terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Kirill, Putin e a perda da Ucrânia

(Kirill no seu discurso de 10 anos como Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa.)

          Neste 1º de fevereiro, o Patriarca Kirill celebrou seus 10 anos à frente da Igreja Ortodoxa Russa. O evento de comemoração foi realizado no Palácio do Estado no Kremlin de Moscou na presença de Vladimir Putin, presidente da Rússia, Igor Dodon, presidente da Moldávia, e autoridades políticas e religiosas.

          Em seu discurso, Kirill afirmou que os dois grandes desafios do cristianismo nos dias de hoje são a reintegração da Igreja na sociedade, cobrindo o hiato entre ambos e reintroduzindo nas pessoas os valores defendidos pela fé cristã, e a pretensa autoridade absoluta da ciência, que propõe o progresso técnico às custas de princípios éticos e a disseminação do transhumanismo, filosofia que aposta no "melhoramento" da natureza humana. Boa parte de seu discurso foi dedicado a estes temas.

          No início de sua explanação, porém, o Patriarca deu atenção à situação da Ucrânia. Afirmou que a estrutura da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (sem citá-la diretamente), oficializada no último dia 5 de janeiro, consistia numa "estrutura de pseudo-igreja formada por cismáticos". Responsabilizou as autoridades ucranianas e o Patriarcado de Constantinopla pela intrusão no território canônico da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou, e o governo de Kiev de discriminar os fiéis russos, tomar suas igrejas e incentivar o ódio inter-religioso. 

          As declarações sobre a Ucrânia repetiram a acusação de perseguição aos ortodoxos da Igreja Russa pelo governo ucraniano que Kirill divulgou numa carta enviada em 14 de dezembro de 2018 a diversas lideranças políticas e religiosas do mundo, como o Papa Francisco, o Arcebispo de Canterbury Justin Welby, o líder do Conselho Mundial de Igrejas Olav Fyske Tveit, o secretário-geral da ONU Antonio Guterres, Angela Merkel, Emmanuel Macron, entre outros.

          A presença de Putin e Dodon (aliado do presidente russo) na comemoração de sua entronização, o tema político e a carta aos líderes civis e religiosos mostram a atuação política de Kirill em temas nacionais e estrangeiros. Kirill é muito mais do que "apenas" o líder religioso da Igreja Ortodoxa Russa. Ele é também o disseminador de ideias que são compartilhadas pelo Estado russo, com quem trabalha em consonância.

(Discurso de Putin. Palácio do Estado no Kremlin lotado.)

          Antes do Patriarca, Vladimir Putin fez um discurso de aproximadamente dez minutos. Parabenizou Kirill pela data, elogiou seu trabalho e exaltou as ações da Igreja Ortodoxa Russa em diversos campos da sociedade, tanto dentro como fora do país, estabelecendo relações com outros povos e igrejas. Foi aí que Putin lembrou a questão da Ucrânia, fazendo afirmações incisivas e condenando duramente o que considerou como uma "parasitação" da vida religiosa do país pelo governo de Kiev, cujo projeto "não é relacionado à fé, mas a uma falsa fé". Ele foi mais duro ao comparar a ação de Kiev que, em abril, através do Parlamento, pediu a criação de uma Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala, aceita em 11 de outubro por Constantinopla, aos bolcheviques, que perseguiram, controlaram e mataram quase a totalidade dos religiosos ortodoxos na antiga URSS, principalmente entre 1918 e 1939.

"Em essência, há uma grosseira interferência na vida da Igreja. Seus iniciadores pareciam ter aprendido com os sem-Deus do último século, que expulsaram os fiéis das igrejas e envenenaram e perseguiram o clero."

          A frase foi seguida por aplausos do público.

          O presidente afirmou que as autoridades russas jamais aceitarão a interferência do Estado nos assuntos da Igreja, principalmente no exterior, e que "se reservam o direito de reagir e fazer tudo para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião".

          A Constituição da Rússia de 1993 garante a separação Igreja-Estado (Artigo 14) desde a efetiva separação realizada pela Lei sobre Liberdade de Consciência e Associações Religiosas assinada em 1º de outubro de 1990 por Mikhail Gorbachev e reafirmada em nova lei em 26 de setembro de 1997, onde reconhece o papel especial no país da Igreja Ortodoxa Russa e dá reconhecimento especial ao islam, o judaísmo e o budismo, as chamadas "religiões tradicionais".

