quarta-feira, 13 de abril de 2016

Mártires, heróis e outros não tão santos: a construção da nova identidade russa

(Cidade de Kaluga, Rússia)

A antropóloga e professora da Nova Universidade Búlgara, Milena Benovska-Sabkova, realizou um trabalho a respeito da política de memória implementada na Rússia no contexto de reavivamento religioso. Sua atividade teve como referência a cidade de Kaluga, com 350 mil habitantes a 150 km a sudoeste de Moscou, e foi publicado em diversas revistas acadêmicas (aqui - pág. 95-98, aqui e, o mais completo, aqui).

Com o fim da União Soviética, iniciou-se uma série de atividades de pesquisa com a finalidade de reconstituir e reconstruir as comunidades religiosas, igrejas e monastérios destruídos na Rússia. Muito deste trabalho foi realizado pelos chamados kraevedenie, pesquisadores especializados em história local como herança cultural, biografias e origem das famílias. Tal tipo de pesquisador surgiu ainda no tempo da União Soviética e atualmente possui um status semi-oficial, atuando de forma independente e também junto a centros de pesquisas, escolas, igrejas e autoridades locais. Dentro deste ramo estão os kraevedenie de igreja, que realizam o mesmo trabalho, mas voltado especificamente às questões de ordem religiosa, com destaque ao levantamento das igrejas demolidas, pesquisa em arquivos religiosos e levantamento biográfico de clérigos e religiosos, principalmente os desaparecidos no período comunista.

A partir do ano 2000, com a chegada de Vladimir Putin à presidência da Rússia, a atividade dos kraevedenie ganhou grande estímulo oficial: eles passaram a ser cooptados pelas autoridades para trabalhar em pesquisas de resgate da história russa atuando em escolas, museus e em atividades locais como congressos e lançamentos de livros. Assim estes pesquisadores passaram a constituir um grupo semiprofissional relacionado a) ao projeto nacional de política de memória, b) aos projetos regionais vinculados à política de memória a nível nacional, e c) à atividade espontânea de pesquisa realizada por seus membros. Os kraevedenie de igreja também entraram neste processo, e passaram a trabalhar próximo às autoridades da Igreja Ortodoxa Russa. Desta forma, eles consolidaram o papel de intermediários entre o clero ortodoxo e o cidadão comum fazendo uma "ponte" de conhecimento entre os dois grupos sociais.

(Monastério Optina Pustyn, na cidade de Koselsk a 60 km de Kaluga. Fundado no século XV o monastério é um dos principais da Rússia e centro religioso da região. Foi transformado pelos bolcheviques no Museu Kraevedenie em 1917-29, e depois recebeu um departamento de um museu de Koselsk em 1957) 

É através da relação íntima entre os kraevedenie e a Igreja Ortodoxa Russa que ocorre parte do reavivamento religioso na Rússia. Eles trabalham juntos tanto à nível nacional na Comissão Sinodal de Canonização dos Santos como a nível regional, a exemplo da Comissão de Canonização da Eparquia de Kaluga, onde a antropóloga Milena realizou sua pesquisa. Portanto, estes pesquisadores não apenas resgatam a memória passada da ortodoxia como também integram o plano desta Igreja de reconstituir uma identidade religiosa nacional.

Deste 1989 a Igreja Ortodoxa tem realizado uma série de canonizações, dentre eles os confessores e "novos mártires", isto é, os religiosos assassinados ou mortos durante o regime comunista. Os kraevedenie de igreja são de fundamental importância principalmente por resgatar arquivos, memórias de sobreviventes e descobrir cemitérios abandonados nas antigas igrejas. Junto a eles atuam os chamados "empreendedores religiosos" que empenham parte de seu tempo e recursos pessoais para realizar e organizar procissões religiosas, restaurar ícones, recuperar e reconstruir igrejas destruídas e criar os chamados "locais sagrados" para visitação, como o novo memorial projetado em Kaluga para a veneração dos novos mártires.

A política de memória na Rússia também procura reabilitar a memória de civis e militares, principalmente dos soldados mortos na Segunda Guerra Mundial. A chamada "Grande Guerra Patriótica" é considerada, como comenta Angelo Segrillo em "Os Russos" , um momento de enorme trauma, significando praticamente uma refundação do país. Calcula-se que sete mil cidades tenham sido destruídas e até 27 milhões de pessoas tenham morrido neste evento, sendo 100 mil apenas no pequeno distrito de Kaluga.

Os kraevedenie também estão envolvidos neste resgate histórico secular, principalmente na descoberta e catalogação das covas coletivas, atividade que envolve principalmente grupos militares e veteranos. Milena comenta que é através da identificação dos mortos e de um novo funeral digno que ocorre uma "sacralização" dos soldados, vistos como heróis, "mártires" civis da Rússia. "Os mortos anônimos", comenta a antropóloga, "são transformados em heróis via personificação e o 'enterro apropriado'" (p. 20).

