domingo, 12 de junho de 2016

Oligarchs, ideologists and extremists: the penetration of Russia into Europe*

(International Eurasianist Movement symbol)

In that i´m going searching the characters of Russian action in Europe i´m discovering the existence of a network composed of the following elements: 

1 - Russian oligarchs, responsible for financing and promoting meetings and discussion groups among stakeholders;
2 - Russian ideologists, responsible for promoting pro-Russia ideologies in order to attract neighboring countries to it´s sphere of influence;
3 - Europeans politicians of the following trends: a) extreme right-wing, b) fascists, c) extreme left-wing. They all have in common a critical opinion about European Union (eurocepticism), US role in the world and Europe, liberal capitalism and, in general, cultural agenda of release of customs (gay marriage, abortion, minorities policies, etc), except for the extreme left. Lastly, they nourish sympathy for Russia and the country´s leadership personified by Putin.
4 - political activists of nazifascist, communist, nationalist and racialist character; responsable for acting inside Russia and establish contact with other European movements and groups on wich are inspired.

Groups 1, 2 and 4 are formed by people direct or indirectly linked to Kremlin, in a relation, in my opinion, of symbiosis with Russian government. That is, there would be no full government control over these groups, and these groups don´t exert influence in order to directly control the government of Moscow.

(Alexander Dugin)

The highlight within these actors is the International Eurasian Movement, created and led by Alexander Dugin, the Russian intelectual currently most influential. Dugin, as he has said, doesn´t claim to act directly on policy but lead it behind the scenes advising, monitoring, guinding, publishing books and articles and disseminating ideas through meetings and contacts inside and outside Russia.

The example of existing contacts in this network, penetration and the emergence of the extremist movements in Russia have origin and inspiration in European ideologies and political movements. Therefore, Russia imports these elements from Europe and then turn to (and against) it in order to absorb it to it´s sphere of influence.

 In following weeks i will detail everything about this network in this blog.

*published in Portuguese on June 26th 2015.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Marine Le Pen, Brexit e o "caso Lisa": o que a Rússia pode perder com os últimos eventos na Europa

(Marine Le Pen, presidente do Front Nacional francês: campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia. Bom para a Rússia.)

Nos últimos dias de abril e neste início de maio de 2016, a líder do partido fascista Front National, Marine Le Pen, esteve no Reino Unido para fazer campanha pela saída deste país da União Europeia. No próximo 23 de junho os britânicos irão às urnas num referendo para decidir pela permanência ou saída do Reino do bloco. A campanha pela saída é chamada de Brexit, uma fusão das palavras "Britain" ([Grã] Bretanha) e "exit" (saída).

A pergunta que fica é: por que Marine Le Pen foi fazer campanha num outro país? Segundo a reportagem, críticos afirmam que a atuação de Le Pen é para consumo interno. Seu partido é notório crítico da União Europeia, bem como da imigração (principalmente muçulmana) e da perda de soberania da França para o bloco. A expectativa de Le Pen é que com a saída do Reino Unido haveria uma reação em cadeia que levaria à saída de outro países, levando à dissolução do bloco. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando os países europeus organizaram referendos populares para aprovar uma nova constituição da União Europeia, que requeria unanimidade para sua aplicação. Depois da vitória do "não" na França, Holanda e Irlanda seguiram o mesmo caminho, e a constituição não foi aprovada.

Aqui o importante é ressaltar a intimidade entre o Front National e o Kremlin. Como já comentei neste blog com base num artigo da professora Marlene Laruelle, o governo russo tem criado e expandido organizações culturais, políticas, de mídia, etc, a fim de estabelecer contatos e alianças  com grupos de extrema-direita, fascistas e de extrema-esquerda na Europa. A finalidade é torná-los palatáveis ao público europeu e patrocinar sua chegada ao poder. Tais grupos, além de serem críticos quanto à forma de organização da União Europeia, são aliados ou simpáticos a Moscou. Estando no poder estes grupos tratariam de aproximar os europeus da órbita russa distanciando-os dos Estados Unidos. Um exemplo é a já comentada coalização Syriza, na Grécia, de extrema-esquerda, numa aliança com os Gregos Independentes, de extrema-direita (mais detalhes aqui).

Laruelle cita o Front Nacional de Marine Le Pen como o principal exemplo desta proximidade. Incapaz de atrair os conservadores tradicionais europeus, o Kremlin aposta nos extremistas. Le Pen é conhecida, entre outras coisas, pela intimidade pessoal com Vladimir Putin e por ser crítica das ações do Ocidente contra a Rússia na esteira da crise na Ucrânia. Recentemente o tesoureiro de seu partido anunciou que pretende conseguir financiamento de 27 milhões de euros dos russos para a campanha das eleições parlamentares de 2017. A alegação é de que os bancos franceses se negam a dar empréstimos ao partido. Já os críticos dizem que é justamente o apoio de Le Pen à Rússia na questão ucraniana a causa do financiamento. Importante notar que a crítica à política ocidental com relação à crise na Ucrânia é recorrente entre os políticos simpáticos à Moscou.

(Fotografia de Putin pintada como uma figura ameaçadora por detrás da bandeira da União Europeia em Praga, República Tcheca, em 8 de março de 2014, logo após a anexação da Crimeia pela Rússia.)

É de interesse do Kremlin que o Reino Unido saia da União Europeia atingindo dois objetivos de uma só vez: primeiro porque Londres tem relações ruins com Moscou e é um tradicional aliado de Washington; segundo porque isto enfraqueceria a União Europeia, tirando um adversário político ao mesmo tempo em que tornaria o bloco mais suscetível à influência russa. Assim como os meios de comunicação russos no Reino Unido, Marine Le Pen é uma porta-voz evidente, mas útil ao Brexit.

Outro acontecimento de significado da ação da Rússia na Europa é o efeito negativo do "caso Lisa". Um artigo da revista The Economist aponta o escândalo criado em torno deste falso caso como evidência da interferência do Kremlin dentro da Alemanha, e uma tentativa de atingir a autoridade da chanceler Angela Merkel.

(Protesto do Pegida em frente à Chancelaria da Alemanha na esteiro do "caso Lisa". Na camiseta se lê: "Alemanha em perigo".)

