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domingo, 21 de maio de 2017

A tentativa da Rússia de influenciar os rumos dos EUA


(Michael Flynn, Donald Trump, Jeff Sessions, Vladimir Putin e Sergei Kislyak.)

Entre agosto e outubro do ano passado houve uma súbita deterioração das relações entre a Rússia, o Ocidente em geral e os EUA em particular, período em que houve o hackeamento do Comitê Nacional do Partido Democrata pelos russos, a instalação de mísseis Iskander-M em Kalingrado e várias divergências diplomáticas a respeito da Guerra Civil na Síria. Após as eleições americanas, em 8 de novembro, o nível de tensão baixou. O noticiário que acompanhei pela internet e os comentários de analistas políticos apontavam para uma aproximação entre o então presidente eleito, Donald Trump com seu colega Vladimir Putin, de alguns de seus assessores com o Kremlin e uma possível interferência russas no processo eleitoral.

A hipótese que levantei foi de que, não podendo garantir a vitória de Trump (acima de tudo a derrota de Hillary, amplamente demonizada pela elite russa), a Rússia apostou numa escalada na tensão militar para amedrontar a opinião pública americana com o objetivo de influenciar decisivamente as eleições americanas. Esta atitude pode ser resumida pela declaração de Vladimir Zhirinovsky, aliado do Kremlin e líder do Partido Democrático Liberal da Rússia (LDPR, em inglês) conhecido por seu agressivo nacionalismo e posições extremistas, de que caso os americanos votassem em Hillary, "é guerra. Haverá Hiroshimas e Nagasakys por todo o lugar".

(Vladimir Zhirinovsky comemorando com seus colegas de trabalho a vitória de Trump, 9 de novembro de 2016) 

Para alegria do Kremlin Trump venceu, Zhirinovsky celebrou a vitória com um brinde de vinhos espumantes com seus colegas de trabalho e a Duma aplaudiu efusivamente quando o resultado final das eleições foi anunciado. 

Um exemplo da diminuição da tensão foi a reação do Kremlin à expulsão de 35 diplomatas russos dos EUA e à exigência da devolução de dois complexos por eles utilizados nos estados de Maryland em Nova Iorque. A ordem foi dada em 29 de dezembro de 2016 pelo então presidente Obama, e ambas medidas deveriam ser cumpridas em até dois dias. Washington também ampliou os poderes do Executivo para aplicar sanções contra agentes que atacassem instituições americanas. Desta forma, Obama ampliou as sanções já impostas sobre Moscou abrangendo o Serviço Federal de Segurança (FSB), o Diretório Principal de Inteligência (GRU) sob autoridade direta de Putin, quatro membros do GRU e três empresas que forneceiam materiais a este serviço de inteligência. Um analista americano de cibersegurança definiu a retaliação de Washington como "a maior contra a espionagem russa desde a Guerra Fria".

A expectativa era de que o Kremlin respondesse na mesma moeda ou mesmo de forma exagerada, a exemplo das repostas às sanções políticas que sofreu nos últimos anos por parte dos EUA. Putin, porém, não reagiu desta forma. Ele declarou oficialmente que "nós [a Rússia] não vamos recorrer a uma diplomacia 'de cozinha' mas planejaremos nossos próximos passos para restaurar as relações EUA-Rússia baseados nas políticas da Administração Trump", além de se recusar a tomar medidas contra os familiares dos diplomatas americanos, e desejou a Obama e Trump felicitações de Ano Novo. Ou seja: Putin simplesmente não respondeu à ação de Obama, esvaziando-a de seu propósito político. Através do Twitter, Trump elogiou a espera do colega russo e reiterou o apreço por sua inteligência. No que diz respeito ao interesse de diminuir as tensões, havia uma clara sintonia entre Putin e Trump.

Poucas semanas após a posse de Trump em 20 de janeiro, a sintonia entre os dois presidentes já começava a sofrer interferências. Como comentei neste blog em março passado, Trump nomeou James Mattis, firme apoiador da OTAN, como Secretário de Defesa, e junto à ONU condenou explicitamente a anexação da Crimeia pela Rússia, ação que foi causa inicial das sanções econômicas que Washington e a União Europeia impuseram à Moscou. Esta condenação veio em 3 de fevereiro, recém o 14º dia da presidência Trump, que ainda hoje espera o retorno da Crimeia à Ucrânia e uma ação efetiva da Rússia na contenção da violência neste país. Por estas atitudes, a Casa Branca demonstrou reconhecer a Rússia como causa do conflito na Ucrânia. (Cabe ainda destacar que em 11 de abril Trump aprovou oficialmente a entrada de Montenegro como o 29º membro da OTAN, contrariando os russos numa  região sensível aos seus interesses.)

(Praia nas Ilhas Seychelles: local discreto para uma reunião secreta entre o governo dos Emirados, um financiador de Trump e um associado de Putin. Perguntas a serem respondidas.)

Por outro lado, o governo Trump começou a ensaiar uma aproximação com Moscou. Funcionários americanos, europeus e árabes relataram a existência de negociações secretas entre EUA e Rússia com esta finalidade. De acordo com uma longa reportagem do Washington Post, o governo dos Emirados Árabes Unidos organizou um encontro entre o fundador da firma de segurança Blackwater e financiador da campanha de Trump, Erik Prince, e um associado próximo de Putin. O encontro teria como o objetivo estabelecer um canal de diálogo entre Washington e Moscou por detrás dos mecanismos oficias de contato e teria ocorrido em torno de 11 de janeiro nas Ilhas Seychelles, pequeno país no Oceano Índico onde um membro do governo dos Emirados possuía uma ilha particular. A pauta de negociações envolveria a revisão das alianças russas no Oriente Médio em troca de um possível alívio nas sanções econômicas. Para os Emirados, o interesse seria cortar o apoio russo ao Irã e à Síria, rivais regional da monarquia do Golfo Pérsico.