A canonização dos novos mártires e principalmente a identificação de heróis nacionais funcionam como uma forma de lidar com o passado traumático, não só da guerra como também da perseguição antirreligiosa. Alguns dos kraevedenie que formaram sua vida acadêmica durante a União Soviética hoje têm de lidar com arquivos da KGB, onde estão documentados muitos dos crimes cometidos contra religiosos como assassinatos, prisões e perseguições. O legado aparentemente irreconciliável do terror comunista contra religiosos e cidadãos comuns é transformado num passado "positivo" através da veneração dos heróis e a canonização dos mártires.

(Catedral de Cristo o Salvador, em Moscou, Sede do Patriarcado de Moscou da Igreja Ortodoxa Russa. Foi destruída pelos bolcheviques a mando de Stálin, em 1931, e reconstruída a partir de 1990 durante o governo Yeltsin. Foi consagrada em 19 de agosto de 2000.) 

No atual governo de Vladimir Putin (2013-2018), existe uma clara tentativa por parte do Kremlin de se aproximar e instrumentalizar ideologicamente os discursos do alto clero da Igreja Ortodoxa sobre a história do país. Esta instrumentalização, que aparece inclusive em declarações públicas de Putin, fomenta a ideia da Rússia como civilização distinta das demais, única e original, em oposição ao Ocidente. Seria através do retorno às suas raízes culturais e o resgate da tradição que a Rússia conseguiria cumprir seus papel como potência a qual está destinada a ser. Desta forma, toda a história russa, inclusive o período comunista, é considerada "sagrada" e necessária como parte de uma experiência única de um povo distinto dos demais. Nas palavras do próprio Putin:

"Muita gente comenta sobre o Túmulo de Lênin, dizendo que ele não corresponde à tradição. O que não corresponde à tradição? Visite apenas o Pechersk Lavra de Kiev ou vá ao Monastério de Pskov, ou ao Monte Athos. Você verá halos de pessoas santas lá. Vá em frente, você pode ver isto tudo lá. Portanto, os comunistas continuaram a tradição mesmo a respeito disto e continuaram competentemente, de acordo com as demandas daqueles tempos." [tradução livre]

(Parada militar em Moscou no Dia da Vitória, comemorado em 9 de maio: o período comunista reabilitado como parte da história "sagrada" da Rússia.)

É possível ver claramente na declaração de Putin a política de memória levada à cabo no seu governo. Por isso o estímulo oficial de um resgate histórico e uma transformação valorativa do período comunista, de onde foram resgatados os novos mártires e heróis da Rússia. Esta política abrange parte do alto clero da Igreja Ortodoxa Russa, além de lideranças e fiéis ortodoxos chamados de "fundamentalistas" e grupos nacionalistas. Estes dois últimos nutrem uma extrema rejeição a todas as influências do Ocidente e reivindicam a canonização de figuras civis de destaque na história russa, inclusive o ditador Josef Stálin. O pesquisador Igor Torbakov, da Universidade de Uppsala, na Suécia, comenta esta tentativa do governo russo de sintetizar as contradições da história russa numa única narrativa:

"Nas palavras de Frederick Corney: 'Putin estava oferecendo uma narrativa da história moderna russa nas quais as turbulências do passado da Rússia serviram meramente como um pano de fundo do progresso recente, e oferece uma reconciliação de verdade' [destaque do autor]. Assim como sua base de apoio consiste de uma ampla coalizão compondo grupos sociais heterogêneos, o regime, na sua questão de legitimidade histórica, busca sintetizar elementos dispersos dos diferentes 'passados' da Rússia numa espécie de fusão eclética. 'Ele tenta unir, ainda que desconfortavelmente, vários aspectos idealizados dos passados czarista, soviético e dos emigrados' e apresenta esta mistura como 'história sem culpa ou dor'". [tradução livre]

A busca por uma verdade indivisível, o fascínio com o irracional, a esperança por encontrar um caminho especial, um destino, uma missão concedida por Deus e/ou pela História são discursos recorrentes entre os intelectuais russos da era pós-soviética, amalgamando todas os acontecimentos e correntes ideológicas num corpo único. Nada mais exemplar destas características do que o pensamento neo-eurasiano de Alexandr Dugin, tantas vezes mencionado neste blog, ou a composição extremamente heterogênea dos membros e grupos ligados ao Partido Rússia Unida de Putin.

A Rússia busca por uma unidade absoluta, uma totalidade que unifique tudo e todos num nova identidade nacional. A política de memória de Moscou é um aspecto desta tentativa de resgatar ou criar uma nova identidade russa, unificando sucessos e traumas, heróis e mártires, crimes e atos de santidade e "santos" de todos os espectros da sociedade russa, mesmo que não sejam tão santos assim.

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