O caso Lisa ocorreu em 11 de janeiro deste ano. Lisa era uma garota de 13 anos de uma família de imigrantes russos. Ela teria sido estuprada por trinta homens de aparência de imigrantes do sul (África/Oriente Médio). O caso foi noticiado pela emissora de língua russa na Alemanha, Channel One, e causou protestos e imigrantes de língua russa em todo o país. O problema é que a polícia alemã não confirmou o caso, pelo contrário: afirmou que Lisa tinha sido sequestrada, mas que o assédio sexual não foi estupro, e sim abuso, e que seu corpo não tinha sinais de um ato forçado. O caso não era tão grave quanto noticiava o Channel One. O problema é que o canal continuou a falar em estupro, e um advogado alemão denunciou à polícia o jornalista que fazia a cobertura do caso por incitação à violência.


(Protesto anti-imigração em Dresden, Alemanha, em novembro de 2015. Bandeira da Rússia - esta com o emblema imperial - são comuns nos protestos da organização e mostram simpatia pelo país.)

A grande repercussão do caso provocou protestos organizados por grupos anti-imigração, principalmente o Pegida, e imigrantes russos. O perfil do Pegida é similar aos grupos e partidos pró-Rússia, como o Alternativa para a Alemanha. É comum nos protestos do grupo haver bandeiras russas. O ministro das relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, acusou as autoridades alemãs de acobertarem o caso. Ficou evidente no discurso de Lavrov o princípio de proteção dos habitantes de língua russa além-fronteiras, evocado, por exemplo, na anexação da Crimeia em fevereiro de 2014 sob a alegação de violência contra russos na região. Merkel, o ministro das relações exteriores Frank-Walter Steinmeier e o membro do Comitê de Relações Internacionais do governo Norbert Roettgen acusaram Moscou de propaganda, intromissão e manipulação do caso Lisa e da política interna da Alemanha. Segundo um entrevistado para um artigo da revista The Economist, a Rússia foi "longe demais" e perdeu apoio de grande parte de seu establishment, inclusive da centro-esquerda.

O artigo diz ainda que Putin está explorando as fraquezas da Alemanha. Não foi coincidência que o caso Lisa apareceu no dia 11 de janeiro, poucos depois de uma série de ataques sexuais no país durante o Ano Novo, principalmente na cidade de Colônia, onde um grupo de aproximadamente mil homens de aparência árabe ou norte-africana assediou várias mulheres, inclusive com um estupro. A repercussão do caso Lisa inflamou ainda mais o sentimento anti-imigração, que cresceu depois que o país receber 1,1 milhão de refugiados, principalmente da Síria.

(Maior parte dos britânicos é favorável à permanência na UE. O referendo será dia 23 de junho.)

Não é surpresa para a jornalistas e acadêmicos a influência de pessoas vinculadas ao Kremlin na política europeia. Mas estes dois acontecimentos jogam contra os russos: primeiro porque o caso Lisa da Alemanha deixou mais explícita a tentativa de Moscou de interferir na política do país, arranhou sua imagem e tornou mais evidente sua estratégia de usar a crise dos refugiados com o objetivo de inflamar o ativismo de seus aliados no campo da extrema-direita e dos nacionalistas. Segundo porque ao apoiar o Front National o Kremlin torna mais evidente sua estratégia de enfraquecer a União Europeia, já que Marine Le Pen está fazendo campanha aberta contra o bloco num país estrangeiro. Ademais, segundo a última atualização no site do Financial Times, de 26 de abril, a maioria da opinião pública britânica é a favor da permanência do Reino no bloco. São 47% contra 41%.

Em princípio uma Europa unida é melhor para conter as pretensões russas no continente do que uma Europa fragmentada. Moscou não tem capacidade de enfrentar os europeus no campo da política e da economia, principalmente com um país cujo PIB deve ter retração de 1% neste ano depois de retrair 3% no ano passado. Por isso o Kremlin aposta num jogo dialético: fomenta a tensão social ao mesmo tempo em que oferece a "solução" com partidos e grupos extremistas. É a tática de dividir para conquistar.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Concorrência ao gás russo vem do outro lado da Europa

(Navio da empresa americana Cheniere com tanques de gás natural liquefeito chegando ao porto de Sines, Portugal, dia 26 de abril. )

A revista bimensal New Eastern Europe, especializada em assuntos políticos, econômicos e sociais da Europa Central e Oriental, publicou um breve artigo sobre o fim do quase-monopólio da empresa russa Gazprom sobre o gás vendido à Europa. Segundo o texto, o aumento da produção de gás natural pelos Estado Unidos está estimulando a exportação do produto em forma líquida para a Europa Ocidental. O país já é o maior produtor de gás natural do mundo, ultrapassando a Rússia.

O evento que marcou esta empreitada norte-americana foi a chegada do primeiro carregamento de gás natural liquefeito ao porto de Sines, em Portugal, no dia 26 de abril passado. O navio pertence à empresa Chemiere, que pela primeira vez vende o produto à Europa depois de atender Brasil, Argentina e Índia.

Segundo o artigo da New Eastern a presidência da Gazprom recebeu com relativa indiferença a entrada do gás natural liquefeito na Europa por parte dos americanos, e anunciou que baixará o preço para a venda do gás natural para o continente numa clara tentativa de combater a nova concorrência. Mas se a Rússia, que vende 1/3 de todo o gás natural consumido pela Europa (ver pág. 35-38) tendo o monopólio da venda em alguns países de sua porção oriental, por que ela deveria temer a entrada dos EUA que está vendendo o gás em forma líquida, mais caro do que o russo? E por que o artigo aqui discutido está se apressando em falar do fim do quase-monopólio da Gazprom sobre a Europa?

(Preço do gás natural liquefeito: vendido à Ásia em vermelho; vendido à Europa em azul. Do início de 2014 até agora, a diferença de lucro na venda para os dois continentes é pequena.) 

A questão não é a situação atual, mas a perspectiva do mercado mundial de gás natural num futuro próximo. Segundo a New Eastern, dezenove países do mundo já são exportadores mundiais de gás natural liquefeito, o número de exportadores aumentará, o mercado continua em expansão e a tecnologia para a conversão e transporte do gás em forma líquida está barateando. Ademais, com a desaceleração da economia asiática, principalmente a China, e o aumento da produção americana o preço do produto está caindo em todo o planeta.

Isto trás duas consequências diretas para o mercado do gás: diminui a receita da Gazprom e a demanda do produto na Ásia, tornando a Europa mais atrativa para as exportações dos EUA. A previsão é de que 55% de todo o gás natural produzido pelos EUA seja destinado à Europa. Do lado europeu, a previsão é de que o continente aumente ainda mais a demanda pelo gás: em 2013, 65% do gás natural consumido pela União Europeia era importado. Este número deve subir para 77% em 2025. Mesmo que o aumento da demanda signifique a expansão do mercado tanto para os EUA como para a Rússia, o forte investimento americano na produção e no transporte do produto provocará um aumento da concorrência entre os dois países.

