terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Como a Rússia reagirá à fundação da nova Igreja Ucraniana?

(Bartolomeu I e Putin)

          Com o anúncio oficial da criação da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev em 5 de janeiro deste ano, a Igreja Ortodoxa Russa perdeu jurisdição canônica (religiosa) sobre o território ucraniano depois de 332 anos. Em 1686, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla havia colocado o então Patriarcado de Kiev sob a autoridade de Moscou, expandindo o território canônico deste último. Na época, o que se conhece hoje como "Ucrânia" possuía um território muito diferente da atual. Constantinopla revogou esta inclusão no Anúncio de 11 de outubro do ano passado.

          Sem uma influência religiosa direta, tanto a Igreja Russa com o governo russo perderam grande capacidade de influenciar cultural e politicamente a população ucraniana. Como vemos recorrentemente, o Patriarca Kirill e o presidente Putin costumam aparecer juntos em público e possuem um discurso muito similar quando se trata de definir a identidade do país, tarefa que o Kremlin tomou para si e utiliza como um de seus fundamentos políticos e ideológicos.

          Este vínculo político e cultural entre Igreja e Estado na Rússia faz do poder um elemento de ação e reação aos acontecimentos que envolvem a esfera religiosa.

          De acordo com Paul Goble, os países do Ocidente não compreendem a reação da Rússia a acontecimentos da amplitude como a da atual querela religiosa. Para Moscou, isto significa abdicar de seu histórico papel imperial. A criação da Igreja Ucraniana desmembrada da Igreja Russa significa a retração do papel da Rússia no mundo, e de forma direta sobre os povos vizinhos. Como Putin não pode fazer nada a respeito, ao menos não diretamente, a expectativa de Goble é uma ação muito mais negativa do que a esperada pelo Ocidente e países vizinhos, que geralmente subestimam uma reação russa. A tomada da Crimeia e o início da guerra na Ucrânia em resposta aos protestos de 2013-14 que derrubaram Yanukovich, aliado político de Moscou, é o exemplo mais evidente disto.

(Captura dos marinheiros ucranianos, nos barcos menores, em 25 de novembro passado, no Mar Negro.)

          Há outros elementos que podem contribuir para uma reação agressiva da Rússia e que aparentemente nada têm a ver com a questão religiosa. O conflito na Ucrânia pode ser o ambiente e a justificativa desta reação. Num paper publicado em 1º de fevereiro, o cientista político Andreas Umland aponta um possível desenrolar do conflito, que tem potencial de se deslocar da região de Donbas para o Mar de Azov, que banha os portos de Mariupol e Berdyansk, importantes para o leste ucraniano. A captura dos 24 marinheiros ucranianos pela marinha russa no Estreito de Kerch em 25 de novembro passado sinaliza esta possibilidade. Umland cita quatro fatores para essa possível mudança geográfica do conflito: a falta de reação do Ocidente à crise do Estreito de Kerch (12 dias depois do artigo, uma comissão bipartidária do Senado americano formatou uma legislação para aplicar novas sanções sobre Moscou devido, entre outras coisas, a esta crise), a ausência de organizações internacionais de monitoramento no Mar de Azov, a viabilidade da nova Ponte do Estreito de Kerch inaugurada pela Rússia em maio de 2018 (muito cara e subutilizada) e o precário serviço de água potável na Crimeia.

          Se Goble estiver correto, o forte desagravo da Rússia com relação à criação da nova Igreja Ucraniana pode ser um quinto fator, não propriamente geopolítico, mas como um motivador para uma ação agressiva por parte do Kremlin.

          Mas algumas ações estariam em andamento. Segundo o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) (divulgado também pelo Serviço de Informações Religiosas da Ucrânia, uma agência de perfil inter-religioso), espiões russos e serviços de segurança de Donbas estariam recrutando ucranianos para incendiar igrejas administradas por padres ortodoxos que saíram da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou para ingressar na nova Igreja do Patriarcado de Kiev. Em troca, receberiam U$ 2000 pelo serviço. O agente deveria filmar a ação para comprovar o ataque e então teria o dinheiro depositado em sua conta bancária. A SBU firma ter abortado o recrutamento de um ucraniano. Esta seria uma ação não apenas para intimidar a expansão territorial da Igreja de Kiev, como também para punir os que seriam "traidores" segundo o Kremlin.   

