terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Como a Rússia reagirá à fundação da nova Igreja Ucraniana?

(Bartolomeu I e Putin)

          Com o anúncio oficial da criação da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev em 5 de janeiro deste ano, a Igreja Ortodoxa Russa perdeu jurisdição canônica (religiosa) sobre o território ucraniano depois de 332 anos. Em 1686, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla havia colocado o então Patriarcado de Kiev sob a autoridade de Moscou, expandindo o território canônico deste último. Na época, o que se conhece hoje como "Ucrânia" possuía um território muito diferente da atual. Constantinopla revogou esta inclusão no Anúncio de 11 de outubro do ano passado.

          Sem uma influência religiosa direta, tanto a Igreja Russa com o governo russo perderam grande capacidade de influenciar cultural e politicamente a população ucraniana. Como vemos recorrentemente, o Patriarca Kirill e o presidente Putin costumam aparecer juntos em público e possuem um discurso muito similar quando se trata de definir a identidade do país, tarefa que o Kremlin tomou para si e utiliza como um de seus fundamentos políticos e ideológicos.

          Este vínculo político e cultural entre Igreja e Estado na Rússia faz do poder um elemento de ação e reação aos acontecimentos que envolvem a esfera religiosa.

          De acordo com Paul Goble, os países do Ocidente não compreendem a reação da Rússia a acontecimentos da amplitude como a da atual querela religiosa. Para Moscou, isto significa abdicar de seu histórico papel imperial. A criação da Igreja Ucraniana desmembrada da Igreja Russa significa a retração do papel da Rússia no mundo, e de forma direta sobre os povos vizinhos. Como Putin não pode fazer nada a respeito, ao menos não diretamente, a expectativa de Goble é uma ação muito mais negativa do que a esperada pelo Ocidente e países vizinhos, que geralmente subestimam uma reação russa. A tomada da Crimeia e o início da guerra na Ucrânia em resposta aos protestos de 2013-14 que derrubaram Yanukovich, aliado político de Moscou, é o exemplo mais evidente disto.

(Captura dos marinheiros ucranianos, nos barcos menores, em 25 de novembro passado, no Mar Negro.)

          Há outros elementos que podem contribuir para uma reação agressiva da Rússia e que aparentemente nada têm a ver com a questão religiosa. O conflito na Ucrânia pode ser o ambiente e a justificativa desta reação. Num paper publicado em 1º de fevereiro, o cientista político Andreas Umland aponta um possível desenrolar do conflito, que tem potencial de se deslocar da região de Donbas para o Mar de Azov, que banha os portos de Mariupol e Berdyansk, importantes para o leste ucraniano. A captura dos 24 marinheiros ucranianos pela marinha russa no Estreito de Kerch em 25 de novembro passado sinaliza esta possibilidade. Umland cita quatro fatores para essa possível mudança geográfica do conflito: a falta de reação do Ocidente à crise do Estreito de Kerch (12 dias depois do artigo, uma comissão bipartidária do Senado americano formatou uma legislação para aplicar novas sanções sobre Moscou devido, entre outras coisas, a esta crise), a ausência de organizações internacionais de monitoramento no Mar de Azov, a viabilidade da nova Ponte do Estreito de Kerch inaugurada pela Rússia em maio de 2018 (muito cara e subutilizada) e o precário serviço de água potável na Crimeia.

          Se Goble estiver correto, o forte desagravo da Rússia com relação à criação da nova Igreja Ucraniana pode ser um quinto fator, não propriamente geopolítico, mas como um motivador para uma ação agressiva por parte do Kremlin.

          Mas algumas ações estariam em andamento. Segundo o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) (divulgado também pelo Serviço de Informações Religiosas da Ucrânia, uma agência de perfil inter-religioso), espiões russos e serviços de segurança de Donbas estariam recrutando ucranianos para incendiar igrejas administradas por padres ortodoxos que saíram da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou para ingressar na nova Igreja do Patriarcado de Kiev. Em troca, receberiam U$ 2000 pelo serviço. O agente deveria filmar a ação para comprovar o ataque e então teria o dinheiro depositado em sua conta bancária. A SBU firma ter abortado o recrutamento de um ucraniano. Esta seria uma ação não apenas para intimidar a expansão territorial da Igreja de Kiev, como também para punir os que seriam "traidores" segundo o Kremlin.   

          O país herdou da União Soviética a instrumentalização da Igreja Russa para sua política externa. Igreja e Estado trabalham juntos neste aspecto, na qual a Igreja se torna beneficiária da ordem política criada pelo Estado. Um exemplo é a própria Crimeia, onde a única paróquia da Igreja Ucraniana, localizada em Simferopol, corre o risco de perder permissão de funcionamento por não se adaptar à legislação russa. De acordo com a lei, grupos religiosos só podem possuir propriedades com um registro junto ao Estado, o que a Igreja Ucraniana não poderia fazer, dado que o país que ela representa não reconhece a Crimeia como parte da Rússia. Outro caso foi a posse da Catedral São Nicolas em Nice, na França, pelo Estado russo, em janeiro de 2010. Em 2007, o Kremlin havia entrado com um processo na justiça francesa alegando que a posse  a catedral pela comunidade exilada da Revolução de 1917 havia expirado após 99 anos. Com a causa ganha, a Rússia recebeu, além do edifício, em torno de 300 ícones religiosos raros. Esta transferência de propriedade é uma forma de promoção da cultura russa no exterior e de expansão do que Moscou chama de "mundo russo".

(Rara igreja de madeira em chamas em Gorlovka, leste da Ucrânia, em 8 de agosto de 2014. Representativo dos efeitos religiosos do conflito e da tensão entre igrejas e governos.)

          Outra ação possível da Rússia seria por via judicial, não na Ucrânia, mas na Turquia. O doutor em direito e diretor de um instituto de pesquisa em Moscou, Igor Ponkin, lista uma série de crimes que Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de Constantinopla, teria cometido ao anular a decisão da Carta Sinodal de 1686 (e divulgado o Tomos de autocefalia da Igreja Ucraniana em 5 de janeiro, que o autor não analisa). Bartolomeu (que Ponkin chama pelo nome civil Dimitrios Arhondis, desqualificando-o para o cargo), teria feito uma falsa anulação da antiga decisão, afirmando que a linguagem jurídica atual é inócua em relação à terminologia da época. A Ucrânia, que na época não existia enquanto tal, também possuía um território muito diferente. Ponkin acusa o Patriarca de crimes graves segundo o Tratado de Lausanne, de 1923, e a Constituição e o Código Penal da Turquia, onde reside, sugerindo uma ação criminal contra ele. Bartolomeu estaria violando nove artigos destas três leis, entre eles a promoção de uma convulsão social em país estrangeiro a partir da Turquia, a incitação ao ódio inter-religioso (na Ucrânia e na Turquia) e a promoção de uma guerra entre Rússia e Ucrânia. A posição de Ponkin é clara: Bartolomeu não seria um Patriarca legítimo, e caberia à Turquia (em consonância com a Rússia) tomar as medidas judiciais cabíveis.

          Enquanto a Rússia não age de forma explícita na questão religiosa, os analistas ficam especulando suas possíveis reações. Com base na história recente, ainda veremos o que o Kremlin fará para compensar a posição perdida.

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