(Gasodutos para a Europa: projeto da Gazprom no pontilhado preto; projeto ocidental no pontilhado azul claro. Agora a concorrência amplia-se para o outro lado do continente europeu.)

Isto pode mudar a geopolítica energética da Europa num curto prazo, talvez mesmo de toda a Eurásia, já que a Rússia também abastece o mercado asiático e terá de reconsiderar sua estratégia de venda para outros países num contexto de queda no preço do produto e de busca por novos mercados.

O mais importante, porém, será a diminuição da capacidade da Rússia de usar o gás como arma política contra a Europa. A nova geopolítica terá impacto nos projetos já comentados neste blog, de gasodutos que interligam Rússia e Europa e de gasodutos conduzidos pelos países do Ocidente com a finalidade de competir com o gás russo extraindo o produto do Mar Cáspio pelo Cáucaso. A disputa, portanto, terá como consequência uma maior queda do preço do produto, o aumento das dificuldades econômicas da Rússia e menores investimentos nesta corrida vinda do leste. É um exagero falar no fim do monopólio da Gazprom sobre a venda do gás à Europa como um todo, mesmo porque a Rússia concede apenas 1/3 do gás consumido por todo o continente, sendo o restante vindo principalmente do Oriente Médio, Argélia e Noruega. O monopólio ameaçado está na parte oriental do continente. O que deve ocorrer, isto sim, é a ampliação da geopolítica energética e a oscilação de seu pêndulo para o Oceano Atlântico e a consequente diminuição da capacidade russa de influenciar a política europeia através da manipulação de preços e da oferta de gás, como ocorreu em 2006 e 2009 nas disputas envolvendo a Ucrânia. A nova preocupação da Rússia está do outro lado da Europa.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Mártires, heróis e outros não tão santos: a construção da nova identidade russa

(Cidade de Kaluga, Rússia)

A antropóloga e professora da Nova Universidade Búlgara, Milena Benovska-Sabkova, realizou um trabalho a respeito da política de memória implementada na Rússia no contexto de reavivamento religioso. Sua atividade teve como referência a cidade de Kaluga, com 350 mil habitantes a 150 km a sudoeste de Moscou, e foi publicado em diversas revistas acadêmicas (aqui - pág. 95-98, aqui e, o mais completo, aqui).

Com o fim da União Soviética, iniciou-se uma série de atividades de pesquisa com a finalidade de reconstituir e reconstruir as comunidades religiosas, igrejas e monastérios destruídos na Rússia. Muito deste trabalho foi realizado pelos chamados kraevedenie, pesquisadores especializados em história local como herança cultural, biografias e origem das famílias. Tal tipo de pesquisador surgiu ainda no tempo da União Soviética e atualmente possui um status semi-oficial, atuando de forma independente e também junto a centros de pesquisas, escolas, igrejas e autoridades locais. Dentro deste ramo estão os kraevedenie de igreja, que realizam o mesmo trabalho, mas voltado especificamente às questões de ordem religiosa, com destaque ao levantamento das igrejas demolidas, pesquisa em arquivos religiosos e levantamento biográfico de clérigos e religiosos, principalmente os desaparecidos no período comunista.

A partir do ano 2000, com a chegada de Vladimir Putin à presidência da Rússia, a atividade dos kraevedenie ganhou grande estímulo oficial: eles passaram a ser cooptados pelas autoridades para trabalhar em pesquisas de resgate da história russa atuando em escolas, museus e em atividades locais como congressos e lançamentos de livros. Assim estes pesquisadores passaram a constituir um grupo semiprofissional relacionado a) ao projeto nacional de política de memória, b) aos projetos regionais vinculados à política de memória a nível nacional, e c) à atividade espontânea de pesquisa realizada por seus membros. Os kraevedenie de igreja também entraram neste processo, e passaram a trabalhar próximo às autoridades da Igreja Ortodoxa Russa. Desta forma, eles consolidaram o papel de intermediários entre o clero ortodoxo e o cidadão comum fazendo uma "ponte" de conhecimento entre os dois grupos sociais.

(Monastério Optina Pustyn, na cidade de Koselsk a 60 km de Kaluga. Fundado no século XV o monastério é um dos principais da Rússia e centro religioso da região. Foi transformado pelos bolcheviques no Museu Kraevedenie em 1917-29, e depois recebeu um departamento de um museu de Koselsk em 1957) 

É através da relação íntima entre os kraevedenie e a Igreja Ortodoxa Russa que ocorre parte do reavivamento religioso na Rússia. Eles trabalham juntos tanto à nível nacional na Comissão Sinodal de Canonização dos Santos como a nível regional, a exemplo da Comissão de Canonização da Eparquia de Kaluga, onde a antropóloga Milena realizou sua pesquisa. Portanto, estes pesquisadores não apenas resgatam a memória passada da ortodoxia como também integram o plano desta Igreja de reconstituir uma identidade religiosa nacional.

Deste 1989 a Igreja Ortodoxa tem realizado uma série de canonizações, dentre eles os confessores e "novos mártires", isto é, os religiosos assassinados ou mortos durante o regime comunista. Os kraevedenie de igreja são de fundamental importância principalmente por resgatar arquivos, memórias de sobreviventes e descobrir cemitérios abandonados nas antigas igrejas. Junto a eles atuam os chamados "empreendedores religiosos" que empenham parte de seu tempo e recursos pessoais para realizar e organizar procissões religiosas, restaurar ícones, recuperar e reconstruir igrejas destruídas e criar os chamados "locais sagrados" para visitação, como o novo memorial projetado em Kaluga para a veneração dos novos mártires.

A política de memória na Rússia também procura reabilitar a memória de civis e militares, principalmente dos soldados mortos na Segunda Guerra Mundial. A chamada "Grande Guerra Patriótica" é considerada, como comenta Angelo Segrillo em "Os Russos" , um momento de enorme trauma, significando praticamente uma refundação do país. Calcula-se que sete mil cidades tenham sido destruídas e até 27 milhões de pessoas tenham morrido neste evento, sendo 100 mil apenas no pequeno distrito de Kaluga.

Os kraevedenie também estão envolvidos neste resgate histórico secular, principalmente na descoberta e catalogação das covas coletivas, atividade que envolve principalmente grupos militares e veteranos. Milena comenta que é através da identificação dos mortos e de um novo funeral digno que ocorre uma "sacralização" dos soldados, vistos como heróis, "mártires" civis da Rússia. "Os mortos anônimos", comenta a antropóloga, "são transformados em heróis via personificação e o 'enterro apropriado'" (p. 20).