          O país herdou da União Soviética a instrumentalização da Igreja Russa para sua política externa. Igreja e Estado trabalham juntos neste aspecto, na qual a Igreja se torna beneficiária da ordem política criada pelo Estado. Um exemplo é a própria Crimeia, onde a única paróquia da Igreja Ucraniana, localizada em Simferopol, corre o risco de perder permissão de funcionamento por não se adaptar à legislação russa. De acordo com a lei, grupos religiosos só podem possuir propriedades com um registro junto ao Estado, o que a Igreja Ucraniana não poderia fazer, dado que o país que ela representa não reconhece a Crimeia como parte da Rússia. Outro caso foi a posse da Catedral São Nicolas em Nice, na França, pelo Estado russo, em janeiro de 2010. Em 2007, o Kremlin havia entrado com um processo na justiça francesa alegando que a posse  a catedral pela comunidade exilada da Revolução de 1917 havia expirado após 99 anos. Com a causa ganha, a Rússia recebeu, além do edifício, em torno de 300 ícones religiosos raros. Esta transferência de propriedade é uma forma de promoção da cultura russa no exterior e de expansão do que Moscou chama de "mundo russo".

(Rara igreja de madeira em chamas em Gorlovka, leste da Ucrânia, em 8 de agosto de 2014. Representativo dos efeitos religiosos do conflito e da tensão entre igrejas e governos.)

          Outra ação possível da Rússia seria por via judicial, não na Ucrânia, mas na Turquia. O doutor em direito e diretor de um instituto de pesquisa em Moscou, Igor Ponkin, lista uma série de crimes que Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de Constantinopla, teria cometido ao anular a decisão da Carta Sinodal de 1686 (e divulgado o Tomos de autocefalia da Igreja Ucraniana em 5 de janeiro, que o autor não analisa). Bartolomeu (que Ponkin chama pelo nome civil Dimitrios Arhondis, desqualificando-o para o cargo), teria feito uma falsa anulação da antiga decisão, afirmando que a linguagem jurídica atual é inócua em relação à terminologia da época. A Ucrânia, que na época não existia enquanto tal, também possuía um território muito diferente. Ponkin acusa o Patriarca de crimes graves segundo o Tratado de Lausanne, de 1923, e a Constituição e o Código Penal da Turquia, onde reside, sugerindo uma ação criminal contra ele. Bartolomeu estaria violando nove artigos destas três leis, entre eles a promoção de uma convulsão social em país estrangeiro a partir da Turquia, a incitação ao ódio inter-religioso (na Ucrânia e na Turquia) e a promoção de uma guerra entre Rússia e Ucrânia. A posição de Ponkin é clara: Bartolomeu não seria um Patriarca legítimo, e caberia à Turquia (em consonância com a Rússia) tomar as medidas judiciais cabíveis.

          Enquanto a Rússia não age de forma explícita na questão religiosa, os analistas ficam especulando suas possíveis reações. Com base na história recente, ainda veremos o que o Kremlin fará para compensar a posição perdida.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Kirill, Putin and the loss of Ukraine

(Kirill in his 10 years speech as Patriarch of the Russian Orthodox Church.)

          Last February 1st, Patriarch Kirill celebrated his 10 years at the head of the Russian Orthodox Church. The celebration was made at the State Palace in the Moscow Kremlin in presence of Vladimir Putin, President of Russia, Igor Dodon, President of Moldova, and political and religious authorities.

          In his speech, Kirill said the two major Christianity's challenges today are the reintegration of the Church into society, bridging the gap between them and reintroducing in people the values defended by the Christian faith, and the supposed absolute science's authority, which proposes technical progress at the expense of the ethical principles and the dissemination of transhumanism, a philosophy which bets on the "improving" of the human nature. Most of his speech was dedicated to these matters.

