento de católicos ucranianos para a elevação da Igreja Greco-Católica à condição de Patriarcado. Isto resultaria num fortalecimento da unidade nacional e, por consequência, de uma aproximação entre católicos e ortodoxos no país, aumentado as chances de uma unidade entre as igrejas. Isto às custas da Igreja Russa que, com a criação em 5 de janeiro da Igreja Ortodoxa Ucraniana unificada, perdeu a jurisdição religiosa sobre o país depois de 332 anos. Portanto, um Patriarcado católico afastaria ainda mais a Ucrânia da Rússia que, com a tomada da Crimeia e a promoção de uma guerra no país vizinho em 2014, está perdendo a batalha pela restauração de um Império Russo com sua Igreja oficial.

(Ícone da Unidade pintado por um monge ortodoxo do Monte Athos, na Grécia, em 1968.)

          Dadas as disposições, ainda que cautelosas, do novo Patriarca ucraniano Epifânio I (a ser entronizado em 3 de fevereiro) de colaborar com o diálogo com os católicos, o empenho entusiasmado de Sviatoslav e do Patriarca Ecumênico Bartolomeu I no diálogo ecumênico e o desejo de décadas dos católicos ucranianos de elevar sua igreja à condição de Patriarcado pode abrir as portas para uma unidade das igrejas. Caso isto venha a ocorrer no futuro, as consequências serão avassaladoras (no bom sentido), dado que a civilização ortodoxa foi construída sobre a propagação do cristianismo no mundo eslavo, o que arrastaria centenas de milhões de pessoas à unidade com o Ocidente. Isto ajudaria diretamente na promoção da paz no mundo inteiro.

          Esta é uma missão difícil que, de acordo com a tradição católica, só poderá ser realizada pela ação do Espírito Santo.