A canonização dos novos mártires e principalmente a identificação de heróis nacionais funcionam como uma forma de lidar com o passado traumático, não só da guerra como também da perseguição antirreligiosa. Alguns dos kraevedenie que formaram sua vida acadêmica durante a União Soviética hoje têm de lidar com arquivos da KGB, onde estão documentados muitos dos crimes cometidos contra religiosos como assassinatos, prisões e perseguições. O legado aparentemente irreconciliável do terror comunista contra religiosos e cidadãos comuns é transformado num passado "positivo" através da veneração dos heróis e a canonização dos mártires.

(Catedral de Cristo o Salvador, em Moscou, Sede do Patriarcado de Moscou da Igreja Ortodoxa Russa. Foi destruída pelos bolcheviques a mando de Stálin, em 1931, e reconstruída a partir de 1990 durante o governo Yeltsin. Foi consagrada em 19 de agosto de 2000.) 

No atual governo de Vladimir Putin (2013-2018), existe uma clara tentativa por parte do Kremlin de se aproximar e instrumentalizar ideologicamente os discursos do alto clero da Igreja Ortodoxa sobre a história do país. Esta instrumentalização, que aparece inclusive em declarações públicas de Putin, fomenta a ideia da Rússia como civilização distinta das demais, única e original, em oposição ao Ocidente. Seria através do retorno às suas raízes culturais e o resgate da tradição que a Rússia conseguiria cumprir seus papel como potência a qual está destinada a ser. Desta forma, toda a história russa, inclusive o período comunista, é considerada "sagrada" e necessária como parte de uma experiência única de um povo distinto dos demais. Nas palavras do próprio Putin:

"Muita gente comenta sobre o Túmulo de Lênin, dizendo que ele não corresponde à tradição. O que não corresponde à tradição? Visite apenas o Pechersk Lavra de Kiev ou vá ao Monastério de Pskov, ou ao Monte Athos. Você verá halos de pessoas santas lá. Vá em frente, você pode ver isto tudo lá. Portanto, os comunistas continuaram a tradição mesmo a respeito disto e continuaram competentemente, de acordo com as demandas daqueles tempos." [tradução livre]

(Parada militar em Moscou no Dia da Vitória, comemorado em 9 de maio: o período comunista reabilitado como parte da história "sagrada" da Rússia.)

É possível ver claramente na declaração de Putin a política de memória levada à cabo no seu governo. Por isso o estímulo oficial de um resgate histórico e uma transformação valorativa do período comunista, de onde foram resgatados os novos mártires e heróis da Rússia. Esta política abrange parte do alto clero da Igreja Ortodoxa Russa, além de lideranças e fiéis ortodoxos chamados de "fundamentalistas" e grupos nacionalistas. Estes dois últimos nutrem uma extrema rejeição a todas as influências do Ocidente e reivindicam a canonização de figuras civis de destaque na história russa, inclusive o ditador Josef Stálin. O pesquisador Igor Torbakov, da Universidade de Uppsala, na Suécia, comenta esta tentativa do governo russo de sintetizar as contradições da história russa numa única narrativa:

"Nas palavras de Frederick Corney: 'Putin estava oferecendo uma narrativa da história moderna russa nas quais as turbulências do passado da Rússia serviram meramente como um pano de fundo do progresso recente, e oferece uma reconciliação de verdade' [destaque do autor]. Assim como sua base de apoio consiste de uma ampla coalizão compondo grupos sociais heterogêneos, o regime, na sua questão de legitimidade histórica, busca sintetizar elementos dispersos dos diferentes 'passados' da Rússia numa espécie de fusão eclética. 'Ele tenta unir, ainda que desconfortavelmente, vários aspectos idealizados dos passados czarista, soviético e dos emigrados' e apresenta esta mistura como 'história sem culpa ou dor'". [tradução livre]

A busca por uma verdade indivisível, o fascínio com o irracional, a esperança por encontrar um caminho especial, um destino, uma missão concedida por Deus e/ou pela História são discursos recorrentes entre os intelectuais russos da era pós-soviética, amalgamando todas os acontecimentos e correntes ideológicas num corpo único. Nada mais exemplar destas características do que o pensamento neo-eurasiano de Alexandr Dugin, tantas vezes mencionado neste blog, ou a composição extremamente heterogênea dos membros e grupos ligados ao Partido Rússia Unida de Putin.

A Rússia busca por uma unidade absoluta, uma totalidade que unifique tudo e todos num nova identidade nacional. A política de memória de Moscou é um aspecto desta tentativa de resgatar ou criar uma nova identidade russa, unificando sucessos e traumas, heróis e mártires, crimes e atos de santidade e "santos" de todos os espectros da sociedade russa, mesmo que não sejam tão santos assim.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Theotokos e o mito da "Terceira Roma"


(Theotokos de Vladimir. Há inúmeras cópias da original por todo o mundo.)

               Nossa Senhora é muito venerada no cristianismo ortodoxo e sua presença na fé e cultura entre os povos desta religião é muito marcante.

               O ícone mais comum de Nossa Senhora na ortodoxia é Theotokos, que em grego significa "Mãe de Deus". A Rússia, país com maior população ortodoxa do mundo, recebeu da antiga Bizâncio esta vertente do cristianismo, bem como tradições artísticas, a forma de governo e muitos elementos que regem a ordem social. Historicamente os russos chamavam a sua terra de "Lar da Santíssima Mãe de Deus", numa referência da nação como detentora de uma herança cristã, ao seu ver legítima, e expressa no mito da "Terceira Roma" desenvolvido a partir do final do século XV. Theotokos é a padroeira protetora da Rússia.

               Mas qual é a relação entre a figura da Mãe de Deus e a "Terceira Roma"?

               Theotokos é um dos elementos, entre crônicas históricas e textos filosóficos, que ajudaram a criar ou foram utilizados para legitimar a ideia de que a Rússia era herdeira legítima de Bizâncio, a "Segunda Roma" (sendo a cidade de Roma a "primeira"). 

               Segundo o historiador Andrew Wilson no seu livro The Ukranians. Unexpected Nation, o ícone de Theotokos que está relacionado à legitimação do poder dos reis da antiga Rus de Kiev foi trazida da então Constantinopla para a região de Kiev em 1134, tendo sido fabricado em torno de 1120. A Virgem de Vyshhorod (cidade próxima a Kiev), como ficou conhecida na época, era um dos principais símbolos da autoridade divina dos reis kievanos. Este mesmo ícone é hoje conhecido como Nossa Senhora de Vladimir, ou Theotokos de Vladimir.