          At the beginning of his explanation, however, the Patriarch paid attention to the Ukraine's situation. He said that the new structure of the Ukrainian Orthodox Church of the Kiev Patriarchate (without quoting it directly), made official on last January 5th, consisted of a "pseudo-church structure consisting of schismatics".  He blamed the Ukrainian authorities and the Constantinople Patriarchate for intruding into the canonical territory of the Ukrainian Church of the Moscow Patriarchate, and the Kyiv government for discriminating the Russian believers, take their churches and encourage inter-religious hatred.

          The statements on Ukraine repeated the accusation of persecution to the Orthodox of the Russian Church by the Ukrainian government that Kirill disclosed in a letter sent on December 14th, 2018 to several political and religious leaders of the world, such as Pope Francis, Archbishop of Canterbury Justin Welby, the head of the World Council of Churches Olav Fyske Tveil, the UN Secretary-General Antonio Guterres, Angela Merkel, Emmanuel Macron, among others.   

          The presence of Putin and Dodon (Russian president's ally) in celebration of his enthronement, the political matter and the letter sent to civic and religious leaders show the Kirill's political action in national and foreign issues. Kirill is muche more than "only" the religious leader of the Russian Orthodox Church. He's also the disseminator of ideas which are shared by the Russian state, with whom he works in consonance.

(Putin's speech. Crowded State Palace in the Kremlin.) 

          Before the Patriarch, Vladimir Putin made a speech of about 10 minutes. He congratulated Kirill for the date, praised his work and extoled the actions of the Russian Orthodox Church in various fields of society, both inside and outside the country, establishing relationships with other peoples and churches. So that Putin recalled the Ukraine issue, making incisive statements and harshly condemning what he regarded as a "parasitizing" of the country's religious life by the Kiyv government, whose project "is not related to faith, but a false one". He was tougher in comparing the Kiyv's action which, in April, through Parliament, called for the creation of an autocephalous Ukrainian Orthodox Church, accepted on October 11th by Constntinople, to the Bolcheviks, who persecuted, controlled and murdered almost all of the Orthodox religious in the former USSR, mainly between 1918 and 1939.

"In essence, there is a gross interference in the church life. Its initiators seemed to learn from the godless of the last century, who expelled believers from churches, poisoned and persecuted the clergy."

          The explanation was followed by audience's applause. 

          The president said that the Russian authorities will never accept the interference of the state in the Church's affairs, manly abroad, and that they "reserve the right to react and do everything to protect human rights, including freedom of religion".

          The 1993 Constitution of Russia guarantees Church-State separation (Article 14) since the effective separation by Law on Religious Freedom and Religious Association signed on October 1st, 1990 by Mikhail Gorbachev and reaffirmed it in a new law of September 26th, 1997, where recognizes the special role in the country of the Russian Orthodox Church and gives special recognition to Islam, Judaism and Buddhism, the so-called "traditional religions".

          The religious freedom, however, has been restricted in Russia, especially after introduction of a series of amendments to the anti-terrorism laws known as Yarovaya Law, passed on June 24th, 2016. Under the pretext of combating extremism, the law made registration, property ownership and missionary action of religious groups more difficult, especially the religions considered "non-traditional" and that refuse to register officially with the state. The groups most affected were Christian minorities and Eastern religions. One of the most visible consequences was the ban of The Administrative Center of the Jeovah's Witnesses in Russia on April 20th, 2017. All its facilities were owned by the state and the religious activities were banned. Baptist Christian were also persecuted, and until a few months ago there were around twenty of their members in jail. Despite being largely privileged for being a majority, to be considered one of the traditional religions and to enjoy agreements with public institutions such as universities, some religious of the Russian Orthodox Church have been complained of restrictions imposed on minority groups by the government.

          Putin's accusation against Kyiv government also fit to Donbass region in a war waged by pro-Russian fighters with Moscow's support. There have been several allegations of violation of religious freedom, including the murdering of four Protestant religious, as pointed out in a document of the Belgium's IPHR organization in partnership with the Ukraine's CCL as early as April 2015. These persecutions are promoted by battalions such as The Most Glorious Legion of Don, made up by Cossacks self-proclaimed defenders of the Orthodox faith, and the Russian Orthodox Army, led by the main Russian fighter, Igor Strelkov. Some religious and priests of the Russian Orthodox Church, although not in the majority, have supported these fighters. Ukraine would be the only country in the world where there's an armed conflict of Christians against Christians.