(Ataque surpresa dos EUA à Síria em 7 de abril: mudanças no grupo político de Trump pode ser uma das razões do ataque.)

O banho de água fria na aproximação veio na Síria. Trump autorizou o surpreendente ataque militar à base aérea de Shayrat na madrugada de 7 de abril em resposta ao ataque a químico provavelmente realizado pelo regime de Assad no dia 4 à cidade de Khan Shaikhun, no noroeste no país. Dentre muitos outros desdobramentos, um deles foi o distanciamento que se seguiu entre Washington e Moscou, que acusou os EUA de atacar um "país soberano". O Kremlin suspendeu a linha de comunicação direta (apesar de informações desencontradas entre militares americanos) entre os exércitos americano e russo que permitia troca de informações sobre as aeronaves que sobrevoavam a Síria para evitar conflitos e ataques não intencionais entre ambos. Também prometeu reforçar o sistema de defesa aéreo do país e proteger sua infra-estrutura. Este último ponto não é novidade, dado que em 28 de dezembro de 2016 um satélite israelense de alta resolução flagrou dois veículos do exército russo na base militar de Latakia, na costa do país, utilizados para deslocar mísseis Iskander-M, os mesmos citados no início deste texto e capazes de carregar ogivas nucleares. As imagens confirmaram uma suspeita já existente, o que mostra que tais mísseis já estavam no local há mais tempo e que a Síria, independente da recente crise com os EUA, é de suma importância estratégica à Rússia.

(Tillerson com Putin no Kremlin: apesar da crise na Síria e da pouca evolução na diplomacia, o histórico de encontros entre os dois ajudou a quebrar o gelo.)

Apesar da forte reclamação da Rússia, o Secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, esteve em Moscou uma semana depois do ataque americano. De última hora, Tillerson se encontrou com Putin durante duas horas após conversa com seu colega Sergei Lavrov. Segundo testemunhas, o encontro com Putin revelava a antiga intimidade entre os dois, conhecidos de diversos encontros no passado, e destoou do clima de tensão da visita. Enquanto a Rússia dizia não haver provas de que o ataque químico fora realizado pelo regime de Assad, os EUA dizia o contrário. Para Trump era "provável" que o Kremlin soubesse que Assad estava planeando o ataque químico, ao passo que Tillerson dizia diplomaticamente ainda não haver evidência clara disto. Em ambos os lados havia um consenso de que a relação entre os dois países havia piorado muito.  Para Lavrov a política externa americana era "contraditória" e de difícil compreensão, e uma das razões desta dúvida estaria no fato de Tillerson ainda não ter preenchido todas as vagas do Departamento de Estado. Estas posições mostravam mais insegurança do que uma real piora já que houve sinais de cooperação, entre elas o reestabelecimento da linha de comunicação direta sobre os aviões russos e americanos que sobrevoavam a Síria e o combate às organizações terroristas. A crise na Ucrânia e o hackeamento russo nas eleições americanas ficaram para ser discutidas noutra ocasião. Havia, porém, uma série de questões que ainda não foram esclarecidas nas relações russo-americanas.

A política interna também pode ter peso no ataque à Síria. Para Putin uma crise externa ajuda cultivar junto à população russa sua figura de homem forte; para Trump há a vantagem de, ao contrariar os interesses russos na Síria com o ataque, se distanciar das acusações de que pessoas de seu círculo próximo teriam ligações com o Kremlin, além de desviar a atenção do público das investigações sobre este tema.


(Trump e seus assessores acompanhando o ataque à Síria ao vivo: junto à mesa está Jared Kusher, o segundo da direita para a esquerda; ao fundo em frente ao lustre, Steve Bannon. Imagem sugestiva.)

Por fim, chegamos a um ponto crucial: a perda de influência de Steve Bannon nas decisões políticas da Casa Branca. Bannon foi estrategista chefe da campanha de Trump e é o atual estrategista chefe da presidência e seu principal conselheiro. Desde o início do atual mandato, a evolução dos grupos assessores do presidente tem diminuído a influência Bannon nas decisões políticas. O caso mais explícito foi a divergência entre ele e o genro de Trump e seu assessor principal, Jared Kusher, sobre a decisão de atacar a Síria em resposta ao ataque químico de 4 de abril. Para Bannon não era do interesse americano realizar o ataque, ao passo que Kusher queria uma punição a Assad. A divergência entre os dois corresponderia a uma divisão ideológica entre os assessores de Casa Branca: de um lado o grupo "nacionalista" determinado a priorizar o interesse nacional americano proposto na campanha de Trump e do outro o grupo "democrata" com alguns filiados ao Partido Democrata que, por sua tradição, tem uma inclinação internacionalista.

(Steve Bannon ouvindo Donald Trump: estrategista e assessor ligado ao eurasianismo.)

O nacionalismo de Bannon tem relação com o eurasianismo, corrente de pensamento cujo principal divulgador é Alexander Dugin, com quem o americano compartilha muitos dos valores. Além de uma visão de mundo comum, ambos se vêem como nacionalistas, defensores da tradição e têm apreço pelas teorias da história e o estudo das civilizações vinculando estes temas às questões políticas, econômicas e morais. Sua simpatia pelo eurasianismo e por Putin ficou clara na conferência em que Bannon participou no Vaticano em 2014. Pessoas próximas a Bannon traduziram para o inglês o principal livro de Dugin, The Fourth Political Theory, que expõe as bases do seu pensamento, um eurasianismo reformulado conhecido como neo-eurasianismo. Para Dugin Bannon é um aliado ideológico. Isto ajuda a explicar o entusiasmado apoio que o russo deu à eleição de Trump ainda nas primárias republicanas, época em que Bannon era seu principal estrategista. Apesar de Trump ser "duro, rude, (...) emocional", disse Dugin, ele é um "americano comum extremamente bem-sucedido", é a "verdadeira América". O ideólogo russo clamou para que os americanos votassem em Trump, já que ele voltaria seu olhos aos problemas internos dos EUA e deixaria a humanidade em paz, "cansada da hegemonia americana e de sua política destrutiva".

Com a posse de Trump, porém, Dugin foi se decepcionando com algumas de suas políticas, como a decisão de Washington de exigir que a Rússia devolvesse a Crimeia à Ucrânia, mas jogou definitivamente a toalha com o ataque americano à Síria. Para ele Bannon era a "última esperança" em Washington, mas dada a ação de Trump, a quem chamou de "louco neo-con", as esperanças de um aliança entre americanos e russos desapareceu.

(O militar Michael Flynn no jantar de gala da Russia Today em 2015: sentado ao lado de Vladimir Putin e rodeado por membros do Kremlin.) 

Fica clara a associação entre a perda de poder de Bannon na Casa Branca, o ataque à Síria e a crise com a Rússia. Fica clara, mas não totalmente explicada, dado que outros elementos não analisados neste texto, como a saída de antigos membros da campanha e do governo Trump, como Paul Manafort e Michael Flynn, também foram fatores que contribuíram indiretamente para atrapalhar uma aproximação com Moscou. Manafort foi estrategista de Viktor Yanukovich, um aliado do Kremlin, na campanha presidencial de 2010 para presidente da Ucrânia. Já Flynn, ex-general do exército americano, tem laços mais evidentes: possui contatos pessoais com o Kremlin, tendo participado do jantar de gala do aniversário do 10 anos da rede de TV estatal Russia Today, cuja editora-chefe, Margarita Symonian, é uma entusiasmada apoiadora do presidente russo. Putin estava presente ao lado do militar. Flynn aparece regularmente no canal realizando análises sobre política internacional.

(Lavrov e Kislyak sendo recebidos por Trump no Salão Oval da Casa Branca: apesar das tensões, continuam os contatos no alto escalão.)

Apesar do terremoto político entre Washington e Moscou, há alguns sinais de boa vontade (ou de oportunismo) de ambos os lados para reestabelecer a proximidade abalada com o ataque à Síria. Além do mencionado encontro entre Tillerson e Putin no Kremlin, Trump recebeu na Casa Branca o ministro russo Lavrov e o embaixador do país em Washington, Sergei Kislyak. Kislyak é figura-chave na crise política do governo Trump por seus contatos com Flynn ainda na campanha eleitoral americana. Segundo um jornal americano, no encontro o presidente teria divulgado informações confidenciais do serviço secreto para os russos. Apesar das reclamações de políticos americanos, o assessor de segurança nacional da Casa Branca anunciou como "falsa" a informação, e as fontes do jornal não são mencionadas na reportagem. De qualquer forma, a recepção de Lavrov e Kislyak por Trump mostra que há uma tentativa de ambos os lados de normalizar a relação Washington-Moscou independente das intenções em jogo.

Dados os relatos acima, é possível perceber que a grande tensão política e militar entre a Rússia e os países do Ocidente na segunda metade de 2016 tinha como um dos objetivos influenciar as eleições americanas.  É difícil mensurar o quanto os russos são capazes e o quanto realmente fizeram para interferir no pleito, dado que esta interferência está sob investigação do FBI e que os EUA são um país de dimensões continentais. Apesar da mídia americana ser fortemente concentrada em poucas corporações, a população ainda possue uma enorme variedade de meios de informação. Portanto, a hipótese de que os russos utilizaram a pressão militar como meio de influenciar a opinião pública americana é plausível. Na incerteza da eficácia interna, usou-se a explícita ameaça externa.

(Propaganda pró-Trump na Rússia durante a eleição americana: "Vamos fazer o mundo grande outra vez - juntos!", diz o anúncio. Na incapacidade de determinar os rumos dos EUA, a Rússia busca jogar com todas as cartas possíveis para destronar a liderança global americana.)

O regozijo da Duma com a vitória de Trump, o gesto explícito por parte de Putin de não reagir à expulsão de 35 diplomatas russos por Obama (visto no Kremlin como mais uma provocação deste governo) e o apoio maciço da mídia russa ao republicano são sinais públicos de que havia interesse de Moscou na vitória de Trump. Para a Rússia também era importante evitar uma piora nas relações dada a dificuldade do país em manter de forma simultânea uma escalada militar em toda a sua porção ocidental e um envolvimento direto nas guerras da Síria e da Ucrânia numa época de crise econômica.

O estremecimento da sintonia entre Trump e Putin começou com uma série de medidas de Washington que contrariava Moscou, como o mantimento das sanções vinculadas à anexação da Crimeia, a condenação da ação russa na Ucrânia, a reafirmação do compromisso com a OTAN e sua expansão e a luta política interna. O governo Trump possui membros que beberam de fontes ideológicas simpáticas à Rússia, a exemplo de Bannon, e pessoas com simpatias e/ou meios de aproximar os dois lados, a exemplo de Flynn. Soma-se a isto a influência russa no processo eleitoral americano, fator de desestabilização do governo. Trump tem razões de sobra para não transparecer sua disposição de se aproximar dos russos e encobrir membros ideologicamente simpáticos à Rússia: isto evita ataque de adversários e da imprensa (esta última tem sido desde as primárias eleitorais uma dura crítica do republicano). Até aí, porém, não havia uma divergência pública entre Washington e Moscou. Ou, nas palavras de Dugin, Trump ainda era tolerável. Até o ataque à Síria.

Ao contrário do desejo de Dugin, os recentes encontros de Tillerson com Putin no Kremlin e de Lavrov com Trump na Casa Branca mostram que, apesar da crise na relação, Washington e Moscou continuam dispostos a manter conversações no alto escalão. Da mesma forma há uma tentativa de criar um vínculo mais profundo e discreto, como no encontro realizado nas Ilhas Seychelles, para que o contato se mantenha ao menos informalmente. Duas coisas, porém, precisam ser levadas em consideração: primeiro que o Kremlin sempre é motivo de incerteza por diversas razões, desde a falta de transparência política até a relação do Executivo com o serviço secreto, e o governo Trump, liderado por um novato na política, ainda procura estabilizar-se em meio às turbulências e ajustes domésticos; segundo que a Rússia, seguindo sua "tradição" messiânica e revolucionária do qual o atual governo é herdeiro, está disposta a continuar a luta para expandir sua influência pela mundo e subjugar o sistema mundial pós-Guerra Fria. E para isso terá de subjugar os EUA.

Há ainda muitos outros elementos que ajudariam a completar e aperfeiçoar este texto. Poderia ainda fazer outras ramificações e aprofundamentos questionando: a) o que ocorreu no encontro de Sychelles e suas possíveis consequências (e até que ponto os dados da reportagem do Washington Post são verdadeiras); b) as verdadeiras razões do ataque à Síria; c) o papel de Flynn no governo Trump e a possibilidade dele ser um canal de comunicação com o Kremlin; d) os possíveis contatos do Procurador Geral Jeff Sessions com os russos durante a eleição americana (não comentado neste texto); e) os meios e os impactos de trolls e da propaganda russa nos EUA; f) o papel da mídia americana, largamente crítica de Trump, e que possivelmente exagera o poder da Rússia em Washington e; g) as razões e consequências da recente demissão do diretor do FBI, James Comey, responsável pelas investigações envolvendo o potencial comprometimento do governo Trump e com a Rússia.

As ações da Rússia inserem-se numa estratégia global para minar a democracia e o liberalismo no Ocidente. Há razões de sobra para supor que o Kremlin continuará a agir com este objetivo. Mas os próximos passos da relação EUA-Rússia ainda são imprevisíveis.    

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Protestos, crise política e ingerência estrangeira: Montenegro entre OTAN e Rússia

(Bandeiras de Montenegro e da OTAN)

Montenegro é um pequeno país localizado nos Bálcãs. Com 650 mil habitantes (equivalente a pouco menos da metade da população de Porto Alegre) tornou-se independente da união Sérvia-Montenegro em 2006 com apoio dos países ocidentais. Nos últimos meses o país foi sacudido por protestos, tensões políticas e ingerências da Rússia, tendo como pano de fundo a insatisfação com o governo que está no poder desde 1991 e a aceleração do processo de integração deste país à OTAN, aliança militar ocidental.

PROTESTOS, OTAN E INGERÊNCIA RUSSA

(Pancadaria nas manifestações em 17 de outubro de 2015.)

Os primeiros protestos em Montenegro começaram no dia 27 setembro de 2015 em Podgorica, a capital do país, com uma mobilização permanente na praça em frente ao parlamento nacional e nas ruas próximas. O movimento foi liderado pela Democratic Front (DF, Frente Democrática), uma aliança composta por partidos de oposição como New Serbian Democracy (NOVA), Democratic People´s Party (DNP) e Movement for Change (PzP)*, dentre outros partidos menores, facções, organizações civis e o clero da Igreja Ortodoxa Sérvia. O objetivo, segundo os organizadores, era a saída do primeiro ministro Mila Djukanovic, do Democratic Party of Socialists (DPS) e a formação de um governo interino que realizasse "pela primeira vez eleições livres e limpas". Denúncias de corrupção e alegação de fraudes eleitorais também estavam na pauta.

O governo montenegrino deu prazo para que a mobilização fosse dissolvida até 10 de outubro. O prazo não foi cumprido. Na manhã do dia 17, a polícia iniciou o desmanche do acampamento na praça, o que resultou em violência, mas a situação mais grave ocorreu horas mais tarde quando a polícia impediu uma marcha em direção ao parlamento. Além dos civis, a pancadaria que se seguiu deixou ferido o vice-presidente do parlamento (de oposição) e pelo menos outros três deputados, como o líder do DNP, e a prisão de dois deputados, dois jornalistas e assessores parlamentares. Os dois líderes da Frente Democrática, Nebojsa Medojevic (PzP) e Andrija Mandic (NOVA) teriam sido "brutalmente agredidos". Além de partidos de oposição, grupos civis e a Igreja Ortodoxa Sérvia em Montenegro também pediram investigação sobre a ação policial.

 A violência voltou às ruas uma semana depois, dia 24. A Frente Democrática patrocinou transporte gratuito para que manifestantes fossem até Podgorica, reunindo cinco mil pessoas num novo protesto (foto ao lado) pedindo novamente a saída de Djukanovic, um governo interino e novas eleições. Mas desta vez os manifestantes, que estavam próximos do parlamento, tentaram invadir o prédio, e novamente houve violentos confrontos com a polícia. Desta vez Andrija Mandic foi detido e houve quinze feridos.

Os protestos e a pancadaria que se seguiram nos dias 17 e 24 tiveram enorme repercussão na política montenegrina e também fora do país, e levantou a questão sobre os reais motivadores dos protestos, como o governo russo, e uma de suas agendas políticas, que seria impedir a adesão de Montenegro à OTAN. Desde então as divergências políticas internas sobre o apoio ou não ao governo e à entrada na aliança se acentuaram, e o pequeno país dos Bálcãs se viu em meio a um conflito entre o Ocidente e a Rússia.

Antes do protesto do dia 24, Djukanovic já havia dito publicamente que suspeitava que nacionalistas do movimento Grande Sérvia estariam por trás das manifestações, e que a oposição, que estaria recebendo apoio do Kremlin, queria derrubar o governo e cancelar a independência do país com o objetivo de impedir a expansão da OTAN nos Bálcãs. Já o vice-primeiro ministro Dusko Markovic foi mais longe: disse ter em mãos informações concretas sobre o financiamento dos protestos pela Rússia e da presença de nacionalistas sérvios. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia havia lamentado a violência contra os manifestantes, e comentou ainda que a entrada de Montenegro na OTAN aumentaria a instabilidade e a divisão entre seus habitantes. Branko Lukovak, ex-ministro das relações exteriores de Montenegro, respondeu acusando a Rússia de interferir abertamente na política montenegrina. Depois do episódio do dia 24, Moscou lançou uma declaração dizendo estar perplexo com a acusação de que estaria envolvido nos protestos e que isto não tinha qualquer fundamento. Mas desta vez a reação em Montenegro veio por nota oficial: o Ministério das Relações Exteriores afirmou que a declaração russa era uma confirmação de que o país estaria envolvido nos protestos anti-OTAN, e que o lamento de Moscou pelo uso de "força excessiva" contra "protestos pacíficos" ignorava que os manifestantes usavam coquetéis molotov e haviam tentado invadir o parlamento.

Tanto Djukanovic e quanto seu vice Markovic consideraram as declarações russas como sinais muito claros do envolvimento de Moscou nos protestos. Segundo um especialista sérvio em política externa ouvido pela Rádio Europa Livre, as tensões políticas entre Montenegro e Rússia aumentaram depois que Djukanovic fez uma visita Washington, e que os protestos estouraram depois que secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, esteve em Podgorica. A referida visita à Washington ocorreu em abril de 2014. A visita havia sido criticada pela Rússia. O governo de Djukanovic respondeu dizendo que seu objetivo dizia respeito aos interesses nacionais de Montenegro, tratavam da integração à União Europeia e à OTAN, mas não era anti-Rússia, e reafirmava a cooperação e o respeito de longa data entre os dois países.

Enquanto isso os líderes da oposição ao governo deploraram a acusação de que eram apoiados pela Rússia, a Frente Democrática boicotou os encontros no parlamento e o Medojevic (PzP) foi à Bruxelas explicar as posições da oposição. Desde então os protestos perderam fôlego nas ruas e ganharam as galerias do parlamento, desta vez com menor número de manifestantes e sem episódios significativos de violência. Ao mesmo tempo as discussões a respeito do provável envolvimento russo nos protestos e as negociações entre Montenegro e OTAN ganharam força.

(Nebojsa Medojevic, líder do Movemente for Change (PzP) e um dos principais líderes da Frente Democrática)

Numa entrevista a um site de notícias de Kosovo, Nebojsa Medojevic disse que o primeiro-ministro Djukanovic tinha finalmente mostrado sua "face ditatorial". Ao ser questionado sobre o apoio da Rússia e a oposição à OTAN pela Frente Democrática, o líder respondeu o seu partido, PzP, líder da Frente, fazia parte do partido europeu Aliança de Reformistas e Conservadores Europeus que advoga a entrada de Montenegro na OTAN, e que o apoio da Rússia ao movimento era "mais do que ridículo". Ele disse ainda que a confusão foi criada deliberadamente por pessoas infiltradas entre os manifestantes para causar confronto com a polícia em frente ao parlamento, e que as câmeras no local haviam filmado tudo. Os manifestantes haviam alertados sobre pessoas mascaradas no meio da multidão. Segundo Medojevic, há vídeos que mostram hooligans com balaclavas deixando o prédio do partido do governo e que testemunhou a presença de torcedores de futebol já envolvidos em outros confrontos e que atuariam como agentes do regime.

Dois diplomatas ouvidos pela Rádio Europa Livre que fizeram carreira na região dos Bálcãs, Edward Joseph e Wolfgang Petritsch, deram posições distintas à respeito da ingerência da Rússia em Montenegro. Joseph destacou o erro da OTAN ao manter Montenegro continuamente fora da aliança dizendo que esta situação, que considera perigosa, dava oportunidade para que os russos intervissem e desestabilizassem o país. Uma razão pela qual Montenegro ainda não teria sido convidada para entrar na OTAN seria a penetração do serviço secreto russo no país. Já Petritsch afirmou que, apesar dos Bálcãs serem prioridade secundária para a Rússia e de que seria bom para Montenegro integrar a OTAN e também a UE, a principal causa da crise era o "comportamento disfuncional" de Podgorica, que seria provocativo especialmente num contexto de maior tensão entre russos e ocidentais com a crise na Ucrânia. Ele destacou ainda que Montenegro recebe grandes investimentos russos, e que é estranho que agora Podgorica acuse Moscou de intervenção. Ambos países sempre foram historicamente muito próximos, o que seria motivo de preocupação para Bruxelas, e a Rússia sempre foi contrária à entrada de qualquer país na OTAN.

MONTENEGRO E OTAN: UMA INTIMIDADE CRESCENTE

(O primeiro-ministro de Montenengro, Mila Djukanovic, e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, num encontro oficial em Podgorica em 11 de junho de 2015.)

Os protestos e as consequentes acusações de que a Rússia estaria envolvida neles com o objetivo de instabilizar Montenegro e impedir sua entrada na OTAN ocorreu num momento de crescente aproximação e intensificação das negociações entre a aliança e Podgorica. Segundo o especialista sérvio em política externa citado anteriormente, os protestos explodiram depois que o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, visitou a capital montenegrina para tratar da adesão do país.

A visita de Stoltenberg à Podgorica ocorreu entre os dias 11 e 12 de junho de 2015. O objetivo do encontro com Djukanovic e membros do governo era avaliar o progresso das reformas internas de Montenegro com base no Plano de Ação de 2010 para entrar na OTAN. Os objetivos do Plano são centrar esforços principalmente nas reformas do setor de segurança, de inteligência, no Estado de Direito e no trabalho junto à opinião pública e intensificar os encontros entre líderes do governo e da aliança militar como forma de avaliar e acelerar as reformas necessárias. A intenção era concluir a entrada definitiva de Montenegro à OTAN em dezembro de 2015.