(Monastério de Pechersk, em Kiev, um dos principais centros religiosos de todo o mundo ortodoxo, museu do Estado e sede da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia.)

               Depois do cisma entre a Roma e Constantinopla em 1054 que deu origem à divisão católicos-ortodoxos, houve algumas tentativas de estabelecer autocefalia, isto é, autonomia das igrejas ortodoxas locais em relação ao patriarcado de Kiev. Estas iniciativas surgiram ainda no mesmo século do cisma quando iniciaram divergências entre os chefes ortodoxos regionais e aqueles mais fiéis à Kiev.

(Catedral de Dormição em Vladimir, Rússia, para onde foi levada Theotokos de Vladimir.)

               Um dos marcos da divisão entre um ramo setentrional e outro meridional da ortodoxia (e que futuramente ajudaria a moldar a distinção identitária entre Rússia e Ucrânia) foi a captura do ícone de Nossa Senhora de Vyshhorod pelo príncipe kievano Bogoliubski, em 1155, e sua deslocamento para a Catedral da Dormição na cidade de Vladimir, que daria o novo nome ao ícone. Bogoliubski tentou empossar um protegido seu, Feodor, como metropolita da cidade aprofundando as divergências norte-sul. Mais tarde, Feodor foi capturado e levado para Kiev, sendo executado em 1169 provavelmente por divergências políticas e/ou religiosas. O roubo do ícone e a tentativa do príncipe  de empossar um aliado seu como líder ortodoxo local foi uma tentativa de legitimar Vladimir, ao norte, como sucessora legítima do legado histórico da Rus às custas de Kiev, transformando a cidade no centro da ortodoxia eslava.

(Príncipe Bogoliubski, venerado na Igreja Ortodoxa como santo.)

               O ícone foi transferido para o Kremlin de Moscou em 1395, e atribui-se a ele a vitória do principado de Moscóvia na detenção do ataque mongol liderado por Tarmelão. A cidade de Moscou, que deu origem ao principado, havia sido fundada por um "nortista", Yurii Dolgorukii, em 1147, o que mostra que desde sua origem esta cidade e Kiev estiveram em polos opostos sobre legitimidade do legado da antiga Rus.

               O choque da queda de Constantinopla em 1453 e a consequente tentativa de legitimar o novo papel de Moscóvia foram os principais acontecimentos que outorgaram à Rússia o título de "Terceira Roma" e sua pretensão de liderança da ortodoxia. Segundo Wilson, a soberania da Rússia sobre "toda a Rus" seria uma "tradição inventada", tese também sustentada a respeito da doutrina da Terceira Roma pelo historiador de Harvard, Marshall Tillbrook Poe.

               Wilson afirma que esta tradição tem raíz na transferência do ícone de Nossa Senhora de Vladimir para Moscou em 1395 e a primeira tentativa por parte do rei Simeon, o Orgulhoso, de tomar controle total sobre a Igreja Ortodoxa da Rus. O objetivo era tornar o reino guardião da ortodoxia e do legado da Rus de Kiev sob a presença da Theotokos. O historiador também enumera que alguns eventos históricos foram determinantes para o crescimento do poder de Moscóvia a partir do século XV: a autocefalia da Igreja Ortodoxa Russa em 1448, temendo a queda de Constantinopla para os muçulmanos; a consequente ascensão das pretensões do reino moscovita em função desta queda; e a expulsão definitiva dos mongóis da região em 1480. Logo após a criação da Igreja na Rússia, o Estado passou a divulgar uma série de crônicas que legitimavam a nova autoridade religiosa de Moscóvia.


(Príncipe Ivan III, primeiro dos monarcas russos a receber as cartas de Filofei.)

               Em fins do século XV a doutrina da Terceira Roma já circulava em cidades russas como Tver e Novgorod, sendo nesta última o primeiro registro expresso deste termo. Foi a partir do reinado do Grão Duque de Moscóvia, Vasili III (1505-1533), que começou a penetração do mito nos círculos oficiais do reino. O primeiro registro que chega às autoridades ocorre com Filofei, monge de Pskov, próximo a Moscou, que em 1523-24 escreve uma série de cartas para um representante de Vasili III na sua cidade, para o próprio Vasili e depois para seu sucessor, Ivan IV, o Terrível. Para o monge, Roma havia caído em heresia, e Constantinopla havia sido punida por Deus com o domínio muçulmano pela tentativa de se reunir com Roma no Concílio de Florença (1439). Desta forma, Moscóvia era o único reino herdeiro legítimo do cristianismo e o sucessor natural de Bizâncio, já que todos os demais reinos cristãos haviam caído nas mãos dos inimigos. O lugar de um novo império cristão estava vazio, e cabia aos russos ocupar este espaço. Segundo Filofei, profecias (as quais ele não indica a fonte) afirmavam que não havia de existir uma "Quarta Roma", estando Moscóvia com a missão de edificar um império com o objetivo de proteger e divulgar a verdadeira fé cristã até o fim dos tempos. Assim, o Estado moscovita tornava-se o protetor do cristianismo. Para cumprir este papel, o líder deveria ser excepcionalmente hábil e com inteligência capaz de guiar o reino numa missão universal e escatológica. O rei, portanto, agia sob inspiração do próprio Deus, sendo sua autoridade sobre o império e seu papel como protetor da igreja divinamente conferido. Moscóvia legava a "autoridade divina" de Bizâncio, então protetora de Constantinopla.

               A ideia da "Terceira Roma" aparece pela primeira vez num texto oficial em 1547 na  coroação de Ivan IV como Czar da Rússia, cujo significado remonta à "César", conferindo ao líder projeção imperial. O texto da coroação foi escrito ou inspirado pelo então metropolita Makary, um dos formuladores da doutrina da Terceira Roma na época. Em 1589, cinco anos após a morte de Ivan, a Igreja Ortodoxa Russa foi elevada a patriarcado.  Nesta data, Constantinopla esta estava sob ocupação muçulmana há quase 150 anos e dependia de recursos dos russos para se manter. Esta dependência de Moscou favoreceu a elevação da cidade ao seu novo status eclesial.

(Catedral de São Basílio na Praça Vermelha em Moscou, símbolo máximo da Rússia, ao lado da Spasskaya, a principal torre dos muros do Kremlin.)

               Com a tomada de Kazan, capital do kanato adversário da Rússia, Ivan IV ordenou a construção da Catedral de São Basílio, em Moscou, hoje principal símbolo do país. Os oitos dias do cerco de Kazan são representados pelas oito igrejas que formam a estrutura da catedral, tendo uma nova igreja ao centro. Apesar do nome São Basília, a nomenclatura oficial é uma referência à Theotokos: Catedral da Intercessão da Santíssima Mãe de Deus. As oito igrejas também formam uma estrela de oito pontas, número símbolo da ressurreição de Cristo, e faz referência à estrela de Belém que guiou os reis magos até Jesus. A urbanização da cidade centrada na Praça Vermelha e no Kremlin mostra claramente, no plano arquitetônico, Moscou como guia da Rússia e de todo o cristianismo (ver pág. 95). A ideia de Moscou como guia da fé é fortalecida quando o mito da Terceira Roma sacraliza a cidade ao chamá-la de Nova Jerusalém. Moscou é a nova terra prometida.

               Após o reinado de Ivan, o mito da Terceira Roma circulou apenas entre religiosos ortodoxos, mais especificamente os staroveri, ou "velhos crentes", grupo religioso que nega como heréticas as reformas modernizantes da Igreja Russa no século XVIII, não havendo menção da doutrina em documentos de Estado. O reino (e depois império) russo se expandiu sem referências oficiais ao messianismo original. Apenas na metade do século XIX a "Terceira Roma" voltou às vozes dos intelectuais, especialmente a partir da década de 1860 com as publicação das cartas de Filofei. Não por acaso, Alexander Dugin, principal ideólogo do Kremlin e responsável pela reformulação da geopolítica russa sobre bases messiânicas, considera os velhos crentes o depositário da verdadeira tradição ortodoxa e, portanto, da legítima tradição espiritual do povo russo.

             A grande popularização do mito da Terceira Roma levou muitos intelectuais a promoverem uma missão nacional, um messianismo propriamente russo, a exemplo do universalismo cristão de Soloviev. A disseminação e ascensão do comunismo encontrou ressonância de sua missão escatológica entre os intelectuais da época, e até as décadas recentes outros movimentos surgiram propondo à Rússia uma nova missão para o mundo, a de conquista da Eurásia, do Ártico e mesmo do espaço.

               Após habitar por séculos a Catedral da Dormição dentro do Kremlin de Moscou, Theotokos foi retirada para restauração no período bolchevique e hoje está guardada na Galeria Estatal de Tretyakov. Apesar de não estar mais dentro dos muros do Kremlin, ela ainda goza de proteção do Estado. Legítimo ou não, a imagem da Mãe de Deus, Nossa Senhora de Vladimir, continua vinculada ao poder russo, que ainda acredita ter de cumprir no mundo uma missão, seja ela divina ou humana.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O caso Litvinenko e o aprofundamento das divergências entre Londres e Moscou

(Alexander Litvinenko, em novembro de 2006 sem cabelo e no leito do hospital onde faleceu.)

Neste dia 21 saiu  "O Inquérito Litvinenko", documento publicado pela Casa dos Comuns de Londres baseado nas investigações sobre a morte do ex-agente da KGB e FSB Alexander Litvinenko em novembro de 2006.

O inquérito afirma na conclusão que é certo que dois agentes da FSB, Andrey Lugovoy e Dmitri Kovtun, agiram na intenção de envenenar Litvinenko, que o então chefe da FSB, Nikolai Patrushev, provavelmente ordenou seu assassinato, e que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, provavelmente aprovou a ação.

(University College Hospital, em Londres, onde Litvinenko foi internado para tratamento.)

Obviamente tal inquérito explodiu como uma bomba tanto no Reino Unido quanto na Rússia. O uso do material radioativo para matar Litvinenko, o polônio-210, só pode ser produzido por reatores nucleares e, portanto, vir de um país que possui capacidade de fabricar os equipamentos. Não poderia haver envenenamento por polônio sem um suporte estatal. Esta era a suspeita do então governo trabalhista de Tony Blair à época da morte de Litvinenko, suspeita compartilhada pelo atual governo conservador de David Cameron.

O ex-espião atuava como investigador e crítico de Putin, e teria colaborado com o MI6, o serviço secreto britânico. Ele teria sido expulso da FSB pelo próprio Putin depois de conceder uma entrevista a um jornalista russo onde expunha o trabalho sujo do serviço secreto que tinha entre seus objetivos matar diversas figuras proeminentes do país. Com esta denúncia pública, Litvinenko colocava a própria vida em risco, bem como de sua família. Disse ele: "Mas agora chegou eu acredito que a hora chegou [de contar o que faz a FSB]. Se eu estivesse com medo, eu não faria o que faço agora. Mas eu temo pela vida de minha mulher, minha filha" [tradução live]. Com ajuda de Bóris Berezovsky, adversário de Putin, Litvinenko fugiu para o Reino Unido em 2000 onde conseguiu asilo político. Quando estava no hospital tentando se recuperar, o ex-espião acuso Putin de ter ordenado pessoalmente sua morte.

Como era de se esperar, as já antagônicas relações entre Reino Unido e Rússia pioraram. David Lidington, secretário de Estado para a Europa, disse que o inquérito piora ainda mais as relações entre os dois países, e exigiu que a Rússia dê uma resposta e se responsabilize pelo ato. O embaixador russo em Londres, Alexander Yakovenko, também endossou a piora das relações e disse que a conclusão do inquérito era "absolutamente inaceitável", deduzindo disto que as exigências feitas pelo governo britânico à Rússia são igualmente inaceitáveis. O porta voz do Kremlin, Dmitry Peskov, desqualificou as conclusões do inquérito dizendo que são baseadas em suposições, e que tal postura contraria a prática legal russa de investigação. As supostas falhas grosseiras da investigação foram tema de um artigo publicado na Sputnik, imprensa oficial russa notória por sua defesa do governo e por suas repetidas críticas ao Ocidente, que afirma que o procedimento teve motivações políticas, foi instrumentalizado para fazer propaganda contra Putin e a Rússia e que sua publicação neste momento aumenta ainda mais a pressão sobre Moscou a respeito de sua intervenção militar na Síria.

(Emblema do Serviço de Segurança Federal da Federação Russa - FSB - e o logo do Serviço Secreto de Inteligência britânico - MI6)

Como sugere um pesquisador da Catham House de Londres, apesar de Reino Unido e Rússia estarem envolvidos numa crescente cooperação do campo educacional e cultural e de haver mais de mil empresas britânicas atuando na Rússia (bem como muito dinheiro russo investido na City londrina), existe pouca boa vontade de ambas as partes de melhorar as relações de Estado para Estado. Londres e Moscou têm um histórico de rivalidade que remonta principalmente ao Grande Jogo, período do século XIX em que o Império Britânico e o Império Russo mediam forças no domínio sobre a Ásia Central, e desde então estão quase sempre em lados opostos nas questões políticas globais. Como lembra o pesquisador, apesar de uma potencial cooperação na questão do terrorismo e na proliferação das armas de destruição em massa, há um hiato de valores entre ambos países, a exemplo da recorrentes acusações de governo britânico sobre as violações dos direitos humanos por Moscou na Chechênia. Também há um histórico de escândalos de espionagem de ambas as partes sobre a atuação dos serviços secretos britânico e russo em território alheio, e uma massiva propaganda antibritânica na Rússia. Em 2006, mesmo ano da morte de Litvinenko, o Kremlin tentou a extradição de Boris Berezovsky, adversário político de Putin então exilado em Londres, sem sucesso. O mesmo agora ocorre com os espiões acusados de matar Litvinenko, cuja crise política resultou na expulsão de ambos diplomatas russo e britânico. Desde então a relação formal entre Reino Unido e Rússia é incipiente. Também é recorrente a existência de pedidos de asilo políticos de russos para o Reino Unido. Berezovsky morreu em março de 2013 sem ser extraditado.

Certamente divulgação do Inquérito Litvinenko piorará ou pelo menos fortalecerá os problemas de relacionamento entre Londres e Moscou. Quando estive em Londres em 2015, tomei o conhecimento de que quando os britânicos vão ao continente europeu eles dizem estar "indo à Europa". É um sinal claro de que, quanto à Europa (e mais ainda à Rússia), Londres prefere preservar sua autonomia em relação ao restante do continente, vide às resistências de adotar a livre circulação de pessoas dentro da União Europeia e a preservação da libra esterlina como moeda. A aliança preferencial do Reino Unido é os Estados Unudos. Não é à toa que Moscou vê Londres não como um potencial aliado, mas um tradicional opositor de sua estratégia eurasiana de cooptar os europeus à sua esfera e combater o poder de Washington. O caso Litvinenko apenas reforça esta constatação.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Referendo na Armênia aprofunda influência russa sobre o país


(Presidente da Armênia, Serzh Sargsyan, votando no plebiscito do dia 6.)

No último dia 6 de dezembro a Armênia, pequeno país do Cáucaso ao sul da Rússia, foi às urnas para votar pela mudança do regime político do país para parlamentarista ou mante-lo como presidencialista. Segundo os resultados oficiais a maioria votou o "sim" pela mudança de regime:

Sim: 66,35%
Não: 32,35%
Comparecimento às urnas: 50,5%
Proporção do "sim" do total de eleitores: 32,17%

Com o "sim" a Armênia adotará a nova ordem institucional a partir de 2016. A principal mudança será o aumento do poder do primeiro ministro em detrimento o presidente. O presidente continuará a ser eleito diretamente pela população, mas não possuirá vínculo partidário. Já o primeiro ministro, este sim terá o poder real do país, passando a ser indicado pelo partido majoritário no parlamento e tendo entre outras prerrogativas a chefia das forças armadas. Outro elemento será a diminuição do número de deputados parlamentares, de 131 para 101.

Com a mudança constitucional, o atual presidente, Serzh Sargsyan, poderá sair da presidência e ocupar o cargo de primeiro-ministro. Este é o principal ponto criticado pelos partidos e ativistas da oposição. Sargsyan está no seu segundo mandato de cinco anos, que se encerrará em 2018, sendo inelegível para um terceiro. Mas caso Partido Republicano da Armênia (PRA), do qual é líder, vença o próximo pleito, ele será apontado como primeiro-ministro e continuará como líder efeitov do país. O PRA é majoritário no parlamento desde as eleições de 2000, e na oposição não há partido ou liderança capaz de fazer frente ao atual status quo. Alguns de seus críticos afirmam que o principal mecanismo de intervenção da população sobre a política nacional é a eleição para presidente, cujos poderes ficarão muito mais limitados, não podendo sequer vetar projetos parlamentares. De agora em diante serão as eleições parlamentares, dominadas pelo PRA, o centro da vida política da Armênia.

As suspeitas das reais intenções do referendo, o terceiro no país desde a sua independência da União Soviética em 1991, geraram protestos nas ruas ainda no final de novembro e mobilizações pelo "não" por parte de grupos civis e partidos de oposição na TV e na internet. Tais manifestações vieram na esteira dos protestos de rua ocorridos durante o verão contra o aumento das tarifas de energia elétrica, e que desencadearam mais protestos contra a corrupção e a falta de sensibilidade por parte do governo federal para com a sociedade armena.

Mas onde está a Rússia na dinâmica sociopolítica que agitou o referendo na Armênia?

Em primeiro lugar, russos, assim como ocidentais, estiveram no pequeno país do Cáucaso como observadores internacionais do referendo. As posições não poderiam ser mais evidentes: ocidentais e ativistas independentes apontam diversas fraudes que podem inclusive ter alterado o resultado final da votação. Já os russos consideram que o pleito ocorreu dentro da normalidade e sem problemas significativos. Entre os convidados pelo parlamento da Armênia estavam a presidente do Conselho da Assembleia Interparlamentar da Comunidades dos Estados Independentes (CAI-CEI) Valentia Matvyienko, também deputada da Duma e membro do Partido Rússia Unida de Putin, o presidente do Parlamento Europeu e a presidente da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.

(Protesto no centro de Yerevan, dia 7, contra o resultado e as alegadas fraudes um dia depois do referendo que mudou o regime político do país.)

No dia seguinte ao referendo um protesto no centro de Yerevan e o partido de oposição Congresso Nacional Armeno (CNA) rejeitaram seu resultado final denunciando compra e o registro duplo de votos. Uma ativista russa independente presente no país descreveu um processo de fraude chamado de "carrossel", onde o eleitor vendia seu voto para um terceiro após registrá-lo na urna. Um levantamento feito pela ONG Compass Research, instituto de pesquisa da própria Armênia, verificou o desaparecimento de nomes e a repetição de identidades de centenas de eleitores na lista de votantes em diversas zonas eleitorais.

Por outro lado, o presidente da Comissão Central Eleitoral Russa, Vladimir Churov, afirmou que não foi observado qualquer fraude no referendo apesar alguns observadores terem notado pequenos problemas de organização. Churov é conhecido na Rússia como "O Mágico" por dar validação a eleições claramente fraudadas. Ele já foi alvo de protestos como os ocorridos na Rússia em dezembro de 2011 após as eleições parlamentares deste país onde os manifestantes pediam sua renúncia, além da libertação de presos políticos e novas eleições. Um membro da missão da CAI-CEI e membro da Duma (parlamento russo), além de outros dois observadores também da Duma, afirmaram que o referendo foi tranquilo e sem violações da lei.

As posições de validação dos representantes russos não é acidental. A Armênia é o único país do Cáucaso (os demais são Geórgia e Azerbaijão) a possuir uma parceria estratégia com a Rússia, e é bom para os interesses de Moscou haver um regime político forte e estável neste país.



No Cáucaso, a Armênia é o único país a fazer parte da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) que abrange, além de outros países da Ásia Central, Rússia e China. É também o único a fazer parte da recém formada União Econômica Eurasiana (UEE) em 2014 e, junto com o Azerbaijão, faz parte da Comunidade dos Estados Independentes (CEI).

Por outro lado os países vizinhos aos armênios, a Geórgia e o Azerbaijão, possuem problemas de relacionamento com a Rússia e a Armênia, respectivamente, sendo o primeiro em função de sua aproximação com o Ocidente e a guerra de 2008 e o segundo em função de disputas territoriais. Ao sul o Irã possui uma boa relação com Moscou, mas tem relações tensas com o Azerbaijão. Já ao oeste a Turquia mantém fechada sua fronteira com a Armênia depois de ter apoiado o Azerbaijão na Guerra de Nagorno-Karabakh (1988-1994) vendendo armamentos para Baku. Ademais, Turquia e Rússia têm relações intensas mas instáveis, a exemplos dos projetos de transporte de gás russo pelo território turco e a crise política provocada pela derrubada de um caça russo por forças turcas nas últimas semanas.

O cruzamento das relações e tensões descritos acima mostram que a Armênia é um parceiro necessário para a Rússia no Cáucaso ou, nas palavras do analista Gaïdz Minassian referenciado no parágrafo anterior, um "entreposto russo" na região. Dessa forma Moscou garante algum grau de estabilidade ao Cáucaso, contrabalanceando a influência ocidental sobre a Geórgia, utilizando a Armênia como passagem ao Irã e o Oriente Médio ao sul e apaziguando as divergências entre Yerevan-Baku e Yerevan-Ancara. Outro ponto é a intenção russa de manter congelado o conflito entre Armênia e Azerbaijão sobre o território de Nagorno-Karabakh, enclave de maioria armênia dentro do território azeri. Para Moscou é importante não atiçar o conflito para não estimular movimentos separatistas dentro de sua federação, bem como impedir uma maior inclinação dos armenios em direção ao Ocidente. Além da aliança militar com a Rússia, o país recebe vultuosos investimentos das grandes estatais deste país, que dominam a produção e distribuição de energia além de investirem pesado em transporte, telecomunicações, alumínio, diamante e urânio. A Armênia também recebe um montante de aproximadamente U$ 1 bilhão ao ano em remessas de emigrados na Rússia. Tais investimentos garantiram à Armênia um crescimento econômico acima de 10% em parte dos anos 2000. Apesar do apoio econômico e militar, Yerevan vem com insatisfação a falta de firmeza russa em apoia-la nas suas pretensões territoriais sobre Nagorno-Karabakh.

(Yerevan, capital da Armênia. Ao fundo o Monte Ararat, o mais alto e símbolo do país.)

Sua relevância estratégica e as divergências existentes com a Rússia dá Armênia maior margem de manobra e uma relativa (mas limitada) aproximação com o Ocidente. Moscou não gostaria de ter problemas com seus parceiro ao sul, e portanto "permite" que Yerevan mova-se, até certo ponto, para o oeste. É a chamada de "finlandização" de sua política externa, numa referência ao comportamento Finlândia durante a Guerra Fria, cuja fronteira com a então União Soviética obrigava o país a se equilibrar politicamente entre os blocos comunista e ocidental. A Armênia vive hoje situação similar, porque apesar do apoio militar, da presença de uma base russa e de grandes investimentos no seu país, ela também atua em conjunto com a OTAN em ações internacionais, como no Kosovo, e mantém parceria com esta organização. O país também está negociando o aprofundamento das relações com a União Europeia. Em novembro de 2013, porém, o governo voltou atrás na última hora e desistiu de assinar a nova etapa do Acordo de Associação na expectativa de aprofundar suas relações com o bloco, seu principal parceiro econômico e responsável por 39% de suas trocas comerciais. Foi exatamente a mesma atitude sobre o AA que desencadeou a crise na Ucrânia que derrubou o governo Yanukovich em fevereiro de 2014.

O governo Sargsyan, assim como o governo Putin, é herdeiro político dos tempos soviéticos. A exemplo dos colegas russos, seu partido, o Republicano da Armênia, possui uma inclinação "eurasiana" no que diz respeito ao seu apelo cultural e nacionalista. Um exemplo desta inclinação está nas duras críticas que o partido recebeu do ex-presidente e líder do partido de oposição Congresso Nacional Armeno (o mesmo que não aceitou o resultado do referendo), Levon Ter-Petrosyan, ao acusar o PRA de colocar sua ideologia etnorreligiosa (i.e., racista, segundo sua declaração) acima dos princípios constitucionais da Armênia. Há uma proximidade ideológica deste partido com o movimento eurasiano na Rússia, que propõe a união de todos os povos associados aos russos a se unificarem sob um mesmo Estado liderado por Moscou.

(Serzh Sargsyan e Vladimir Putin em encontro dia 8 de setembro passado na Rússia.)

Sargsyan mantém certo distanciamento do Ocidente. Além de rejeitar o Acordo de Associação com a UE, seu governo não pretende incluir o país na OTAN. O resultado do referendo permitirá que ele saia da presidência em 2018 e, caso seu partido continue a dominar a vida política no país como vem fazendo nos últimos quinze anos, se torne o poderoso novo primeiro-ministro. Como de costume, Moscou continuará a agir de forma pragmática com os armênios e certamente vê com bons olhos o fortalecimento de uma autoridade que, além de ser capaz de controlar o país mesmo com as insatisfações políticas e protestos de seus opositores, é claramente contrário às chamadas "revoluções coloridas" como a ocorrida Ucrânia e que criou dores de cabeça para Moscou e Yerevan. Não importa muito quantas fraudes hajam no referendo, e nem importa se elas realmente aconteceram na proporção em que apontam os observadores ocidentais e críticos de Sargsyan. Os russos já sabiam o que tinham a dizer sobre o resultado final.