(From left to right: Igor Dodon, Kirill and Putin.)

          There are speculations of how Putin will react to the loss of the Ukraine's canonical territory. Some experts believe that the Kremlin could react militarily in a way of giving new impetus to the war in neighboring country. In this context, the Kerch Strait crisis could be a bait to trigger new military action.

          On December 22nd, five days after the Unification Council in Kyiv chose Epiphanius as leader of the new Ukrainian Orthodox Church, Patriarch Kirill said the Russian Church should analyze the possibility of a new concordat with the Russian state in order to deep cooperation between both; should rethink its action for the unity of Ortodoxy, broken on October 15th, and seek in Vatican an ally in this regard (given Francis' posture, the Catholic Church will do its utmost to not displease Moscow in the name of ecumenical dialogue); and should work to expand its influence abroad. These guidelines point directly to the need to reverse the territorial loss in Ukraine, the prestige of the Church in Orthodoxy and of Russia in the world stage.       

          According to Yuri Ruban, high official of the Kyiv's Presidential Administration, Kirill intends to go to Ukraine and to visit Pechersk Lavra (Cave Monastery), one of the major spiritual center of the Orthodox world and where, according to the letter of December 14th, the Ukrainian authorities would be trying to private its use by Russian Church's monks. The trip would aim, among other things, to support pro-Russian candidates for country's presidency, whose election will be on March 31st. For Yuri, the Kremlin is using the faith to politically influence the Ukrainian voters.

          Even if Kirill goes to Ukraine without any political pretension, his single presence would demand a huge security scheme and a complicated negotiation between two countries whose relations have worsened to much since 2014. Its to be expected also the reaction of nationalist groups, including anti-Russia extremists. Needless to say that this would provoke more tension in the region. This would give Russia excuses to retaliate any Ukrainian action, such as the supposed invasion of the Russian territorial waters in the case of the Kerch Strait.

          As much as a Patrarch's visit is religiously legitimate (and even if Kirill and Putin didn't take the same tune in their speeches as on the occasion of the 10-year celebration of the Patriarch's enthronement, or that Church-State separation in Russia constituted a strict secularism), this would be the occasion for Moscow to make excuses and act politically and militarily in Ukraine.

          In addition to the strong political divergences that erupted with Euromaidan in the end of 2013, the seizure of the Crimea and the ensuing war in 2014, for the expert Taras Kuzio the formation of the Ukrainian Orthodox Church is another chapter (perhaps definitive) of the loss of Ukraine by Russia. This is the hardest blow on Putin's claim to restore the Russian Empire.

          While the trip remains at the level of possibility, the Ukrainians expect a Russian reaction for the loss of Ukraine. For a while, Putin continues only in rethoric.

* Published in Portuguese on February 5th, 2019.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Kirill, Putin e a perda da Ucrânia

(Kirill no seu discurso de 10 anos como Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa.)

          Neste 1º de fevereiro, o Patriarca Kirill celebrou seus 10 anos à frente da Igreja Ortodoxa Russa. O evento de comemoração foi realizado no Palácio do Estado no Kremlin de Moscou na presença de Vladimir Putin, presidente da Rússia, Igor Dodon, presidente da Moldávia, e autoridades políticas e religiosas.

          Em seu discurso, Kirill afirmou que os dois grandes desafios do cristianismo nos dias de hoje são a reintegração da Igreja na sociedade, cobrindo o hiato entre ambos e reintroduzindo nas pessoas os valores defendidos pela fé cristã, e a pretensa autoridade absoluta da ciência, que propõe o progresso técnico às custas de princípios éticos e a disseminação do transhumanismo, filosofia que aposta no "melhoramento" da natureza humana. Boa parte de seu discurso foi dedicado a estes temas.

          No início de sua explanação, porém, o Patriarca deu atenção à situação da Ucrânia. Afirmou que a estrutura da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (sem citá-la diretamente), oficializada no último dia 5 de janeiro, consistia numa "estrutura de pseudo-igreja formada por cismáticos". Responsabilizou as autoridades ucranianas e o Patriarcado de Constantinopla pela intrusão no território canônico da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou, e o governo de Kiev de discriminar os fiéis russos, tomar suas igrejas e incentivar o ódio inter-religioso. 