No encontro Stoltenberg e Djukanovic reafirmaram a necessidade de cumprir os objetivos do Plano de Ação para o ingresso em dezembro. O líder da OTAN também destacou a ajuda financeira e operacional de militares de Montenegro à aliança no Afeganistão. Disse que o país havia feito um "progresso real" em direção às reformas, à intensificação das conversações com a OTAN e da cooperação política com seus membros, mas destacou a necessidade de melhorar as reformas das leis do país e aumentar o apoio da opinião pública.

(Declaração pública em 12 de junho de 2015 onde Stoltenberg lamentou a morte de civis montenegrinos pela OTAN em 1999.)

Uma das novidades da visita ocorreu em 12 de junho, quando Jens Stoltenberg lamentou publicamente a morte de civis no bombardeio da OTAN à Montenegro, então parte da Sérvia, em 1999. Foi a primeira vez desde o evento que um líder da organização expressava lamento pelas mortes. As reações em Montenegro dividiram opiniões: partidos políticos, ONGs e apoiadores à adesão à OTAN receberam bem o que eles chamaram de "desculpas de Stoltenberg", justificando que era necessário que a população ouvisse este pedido. Por outro lado o Movimento Montenegrino pela Neutralidade disse que as palavras do secretário-geral eram apenas uma pequeno gesto para influenciar a opinião pública à respeito da entrada na aliança O principal argumento dos opositores à adesão é justamente o papel da organização na mortes de civis em 1999.

No dia 10 de agosto o parlamento de Montenegro colocou em pauta um projeto de resolução de apoio à entrada do país na OTAN. O projeto foi apoiado por 49 dos 81 deputados e seu objetivo fortalecer o apoio dos membros da casa à integração. A resolução, porém, não especificava como a adesão seria feita.

Jens Stoltenberg fez nova visita à Podgorica em 15 de outubro, dois dias antes dos confrontos nas ruas da cidade. As discussões centraram-se principalmente nas reformas das leis e no apoio da opinião pública. O secretário-geral destacou que as conversações com o governo de Djukanovic haviam sido "muito frutíferas", que o país havia feito grandes avanços nas reformar das leis, contribuía às missões da OTAN e da ONU e que era provável que em menos de dois meses os ministros das relações exteriores da aliança decidiriam sobre o convite à adesão. Para Djukanovic, Montenegro deveria ser um modelo de preparação à integração a ser seguido por outros países.

É importante notar que foi neste contexto de intensificação dos encontros entre Djukanovic e Stoltenberg, o avanço do Plano de Ação e a resolução apoiada pela maioria do parlamento que iniciaram as manifestações permanentes. Apesar do prazo para que a mobilização fosse encerrada até 10 de outubro, foi apenas no dia 17 que a policia entrou em ação e houve violência. Assim como para os manifestantes era importante mostrar suas insatisfações a Stoltenberg, para o governo não era bom que houvesse confusão logo antes do encontro do dia 15. A violência do dia 17 foi seguida pela já comentada manifestação e nova violência dia 24.

Até novembro de 2015 a opinião pública montenegrina encontrava-se dividida sobre a adesão à OTAN. Uma pesquisa encomendada por uma agência ocidental mostrou que 34,8% dos entrevistados consideravam a adesão o caminho correto para o país, ao passo que 34,7% consideravam o caminho errado. Os 30,4% restantes não tinham posição ou não sabiam responder à pergunta. Ou seja: o número de pessoas pró e contra a entrada de Montenegro era igual. Nos últimos meses houve a queda dos que apoiavam a adesão. A maioria (51%), porém, considerava que o país cedo ou tarde entraria na aliança. Com relação aos protestos, 27,6% os consideravam positivos e 47% negativos (destes 33,3% muito negativos), sendo que 53,5% disseram que eles não conseguiriam atingir seus objetivos contra apenas 15,0% que acreditavam que sim. Interessante notar que quando perguntadas sobre o impacto da OTAN para o país, a maioria das pessoas acreditava que a adesão poderia oferecer a Montenegro um melhor relacionamento principalmente com os EUA e a UE, o fortalecimento da paz, segurança, estabilidade e a proteção das fronteiras do país. O menor impacto seria a relação com a Rússia.

Percebe-se pela pesquisa de opinião que, sim, o apoio à entrada de Montenegro na OTAN é baixo e declinou nos últimos meses, porém estabilizou, e que sua oposição aumentou mas também estabilizou. Havia uma parcela da população (1/3) relativamente indiferente à questão. Ademais, a visão negativa dos protestos pela maioria deslegitimava a ação da oposição frente à entrada à OTAN, mas deslegitimava também as ações contra o governo de Podgorica. Ao contrário do que se observa no Brasil, a pesquisa mostrou que o governo é uma das instituições mais confiadas pela população. Ou seja: se o apoio e a oposição à entrada na OTAN eram equivalentes, havia muitas pessoas à parte da questão e principalmente uma descrença e uma visão negativa dos protestos. Na prática isto significava que o governo central tinha confiança (ou indiferença) de parte significativa da sociedade e que seu caminho para colocar em pauta uma agenda política pró-OTAN encontrava resistência basicamente entre os ativistas da oposição. A maior preocupação da população montenegrina não parecia ser a adesão à aliança ou a crise política, mas a questão socioeconômica: 61% dos entrevistados responderam ser favoráveis à integração do país na UE. 

(Stoltenberg e o ministro das relações exteriores de Montenegro, Igor Luksic, no encontro que oficializou o convite do país balcânico à organização. Bruxelas, 2 de dezembro de 2015.) 

Apesar dos protestos, do pouco apoio popular, da instabilidade política e da provável ingerência russa, Montenegro foi oficialmente convidada a entrar na OTAN em 2 de dezembro de 2015. Caso se torne membro nos próximos meses, esta será a primeira expansão da aliança desde que Albânia e Croácia aderiram em 2009.

Como o esperado, a Rússia reagiu com críticas. Sergei Lavrov, que já havia dito em setembro que as tentativas de expansão da OTAN era uma "provocação" e não ajudava em nada na estabilidade da região, disse que o convite à Montenegro era uma atitude "irresponsável". Já o senador russo Viktor Ozerov, chefe do comitê para defesa e segurança do Conselho da Federação Russa, disse que caso a adesão se confirme projetos da Rússia com o país balcânico seriam cortados, inclusive na área militar. Apesar do secretário de Estado dos EUA, John Kerry, dizer que a expansão da OTAN não era direcionada à Rússia ou a qualquer outro país, os diplomatas da aliança disseram que o convite à Montenegro era uma clara mensagem de que Moscou não pode impedir a expansão da organização por não possuir poder de veto. O pano de fundo desta afirmativa estava na Guerra da Geórgia em 2008 quando, com apoio da Rússia, Ossétia do Sul e Abkházia se separaram de facto do país impedindo que os georgianos entrassem na OTAN. Uma cláusula da organização não permite que países com disputas territoriais integrem a aliança. O mesmo ocorreu com a Ucrânia sobre a anexação da Crimeia pelos russos e a guerra no leste do país.

Podgorica mostrou-se pouco preocupada e disse que o convite não seria capaz de pôr em risco suas relações com Moscou, já que Montenegro possui poucos projetos e investimentos russos. A alguns especialistas também acreditam que é pouco provável que os russos tomem medidas drásticas contra o país balcânico. Jens Stoltenberg deu a entender que Montenegro poderia tornar-se oficialmente membro da OTAN no próximo encontro dos seus líderes prevista para acontecer em julho deste ano em Varsóvia, na Polônia.

A OPOSIÇÃO VAI AO KREMLIN

Poucas semanas após o fim dos protestos de rua em 24 de outubro, a oposição montenegrina boicotou os encontros no parlamento e começou a traçar publicamente planos e estratégias com membros do Kremlin com o objetivo de barrar o ingresso do país na OTAN e planeja uma nova política para o país.

(Milan Knezevic, leader of the Democratic People´s Party, DNP)

Milan Knezevic, deputado e líder do DNP, segundo maior partido de Montenegro e que integra a Frente Democrática, recebeu um convite do ministro russo Sergei Lavrov para participar de um fórum em comemoração aos cem anos da Agência Russa para Cooperação Internacional, realizado entre os dias 25 e 27 de novembro de 2015. Ele foi o único membro do parlamento de Montenegro a ser convidado. Uma semana antes Knezevic declarou que sua intenção no fórum era destacar o histórico laço de amizade entre russos e montenegrinos, que estes últimos veem a Rússia como um grande aliado e protetor, que a população não aprova as sanções impostas ao país pela União Europeia (numa referência à crise na Ucrânia), e que a Rússia é um importante ator geopolítico global capaz de enfrentar os desafios do mundo de hoje. O ideal para Montenegro seria uma neutralidade militar, ou seja, um não comprometimento com a OTAN, e que tanto o fortalecimento dos laços sociais e econômicos com a Rússia e a UE eram importantes.

(Dmitry Rogozin, vice-presidente russo líder do partido ultranacionalista Rodina e aliado de Putin. Agora sob sanção de Montenegro e da UE.) 

Knezevic voltou novamente à Moscou em 30 de janeiro de 2016, desta vez com seu colega de partido, Petrag Bulatovic, à convite do vice-presidente e assessor de Putin, Dmitry Rogozin. Rogozin é fundador e financiador do Rodina, partido aliado ao Rússia Unida do presidente russo, e considerado extremamente nacionalista (um exemplo do radicalismo do partido ocorreu em setembro de 2004 quando o ideólogo Alexander Dugin, então seu colaborador, afastou-se do partido por considera-lo excessivamente nacionalista, composto por "chauvinistas de extrema-direita" (sic) e muito próximo do Partido Comunista). O objetivo da visita era a assinatura de um memorando onde o DNP e o Rodina se comprometiam em compartilhar posições a respeito do clima político dos Bálcãs e receber apoio dos colegas russos para a neutralidade militar de Montenegro. Mas desta vez Knezevic foi mais longe: propôs uma aliança de países neutros que incluiriam ainda Sérvia, Macedônia e Bósnia-Herzegovina. A proposta recebeu apoio do líder do Serbian Peoples´ Party (SPP) Nenad Popovic. Andrija Mandic (NOVA) também estava em Moscou acompanhando os colegas da oposição.

Outra proposta que reforçava a ideia de neutralidade era fazer de Montenegro a "Suíça dos Bálcãs". Esta ideia foi lançada pelo vice-presidente da Duma, Sergei Zheleznyak na presença de Knezevic, Bulatovic e Mandic. O embaixador da Eslovênia na OTAN, Jelko Kacin, disse que o encontro dos três líderes opositores com membros da Duma era uma interferência na política montenegrina, e que esta atitude era um comportamento típico de política externa russa. Zheleznyak está sob sanção da EU por seu envolvimento na anexação da Crimeia pela Rússia.


(Sergey Naryshkin (direita), recebendo Knezevic (centro), e Andrija Mandic, líder do NOVA (esquerda) em Moscou em 1º de fevereiro de 2016.)

Outro líder russo que recebeu os membros da DF foi Sergey Naryshkin, presidente da Duma e que também está sob sanção da UE pela questão da Crimeia. Naryshkin é presidente do conselho de diretores da TV russa Channel One, onde Andrija Mandic concedeu um entrevista defendendo a pauta da oposição. Noutro momento Mandic também declarou que assim que a oposição chegasse ao poder levantaria as sanções econômicas que Montenegro impôs à Rússia ao longo de 2014 e revalorizaria os laços com o país construído por governos anteriores. Naryshkin criticou as sanções dizendo que eram ilegais e causavam graves danos às relações entre os dois países.

A conclusão dos encontros dos líderes da DF com membros da Duma em Moscou foi a reafirmação da posição contrária à expansão da OTAN nos Bálcãs, a neutralidade militar de Montenegro e a necessidade de realizar um referendo popular para decidir sobre a entrada ou não do país na aliança.