          A liberdade religiosa, porém, tem sofrido restrições na Rússia, principalmente após a introdução de uma série de emendas às leis de combate ao terrorismo conhecida como Lei Yarovaya, aprovada em 24 de junho de 2016. Sob pretexto de combate ao extremismo, a lei dificultou o registro, a posse de propriedades e a ação missionária de grupos religiosos, principalmente das religiões consideradas "não tradicionais" e que se recusam a se registrar oficialmente junto ao Estado. Os grupos mais afetados foram minorias cristãs e religiões orientais. Uma das consequências mais visíveis foi o banimento do Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová na Rússia em 20 de abril de 2017. Todas suas instalações passaram às mãos do Estado e as atividades religiosas foram proibidas. Cristãos batistas também foram perseguidos, e até há poucos meses havia em torno de vinte de seus membros na cadeia. Apesar de ser grandemente privilegiada por majoritária, ser considerada uma das religiões tradicionais e gozar de acordos com instituições públicas como universidades, alguns religiosos da Igreja Ortodoxa Russa têm reclamado das restrições imposta pelo governo a grupos minoritários.

          As acusações de Putin sobre o governo de Kiev também servem à região de Donbass numa guerra promovida por combatentes pró-Rússia com apoio de Moscou. Há diversas denúncias de violação da liberdade religiosa, inclusive com o assassinato de quatro religiosos protestantes, como apontou um documento da organização IPHR da Bélgica em parceria com a CCL da Ucrânia ainda em abril de 2015. Essas perseguições são promovidas por batalhões como A Legião Mais Gloriosa do Don, formado por cossacos autoproclamados defensores da fé ortodoxa, e o Exército Ortodoxo Russo, liderado pelo principal combatente russo, Igor Strelkov. Alguns religiosos e sacerdotes da Igreja Russa, ainda que não em sua maioria, têm dado apoio a esses combatentes. A Ucrânia seria o único país do mundo onde há conflito armado de cristãos contra cristãos.

(Da esquerda para a direita: Igor Dodon, Kirill e Putin.)

          Há especulações de como Putin reagirá à perda do território canônico da Ucrânia. Alguns analistas consideram que o Kremlin poderia reagir militarmente no sentido de dar novo fôlego à guerra no país vizinho. Neste contexto, a crise do Estreito de Kerch poderia ser uma isca para desencadear uma nova ação militar.

          Em 22 de dezembro, cinco dias após o Concílio da Unificação em Kiev escolher Epifânio como líder da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana, o Patriarca Kirill afirmou que a Igreja Russa deveria analisar a possibilidade de uma nova concordata com o Estado russo no sentido de aprofundar a cooperação entre as partes; deveria repensar sua ação em prol da unidade da Ortodoxia, rompida em 15 de outubro, e buscar no Vaticano um aliado neste sentido (e, dada a postura de Francisco, a Igreja Católica fará o possível para não desagradar Moscou em nome do diálogo ecumênico); e deverá trabalhar para expandir sua influência no exterior. Estas diretrizes apontam diretamente para a necessidade de reverter a perda territorial na Ucrânia, o prestígio da Igreja na Ortodoxia e da Rússia no cenário mundial.

          Conforme Yuri Ruban, alto funcionário do Gabinete Presidencial do governo de Kiev, Kirill pretende ir à Ucrânia e visitar Pechersk Lavra (Monastério das Cavernas), um dos grandes centros espirituais do mundo ortodoxo e onde, segundo a carta de 14 de dezembro, as autoridades ucranianas estariam tentando privar seu uso por monges da Igreja Russa. A viagem teria como objetivo, entre outras coisas, apoiar os candidatos pró-Rússia à presidência do país, cuja eleição será em 31 de março. Para Yuri, o Kremlin está usando a fé para influenciar politicamente os eleitores ucranianos.

          Mesmo que Kirill vá à Ucrânia sem qualquer pretensão política, sua simples presença exigiria um enorme esquema de segurança e uma complicada negociação entre dois países cujas relações pioraram muito desde 2014. É de se esperar, também, reação de grupos nacionalistas, inclusive de extremistas anti-Rússia. Não é necessário dizer que isto provocaria mais tensão na região. Isto daria à Rússia pretextos para retaliar qualquer ação ucraniana, a exemplo da suposta invasão das águas territoriais russas no caso do estreito de Kerch.

          Por mais que uma visita do Patriarca seja religiosamente legítima (e mesmo que Kirill e Putin não adotassem o mesmo tom nos seus discursos como na ocasião da comemoração de dez anos de entronização do Patriarca, ou que a separação Igreja-Estado na Rússia constituísse uma laicidade estrita), esta seria a ocasião para Moscou arranjar pretextos e agir política e militarmente na Ucrânia.

          Além da das fortes divergências políticas que explodiram com a Euromaidan no final de 2013, a tomada da Crimeia e a guerra que se seguiu em 2014, para o analista Taras Kuzio a formação da Igreja Ortodoxa Ucraniana é mais um capítulo (talvez definitivo) da perda da Ucrânia pela Rússia. Este é o mais duro golpe na pretensão de Putin de restaurar o Império Russo.

          Enquanto a viagem mantém-se no plano das possibilidades, os ucranianos esperam uma reação russa à perda da Ucrânia. Putin, por enquanto, continua apenas na retórica.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário