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quarta-feira, 15 de junho de 2016

Os desafios da Europa para colocar "Putin em seu lugar"

(Ex-primeiro-ministro da Bélgica, atual eurodeputado da Aliança de Liberais e Democratas pelo Partido Europa e líder da ala liberal do Parlamento Europeu, Guy Verhofstadt)

Dois artigos escritos pelo ex-primeiro-ministro da Bélgica (1999-2008), Guy Verhofstadt, buscam razões pelas quais a Europa deveria agir de forma firme contra as ações do Kremlin no continente.

No primeiro artigo, de fevereiro deste ano, intitulado Colocando Putin em seu lugar, Verhofstadt enumera seis crises que estão abalando a Europa em 2016: o caos regional causado pela guerra na Síria, a possível saída do Reino Unido da União Europeia, o maior fluxo de refugiados desde a Segunda Guerra, os desafios econômicos ainda não resolvidos, o expansionismo russo e o retorno do nacionalismo ao centro da agenda política.

O autor comenta que Putin tem exacerbado pelo menos quatro destas crises, à exceção da guerra na Síria e dos problemas econômicos da Europa. Não é nenhuma surpresa para os europeus que existe uma estratégia de penetração da Rússia no continente. Esta estratégia tem buscado cooptar aliados políticos da extrema-direita, extrema-esquerda e nacionalistas extremados com suas agendas anti-UE e pró-Rússia, manter o fluxo de dinheiro fácil para seduzir políticos e empresário, apoiar a campanha pela saída do Reino Unido do bloco e mais recentemente aumentar do fluxo de refugiados através da campanha militar na Síria. Segundo um general de alta patente da OTAN, os russos bombardearam áreas civis neste com a intenção deliberada de deixá-los sem local de moradia e engrossar a massa em fuga. A chegada destes imigrantes aquece o debate sobre a crise dos refugiados e reforça o apoio do eleitorado aos nacionalistas europeus anti-imigração e aliados de Putin.

(Tensões e desacordos entre Europa e Rússia: uma relação complicada.)

No segundo artigo, do mês de junho, intitulado Não apazigue Putin, o ex-primeiro-ministro não pede apenas que a Europa não afrouxe as sanções econômicas contra a Rússia no contexto da crise na Ucrânia, mas as aumente. A diminuição das sanções estaria condicionada pela retirada das tropas russas da Ucrânia conforme o primeiro Acordo de Minsk em 2014. Mas o acordo não foi cumprido. Ademais, alguns diplomatas e líderes europeus da Itália, Hungria, Grécia, Chipre e Alemanha preferem afrouxar as sanções. O artigo também comenta que o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, e o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, estarão presentes como convidados no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, uma versão russa do Fórum Econômico Mundial em Davos. Seria uma estratégia da Rússia para mostrar ao mundo o lado diplomático e menos agressivo do país ao mesmo tempo em que ele age militarmente no leste da Ucrânia. Sobre diplomacia continental, Verhofstadt diz que a política de expansão da UE tem falhado. Seu soft-power não tem sido forte o suficiente para competir com a postura assertiva do Kremlin.

Verhofstadt também alerta sobre a dificuldade dos europeus de estabelecer uma política de defesa comum, segundo ele um erro. Na OTAN alguns países estão gastando menos de 2% do PIB em defesa, proporção mínima requerida por seus membros. O autor vê um potencial governo de Donald Trump nos EUA como um problema para a defesa do continente, já que o pré-candidato republicano tem criticado a falta de comprometimento financeiro dos membros para com a OTAN, recaindo seus custos sobre os americanos.

(Estratégia de Putin: penetração e desintegração da Europa para uma aliança pró-Rússia e anti-EUA.)

A estratégia do Kremlin de penetração, enfraquecimento e mesmo desintegração da União Europeia não é nenhuma surpresa para acadêmicos e jornalistas europeus. Seu objetivo é atrelar o continente à sua esfera de influência numa aliança anti-EUA. Parece que Guy Verhofstadt conseguiu abranger em poucas linhas toda a estratégia russa para alcançar este objetivo. Eu acredito, porém, que a manutenção ou o aumento das sanções contra a Rússia são necessárias, não tanto por sua eficácia, mas acima de tudo como uma firme posição política que tente colocar "Putin em seu lugar". Mas a luta é muito mais longa e complicada: perpassa o combate aos canais de financiamento a aliados, a propaganda oficial russa através dos meios de comunicação e, acima de tudo, o aliciamento de líderes políticos, intelectuais, ideólogos e militantes capazes de inverter o eixo geopolítico da Europa do Atlântico para a Eurásia. As sanções são apenas um pequeno capítulo desta história.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Marine Le Pen, Brexit e o "caso Lisa": o que a Rússia pode perder com os últimos eventos na Europa

(Marine Le Pen, presidente do Front Nacional francês: campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia. Bom para a Rússia.)

Nos últimos dias de abril e neste início de maio de 2016, a líder do partido fascista Front National, Marine Le Pen, esteve no Reino Unido para fazer campanha pela saída deste país da União Europeia. No próximo 23 de junho os britânicos irão às urnas num referendo para decidir pela permanência ou saída do Reino do bloco. A campanha pela saída é chamada de Brexit, uma fusão das palavras "Britain" ([Grã] Bretanha) e "exit" (saída).

A pergunta que fica é: por que Marine Le Pen foi fazer campanha num outro país? Segundo a reportagem, críticos afirmam que a atuação de Le Pen é para consumo interno. Seu partido é notório crítico da União Europeia, bem como da imigração (principalmente muçulmana) e da perda de soberania da França para o bloco. A expectativa de Le Pen é que com a saída do Reino Unido haveria uma reação em cadeia que levaria à saída de outro países, levando à dissolução do bloco. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando os países europeus organizaram referendos populares para aprovar uma nova constituição da União Europeia, que requeria unanimidade para sua aplicação. Depois da vitória do "não" na França, Holanda e Irlanda seguiram o mesmo caminho, e a constituição não foi aprovada.

Aqui o importante é ressaltar a intimidade entre o Front National e o Kremlin. Como já comentei neste blog com base num artigo da professora Marlene Laruelle, o governo russo tem criado e expandido organizações culturais, políticas, de mídia, etc, a fim de estabelecer contatos e alianças  com grupos de extrema-direita, fascistas e de extrema-esquerda na Europa. A finalidade é torná-los palatáveis ao público europeu e patrocinar sua chegada ao poder. Tais grupos, além de serem críticos quanto à forma de organização da União Europeia, são aliados ou simpáticos a Moscou. Estando no poder estes grupos tratariam de aproximar os europeus da órbita russa distanciando-os dos Estados Unidos. Um exemplo é a já comentada coalização Syriza, na Grécia, de extrema-esquerda, numa aliança com os Gregos Independentes, de extrema-direita (mais detalhes aqui).

Laruelle cita o Front Nacional de Marine Le Pen como o principal exemplo desta proximidade. Incapaz de atrair os conservadores tradicionais europeus, o Kremlin aposta nos extremistas. Le Pen é conhecida, entre outras coisas, pela intimidade pessoal com Vladimir Putin e por ser crítica das ações do Ocidente contra a Rússia na esteira da crise na Ucrânia. Recentemente o tesoureiro de seu partido anunciou que pretende conseguir financiamento de 27 milhões de euros dos russos para a campanha das eleições parlamentares de 2017. A alegação é de que os bancos franceses se negam a dar empréstimos ao partido. Já os críticos dizem que é justamente o apoio de Le Pen à Rússia na questão ucraniana a causa do financiamento. Importante notar que a crítica à política ocidental com relação à crise na Ucrânia é recorrente entre os políticos simpáticos à Moscou.

(Fotografia de Putin pintada como uma figura ameaçadora por detrás da bandeira da União Europeia em Praga, República Tcheca, em 8 de março de 2014, logo após a anexação da Crimeia pela Rússia.)

É de interesse do Kremlin que o Reino Unido saia da União Europeia atingindo dois objetivos de uma só vez: primeiro porque Londres tem relações ruins com Moscou e é um tradicional aliado de Washington; segundo porque isto enfraqueceria a União Europeia, tirando um adversário político ao mesmo tempo em que tornaria o bloco mais suscetível à influência russa. Assim como os meios de comunicação russos no Reino Unido, Marine Le Pen é uma porta-voz evidente, mas útil ao Brexit.

Outro acontecimento de significado da ação da Rússia na Europa é o efeito negativo do "caso Lisa". Um artigo da revista The Economist aponta o escândalo criado em torno deste falso caso como evidência da interferência do Kremlin dentro da Alemanha, e uma tentativa de atingir a autoridade da chanceler Angela Merkel.

(Protesto do Pegida em frente à Chancelaria da Alemanha na esteiro do "caso Lisa". Na camiseta se lê: "Alemanha em perigo".)

O caso Lisa ocorreu em 11 de janeiro deste ano. Lisa era uma garota de 13 anos de uma família de imigrantes russos. Ela teria sido estuprada por trinta homens de aparência de imigrantes do sul (África/Oriente Médio). O caso foi noticiado pela emissora de língua russa na Alemanha, Channel One, e causou protestos e imigrantes de língua russa em todo o país. O problema é que a polícia alemã não confirmou o caso, pelo contrário: afirmou que Lisa tinha sido sequestrada, mas que o assédio sexual não foi estupro, e sim abuso, e que seu corpo não tinha sinais de um ato forçado. O caso não era tão grave quanto noticiava o Channel One. O problema é que o canal continuou a falar em estupro, e um advogado alemão denunciou à polícia o jornalista que fazia a cobertura do caso por incitação à violência.


(Protesto anti-imigração em Dresden, Alemanha, em novembro de 2015. Bandeira da Rússia - esta com o emblema imperial - são comuns nos protestos da organização e mostram simpatia pelo país.)

A grande repercussão do caso provocou protestos organizados por grupos anti-imigração, principalmente o Pegida, e imigrantes russos. O perfil do Pegida é similar aos grupos e partidos pró-Rússia, como o Alternativa para a Alemanha. É comum nos protestos do grupo haver bandeiras russas. O ministro das relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, acusou as autoridades alemãs de acobertarem o caso. Ficou evidente no discurso de Lavrov o princípio de proteção dos habitantes de língua russa além-fronteiras, evocado, por exemplo, na anexação da Crimeia em fevereiro de 2014 sob a alegação de violência contra russos na região. Merkel, o ministro das relações exteriores Frank-Walter Steinmeier e o membro do Comitê de Relações Internacionais do governo Norbert Roettgen acusaram Moscou de propaganda, intromissão e manipulação do caso Lisa e da política interna da Alemanha. Segundo um entrevistado para um artigo da revista The Economist, a Rússia foi "longe demais" e perdeu apoio de grande parte de seu establishment, inclusive da centro-esquerda.

O artigo diz ainda que Putin está explorando as fraquezas da Alemanha. Não foi coincidência que o caso Lisa apareceu no dia 11 de janeiro, poucos depois de uma série de ataques sexuais no país durante o Ano Novo, principalmente na cidade de Colônia, onde um grupo de aproximadamente mil homens de aparência árabe ou norte-africana assediou várias mulheres, inclusive com um estupro. A repercussão do caso Lisa inflamou ainda mais o sentimento anti-imigração, que cresceu depois que o país receber 1,1 milhão de refugiados, principalmente da Síria.

(Maior parte dos britânicos é favorável à permanência na UE. O referendo será dia 23 de junho.)

Não é surpresa para a jornalistas e acadêmicos a influência de pessoas vinculadas ao Kremlin na política europeia. Mas estes dois acontecimentos jogam contra os russos: primeiro porque o caso Lisa da Alemanha deixou mais explícita a tentativa de Moscou de interferir na política do país, arranhou sua imagem e tornou mais evidente sua estratégia de usar a crise dos refugiados com o objetivo de inflamar o ativismo de seus aliados no campo da extrema-direita e dos nacionalistas. Segundo porque ao apoiar o Front National o Kremlin torna mais evidente sua estratégia de enfraquecer a União Europeia, já que Marine Le Pen está fazendo campanha aberta contra o bloco num país estrangeiro. Ademais, segundo a última atualização no site do Financial Times, de 26 de abril, a maioria da opinião pública britânica é a favor da permanência do Reino no bloco. São 47% contra 41%.

Em princípio uma Europa unida é melhor para conter as pretensões russas no continente do que uma Europa fragmentada. Moscou não tem capacidade de enfrentar os europeus no campo da política e da economia, principalmente com um país cujo PIB deve ter retração de 1% neste ano depois de retrair 3% no ano passado. Por isso o Kremlin aposta num jogo dialético: fomenta a tensão social ao mesmo tempo em que oferece a "solução" com partidos e grupos extremistas. É a tática de dividir para conquistar.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Concorrência ao gás russo vem do outro lado da Europa

(Navio da empresa americana Cheniere com tanques de gás natural liquefeito chegando ao porto de Sines, Portugal, dia 26 de abril. )

A revista bimensal New Eastern Europe, especializada em assuntos políticos, econômicos e sociais da Europa Central e Oriental, publicou um breve artigo sobre o fim do quase-monopólio da empresa russa Gazprom sobre o gás vendido à Europa. Segundo o texto, o aumento da produção de gás natural pelos Estado Unidos está estimulando a exportação do produto em forma líquida para a Europa Ocidental. O país já é o maior produtor de gás natural do mundo, ultrapassando a Rússia.

O evento que marcou esta empreitada norte-americana foi a chegada do primeiro carregamento de gás natural liquefeito ao porto de Sines, em Portugal, no dia 26 de abril passado. O navio pertence à empresa Chemiere, que pela primeira vez vende o produto à Europa depois de atender Brasil, Argentina e Índia.

Segundo o artigo da New Eastern a presidência da Gazprom recebeu com relativa indiferença a entrada do gás natural liquefeito na Europa por parte dos americanos, e anunciou que baixará o preço para a venda do gás natural para o continente numa clara tentativa de combater a nova concorrência. Mas se a Rússia, que vende 1/3 de todo o gás natural consumido pela Europa (ver pág. 35-38) tendo o monopólio da venda em alguns países de sua porção oriental, por que ela deveria temer a entrada dos EUA que está vendendo o gás em forma líquida, mais caro do que o russo? E por que o artigo aqui discutido está se apressando em falar do fim do quase-monopólio da Gazprom sobre a Europa?

(Preço do gás natural liquefeito: vendido à Ásia em vermelho; vendido à Europa em azul. Do início de 2014 até agora, a diferença de lucro na venda para os dois continentes é pequena.) 

A questão não é a situação atual, mas a perspectiva do mercado mundial de gás natural num futuro próximo. Segundo a New Eastern, dezenove países do mundo já são exportadores mundiais de gás natural liquefeito, o número de exportadores aumentará, o mercado continua em expansão e a tecnologia para a conversão e transporte do gás em forma líquida está barateando. Ademais, com a desaceleração da economia asiática, principalmente a China, e o aumento da produção americana o preço do produto está caindo em todo o planeta.

Isto trás duas consequências diretas para o mercado do gás: diminui a receita da Gazprom e a demanda do produto na Ásia, tornando a Europa mais atrativa para as exportações dos EUA. A previsão é de que 55% de todo o gás natural produzido pelos EUA seja destinado à Europa. Do lado europeu, a previsão é de que o continente aumente ainda mais a demanda pelo gás: em 2013, 65% do gás natural consumido pela União Europeia era importado. Este número deve subir para 77% em 2025. Mesmo que o aumento da demanda signifique a expansão do mercado tanto para os EUA como para a Rússia, o forte investimento americano na produção e no transporte do produto provocará um aumento da concorrência entre os dois países.

(Gasodutos para a Europa: projeto da Gazprom no pontilhado preto; projeto ocidental no pontilhado azul claro. Agora a concorrência amplia-se para o outro lado do continente europeu.)

Isto pode mudar a geopolítica energética da Europa num curto prazo, talvez mesmo de toda a Eurásia, já que a Rússia também abastece o mercado asiático e terá de reconsiderar sua estratégia de venda para outros países num contexto de queda no preço do produto e de busca por novos mercados.

O mais importante, porém, será a diminuição da capacidade da Rússia de usar o gás como arma política contra a Europa. A nova geopolítica terá impacto nos projetos já comentados neste blog, de gasodutos que interligam Rússia e Europa e de gasodutos conduzidos pelos países do Ocidente com a finalidade de competir com o gás russo extraindo o produto do Mar Cáspio pelo Cáucaso. A disputa, portanto, terá como consequência uma maior queda do preço do produto, o aumento das dificuldades econômicas da Rússia e menores investimentos nesta corrida vinda do leste. É um exagero falar no fim do monopólio da Gazprom sobre a venda do gás à Europa como um todo, mesmo porque a Rússia concede apenas 1/3 do gás consumido por todo o continente, sendo o restante vindo principalmente do Oriente Médio, Argélia e Noruega. O monopólio ameaçado está na parte oriental do continente. O que deve ocorrer, isto sim, é a ampliação da geopolítica energética e a oscilação de seu pêndulo para o Oceano Atlântico e a consequente diminuição da capacidade russa de influenciar a política europeia através da manipulação de preços e da oferta de gás, como ocorreu em 2006 e 2009 nas disputas envolvendo a Ucrânia. A nova preocupação da Rússia está do outro lado da Europa.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

A nova ordem mundial russa e seus parceiros

                           (Marine Le Pen, líder da Frente Nacional da França, e Vladimir Putin)

No breve artigo Russia´s Bedfellowing Policy and the European Far Right, publicado no Russian Analytical Digest (nº 167 de 06 de maio de 2015), a professora de Relações Internacionais da Universidade Georgetown Marlene Laruelle analisa a estratégia geral do governo da Rússia no aliciamento de "parceiros" dentro da Europa.

No segundo mandato de Vladimir Putin (2004-2008) o governo russo, aproveitando o boom econômico que o país vivia com os elevados ganhos no comércio de gás e petróleo, investiu pesado na promoção de sua globalização. Grande parte da herança da vasta rede de contatos do período soviético que existia ao redor do mundo, como os partidos comunistas, havia se retraído com o fim do regime e a subsequente crise econômica dos anos 90 do século XX. Com a volta da prosperidade econômica, o governo passou a investir em canais de televisão, rádio, grupos internacionais de discussões acadêmicas e fundações de promoção de "valores russos" com a finalidade de formar uma ordem mundial alternativa à ocidental tendo como referência a Rússia.

Hoje o país busca novos parceiros no exterior, principalmente na Europa, para estender os braços de sua nova ordem. Como diz Laruelle:

"Essa política de 'parceria' tem sido construída sobre uma agenda ideológica que leva algum tempo para se desenvolver. Ela pode ser brevemente definida a seguir: a Rússia denuncia a hipocrisia e os duplos padrões da ordem mundial ocidental, que pretende que os países ocidentais, especialmente os Estados Unidos, promovam uma agenda idealista de promoção da democracia, direitos humanos, e o direito de intervir em questões humanitárias. Entretanto, a política externa de Washington, insiste a Rússia, é de fato baseada em interesses puramente realistas e estratégicos: ela busca preservar a supremacia de suas capacidades militar, financeira e industrial, para manter seus aliados - Europa, Japão, Israel - numa situação de dependência de segurança, e para garantir que não haja qualquer competição que surja de países ou blocos regionais." (Tradução livre.)

(Encontro dos BRICS em Fortaleza, Brasil, em julho de 2014.)

A Rússia, continua Laruelle, afirma que todo a atual ordem mundial busca favorecer os EUA legal e financeiramente, além de garantir aos americanos o domínio das informações através do sediamento de servidores da internet. "Por outro lado", diz a professora, "a Rússia busca denunciar essa forma de realpolitik, e estabelecer alternativas ao domínio global americano", como os BRICS, a Organização para a Cooperação de Shanghai, posições assertivas junto à ONU, a confrontação à OTAN, o apoio a regimes opositores do Ocidente (como Síria e Coréia do Norte) e políticas que desafiem a supremacia americana na indústria aeroespacial e de informação. Isso tudo, claro, serve aos próprio objetivos estratégicos da Rússia, a exemplo de sua busca de uma parceria estratégica com a China.

(Membros, observadores e parceiros da Organização Cooperação de Shanghai.)

A criação de mídias russas, como a Russian Today e a Sputnik, colocadas aqui neste blog, são exemplos explícitos dessa empreitada. Da mesma forma o patrocínio das grandes fortunas dos oligarcas russos íntimos do governo a eventos como o Congresso Mundial das Famílias mostram que uma intricada teia de relacionamentos entre políticos, multibilionários, intelectuais e organizações acadêmicas, políticas e sociais estão criando uma rede centrada no Kremlin e promovendo uma agenda ideológica ao nível internacional. Toda essa estrutura visa, em última instância, combater e substituir, segundo a linguagem eurasiana, a "unipolaridade" do poder global norte-americano pela "multiporalidade" liderada pela Rússia.


(Canal de televisão da Russia Today - RT. O sugestivo título da notícia faz referência ao Grupo Bilderberg, composto por bilionários e líderes políticos ocidentais.)