          As declarações sobre a Ucrânia repetiram a acusação de perseguição aos ortodoxos da Igreja Russa pelo governo ucraniano que Kirill divulgou numa carta enviada em 14 de dezembro de 2018 a diversas lideranças políticas e religiosas do mundo, como o Papa Francisco, o Arcebispo de Canterbury Justin Welby, o líder do Conselho Mundial de Igrejas Olav Fyske Tveit, o secretário-geral da ONU Antonio Guterres, Angela Merkel, Emmanuel Macron, entre outros.

          A presença de Putin e Dodon (aliado do presidente russo) na comemoração de sua entronização, o tema político e a carta aos líderes civis e religiosos mostram a atuação política de Kirill em temas nacionais e estrangeiros. Kirill é muito mais do que "apenas" o líder religioso da Igreja Ortodoxa Russa. Ele é também o disseminador de ideias que são compartilhadas pelo Estado russo, com quem trabalha em consonância.

(Discurso de Putin. Palácio do Estado no Kremlin lotado.)

          Antes do Patriarca, Vladimir Putin fez um discurso de aproximadamente dez minutos. Parabenizou Kirill pela data, elogiou seu trabalho e exaltou as ações da Igreja Ortodoxa Russa em diversos campos da sociedade, tanto dentro como fora do país, estabelecendo relações com outros povos e igrejas. Foi aí que Putin lembrou a questão da Ucrânia, fazendo afirmações incisivas e condenando duramente o que considerou como uma "parasitação" da vida religiosa do país pelo governo de Kiev, cujo projeto "não é relacionado à fé, mas a uma falsa fé". Ele foi mais duro ao comparar a ação de Kiev que, em abril, através do Parlamento, pediu a criação de uma Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala, aceita em 11 de outubro por Constantinopla, aos bolcheviques, que perseguiram, controlaram e mataram quase a totalidade dos religiosos ortodoxos na antiga URSS, principalmente entre 1918 e 1939.

"Em essência, há uma grosseira interferência na vida da Igreja. Seus iniciadores pareciam ter aprendido com os sem-Deus do último século, que expulsaram os fiéis das igrejas e envenenaram e perseguiram o clero."

          A frase foi seguida por aplausos do público.

          O presidente afirmou que as autoridades russas jamais aceitarão a interferência do Estado nos assuntos da Igreja, principalmente no exterior, e que "se reservam o direito de reagir e fazer tudo para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião".

          A Constituição da Rússia de 1993 garante a separação Igreja-Estado (Artigo 14) desde a efetiva separação realizada pela Lei sobre Liberdade de Consciência e Associações Religiosas assinada em 1º de outubro de 1990 por Mikhail Gorbachev e reafirmada em nova lei em 26 de setembro de 1997, onde reconhece o papel especial no país da Igreja Ortodoxa Russa e dá reconhecimento especial ao islam, o judaísmo e o budismo, as chamadas "religiões tradicionais".

          A liberdade religiosa, porém, tem sofrido restrições na Rússia, principalmente após a introdução de uma série de emendas às leis de combate ao terrorismo conhecida como Lei Yarovaya, aprovada em 24 de junho de 2016. Sob pretexto de combate ao extremismo, a lei dificultou o registro, a posse de propriedades e a ação missionária de grupos religiosos, principalmente das religiões consideradas "não tradicionais" e que se recusam a se registrar oficialmente junto ao Estado. Os grupos mais afetados foram minorias cristãs e religiões orientais. Uma das consequências mais visíveis foi o banimento do Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia em 20 de abril de 2017. Todas suas instalações passaram às mãos do Estado e as atividades religiosas foram proibidas. Cristãos batistas também foram perseguidos, e até há poucos meses havia em torno de vinte de seus membros na cadeia. Apesar de ser grandemente privilegiada por majoritária, ser considerada uma das religiões tradicionais e gozar de acordos com instituições públicas como universidades, alguns religiosos da Igreja Ortodoxa Russa têm reclamado das restrições imposta pelo governo a grupos minoritários.