Interessante notar que a aliança que o governo de Moscou busca com a extrema-direita e fascistas na Europa, como também com a extrema-esquerda, baseia-se numa postura crítica que tanto os líderes russos quanto tais grupos europeus têm a respeito do papel dos EUA no mundo, da atual organização da União Europeia, da democracia ocidental e do liberalismo nos valores morais (com exceção da extrema-esquerda neste último ponto). A extrema-direita, porém, não constitui um bloco monolítico pró-Rússia, sendo alguns deles anti-russos, especialmente os grupos nacionalistas de países que já estiveram sob o domínio de Moscou nos tempos soviéticos, como os da Europa Oriental e Ucrânia. Dessa forma, a Rússia consegue aliança com extremistas que estão fora do mainstream da política europeia e busca, através de contatos, reuniões e grupos de discussão, traze-los para o centro do cenário político com a finalidade de torna-los palatáveis às democracias ocidentais. Ao mesmo tempo, enquanto o governo russo tem se esforçado para, de um lado, promover grupos fascistas na Europa e, do outro ele combate grupos de mesma linha ideológica na Ucrânia. Como diz Laruelle:

"O Kremlin está, portanto, desempenhando uma ação de difícil equilíbrio. Ele denuncia o papel do ultranacionalismo na revolução Euro-Maidan e a influência de grupos neofascistas na Ucrânia, enquanto que partidos com ideologia similar, mas pró-Rússia, são apresentados como autênticos representantes dos valores conservadores europeus." (Tradução livre.)

Podemos concluir do comentário da autora que, se para os EUA valem o princípio de dois pesos, duas medidas na hora de aplicar sua política de interesses estratégicos, exatamente o mesmo vale para a Rússia na sua estratégia de influenciar a política europeia e, numa dimensão mais ampla, a política global. Apesar do jogo russo ter como principal arena a Europa, sua pretensão não é meramente regional. A eurásia é o seu trampolim para o mundo.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Oligarcas, ideólogos e extremistas: a penetração da Rússia na Europa

(Símbolo do Movimento Eurasiano Internacional)

Na medida em que vou vasculhando os personagens da ação russa na Europa vou descobrindo a existência de uma rede de contatos compostas pelos seguintes elementos:

1 - oligarcas russos, responsáveis por financiar e promover grupos de discussão e encontros entre as partes interessadas;
2 - ideólogos russos, responsáveis por promover ideologias pró-Rússia com a finalidade de atrair os países vizinhos à sua esfera;
3 - políticos europeus dos seguintes ramos: a) extrema-direita, b) fascistas, c) extrema-esquerda. Todos eles têm em comum principalmente uma posição crítica quanto à União Europeia (euroceticismo), o papel dos EUA no mundo e na Europa, o capitalismo liberal e, de forma geral, a agenda cultural de liberação dos costumes (casamento gay, aborto, políticas para minorias, etc), com exceção da extrema-esquerda. Por fim, eles nutrem uma simpatia à Rússia e à liderança do país personificada por Putin.
4 - ativistas políticos de caráter nazifascista, comunista, nacionalista e racialista; responsáveis por agir dentro da Rússia e estabelecer contatos com grupos e movimentos europeus, sobre os quais se inspiram.

Os grupos 1, 2 e 4 são formados por pessoas direta ou indiretamente ligadas ao Kremlin, numa relação, no meu entender, de simbiose com o governo russo. Ou seja, não haveria uma controle completo do governo sobre esses grupos, bem como esses grupos não exercem influência de forma a controlar direta o governo de Moscou.

(Alexander Dugin)

O destaque dentro desses atores é o Movimento Eurasiano Internacional, criado e presidido por Alexander Dugin, o intelectual russo de maior influência atualmente. Dugin, como ele próprio já afirmou, não tem pretensões de agir diretamente na política mas conduzi-la desde os bastidores, assessorando, orientando, publicando livros e artigos e disseminando suas ideias através de encontros e contatos dentro e fora da Rússia.

A exemplo dos contatos existentes nesta rede, a penetração e a emergência de movimentos extremistas na Rússia têm origem e inspiração em ideologias e movimentos políticos europeus. Portanto, a Rússia importa tais elementos da Europa para depois voltar-se à (e contra) ela com a finalidade de absorve-la à sua esfera de influência.

Nas próximas semanas detalharei tudo sobre essa rede aqui neste blog.