          As acusações de Putin sobre o governo de Kiev também servem à região de Donbass numa guerra promovida por combatentes pró-Rússia com apoio de Moscou. Há diversas denúncias de violação da liberdade religiosa, inclusive com o assassinato de quatro religiosos protestantes, como apontou um documento da organização IPHR da Bélgica em parceria com a CCL da Ucrânia ainda em abril de 2015. Essas perseguições são promovidas por batalhões como A Legião Mais Gloriosa do Don, formado por cossacos autoproclamados defensores da fé ortodoxa, e o Exército Ortodoxo Russo, liderado pelo principal combatente russo, Igor Strelkov. Alguns religiosos e sacerdotes da Igreja Russa, ainda que não em sua maioria, têm dado apoio a esses combatentes. A Ucrânia seria o único país do mundo onde há conflito armado de cristãos contra cristãos.

(Da esquerda para a direita: Igor Dodon, Kirill e Putin.)

          Há especulações de como Putin reagirá à perda do território canônico da Ucrânia. Alguns analistas consideram que o Kremlin poderia reagir militarmente no sentido de dar novo fôlego à guerra no país vizinho. Neste contexto, a crise do Estreito de Kerch poderia ser uma isca para desencadear uma nova ação militar.

          Em 22 de dezembro, cinco dias após o Concílio da Unificação em Kiev escolher Epifânio como líder da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana, o Patriarca Kirill afirmou que a Igreja Russa deveria analisar a possibilidade de uma nova concordata com o Estado russo no sentido de aprofundar a cooperação entre as partes; deveria repensar sua ação em prol da unidade da Ortodoxia, rompida em 15 de outubro, e buscar no Vaticano um aliado neste sentido (e, dada a postura de Francisco, a Igreja Católica fará o possível para não desagradar Moscou em nome do diálogo ecumênico); e deverá trabalhar para expandir sua influência no exterior. Estas diretrizes apontam diretamente para a necessidade de reverter a perda territorial na Ucrânia, o prestígio da Igreja na Ortodoxia e da Rússia no cenário mundial.

          Conforme Yuri Ruban, alto funcionário do Gabinete Presidencial do governo de Kiev, Kirill pretende ir à Ucrânia e visitar Pechersk Lavra (Monastério das Cavernas), um dos grandes centros espirituais do mundo ortodoxo e onde, segundo a carta de 14 de dezembro, as autoridades ucranianas estariam tentando privar seu uso por monges da Igreja Russa. A viagem teria como objetivo, entre outras coisas, apoiar os candidatos pró-Rússia à presidência do país, cuja eleição será em 31 de março. Para Yuri, o Kremlin está usando a fé para influenciar politicamente os eleitores ucranianos.

          Mesmo que Kirill vá à Ucrânia sem qualquer pretensão política, sua simples presença exigiria um enorme esquema de segurança e uma complicada negociação entre dois países cujas relações pioraram muito desde 2014. É de se esperar, também, reação de grupos nacionalistas, inclusive de extremistas anti-Rússia. Não é necessário dizer que isto provocaria mais tensão na região. Isto daria à Rússia pretextos para retaliar qualquer ação ucraniana, a exemplo da suposta invasão das águas territoriais russas no caso do estreito de Kerch.

          Por mais que uma visita do Patriarca seja religiosamente legítima (e mesmo que Kirill e Putin não adotassem o mesmo tom nos seus discursos como na ocasião da comemoração de dez anos de entronização do Patriarca, ou que a separação Igreja-Estado na Rússia constituísse uma laicidade estrita), esta seria a ocasião para Moscou arranjar pretextos e agir política e militarmente na Ucrânia.

          Além da das fortes divergências políticas que explodiram com a Euromaidan no final de 2013, a tomada da Crimeia e a guerra que se seguiu em 2014, para o analista Taras Kuzio a formação da Igreja Ortodoxa Ucraniana é mais um capítulo (talvez definitivo) da perda da Ucrânia pela Rússia. Este é o mais duro golpe na pretensão de Putin de restaurar o Império Russo.

          Enquanto a viagem mantém-se no plano das possibilidades, os ucranianos esperam uma reação russa à perda da Ucrânia. Putin, por enquanto, continua apenas na retórica.