A reação em Montenegro à viagem dos líderes da Frente Democrática foi de contestação, mas de pouca preocupação. O principal questionamento era se seria aceitável que políticos do país discutissem questões internas com estrangeiros ao mesmo tempo em que boicotavam o próprio parlamento.  Mas o governo montenegrino deu pouca importância sobre os possíveis efeitos do encontro. Um representante do partido do governo, o DPS, disse que os oposicionistas não têm apoio da população e que portanto a viagem à Rússia não teria maiores impactos na política do país. O diretor do Serviço Russo da Rádio Europa Livre reforçou a posição do governo dizendo que a visita não tem peso político, mas que serve de propaganda para Moscou e faz parte da tentativa do governo russo de criar uma sistema de alianças políticas pela Europa.

Apesar da aparente despreocupação, Montenegro adotou sanções contra cinquenta empresários e políticos russos no dia 11 de fevereiro de 2016. Um deles foi justamente Dmitri Rogozyn, que havia sido convidado por Knezevic a visitar Montenegro depois que os líderes da DF estiveram em Moscou. Segundo Ministério do Exterior, o convite foi feito sem consulta ao governo. Ademais, Rogozyn é conhecido por suas atitudes pouco amigáveis como sua declaração, em dezembro de 2015, de que Montenegro se arrependeria de entrar no OTAN, e sua visita à Sérvia em janeiro seguinte onde se encontrou com Vojislav Seselj, fundador e líder do Partido Radical Sérvio (PRS), quando ainda estava detido e sob julgamento pelo Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia por crimes contra a humanidade. Seselj foi absolvido dois meses depois e voltou à cena política.

A visita de Rogozyn à Sérvia e a figura de Seselj são relevantes para a política de Montenegro. Um dos grupos que participaram das manifestações e integra a DF é o Serbian Oath Keepers, dissidência montenegrina do PRS de Seselj, cuja atuação no país existe desde os anos 90 sob o nome oficial de Party of Serbian Radicals (PSR). O líder do grupo, Robert Zizic, disse que Seselj abandou a luta dos direitos dos sérvios em Montenegro, voltou-se às questões socioeconômicas, passou a cooperar com partidos e organizações que apoiam a integração do país à OTAN. A proposta do novo grupo é resgatar o nacionalismo sérvio, realizar campanhas contra a integração do país à OTAN e à UE e estreitar laços com Belgrado e Moscou com base nos valores históricos e culturais comuns. O principal ponto de apoio do Serbian Oath Keppers na Sérvia é o Serbian Zavetnici, dissidência do PRS no país vizinho liderado por Stefan Stamenskovski.

CRISE POLÍTICA FAVORÁVEL À RÚSSIA E NOVOS PASSOS EM DIREÇÃO À OTAN

(Djukanovic fala ao parlamento na crise política de janeiro de 2016: boicote da oposição e assentos vazios.)

Três dias antes da viagem dos líderes do DF à Moscou no dia 30 de janeiro, uma crise política abalou o governo de Montenegro: foi dissolvida a aliança que governava o país, composta entre o partido do governo, Democratic Party of Socialists (DPS), liderado por Djukanovic, e o Social Democrats Party (SDP), liderado por Ranko Krivokapic. O rompimento aconteceu depois de três dias de calorosos debates no parlamento que se encerrou com a votação de uma moção de não confiança ao primeiro-ministro. Djukanovic venceu por margem muito apertada, recebendo 42 dos 81 votos, e sua vitória ocorreu graças aos votos do menor partido de oposição representado na casa, o Positive Montenegro (PM) liderado por Darko Pajovic, que nos últimos anos tem se aproximado do governo.

Esta votação havia sido convocada pelo próprio Djukanovic em 19 de dezembro de 2015 devido ao agravamento da crise política no país. Há dois anos o SDP vem reclamando da falta de ação do primeiro-ministro na reforma do judiciário e pela maior liberdade de imprensa. Durante os debates, membros do DPS e do SDP acusaram-se uns aos outros pela crise política, pelo rompimento da aliança e das alegadas fraudes eleitorais, uma das bandeiras da oposição. Corrupção, compra de votos contra a independência de Montenegro, a venda de terras da região costeira para os russos e a aliança com o já falecido Slobodan Milosevic nos ano 90, condenado por crimes de guerra e chamado na imprensa ocidental de "carniceiro dos Bálcãs" por suas ações da Guerra da Iugoslávia (1992-1995), foram outros temas de discussão. Djukanovic e Krivokapic, então presidente do parlamento, também trocaram acusações. No dia da votação, centenas de pessoas lideradas pela Frente Democrática realizaram uma manifestação em frente ao parlamento pedindo a saída do primeiro-ministro.

(Djukanovic e o então presidente do parlamento e líder do Social Democrats Party, Ranko Krivokapic.)
Em 19 de fevereiro a crise teve um novo capítulo: governo e oposição não chegaram a um acordo sobre a realização de eleições "livres e justas". O principal ponto de divergência era sobre o controle do canal de TV público RCTG. A oposição acusava o diretor e o editorial do programa de notícias de serem parciais. Outro ponto era o comando da Agência Nacional de Segurança, cujo cargo de diretor-chefe era demandado pelos oposicionistas. No dia 27 o governo de Djukanovic havia acertado com o parlamento a demissão de Krivokapic da função de presidente para o dia seguinte. Em seu lugar entrou Darko Pajovic, eleito sob boicote da oposição. Desta forma encerrava-se definitivamente a aliança entre o DPS e o SPD.

(Manifestações da Frente Democrática em Podgorica em 27 de fevereiro de 2016.)

A nova crise criada pelo episódio do dia 19 fez a Frente Democrática convocar novas manifestações pela saída de Djukanovic no dia 27. Enquanto a massa estava nas ruas, o governo acertava a demissão de Krivokapic. As demandas incluíam as questionadas pela oposição no parlamento como eleições "livres e justas", o controle da TV pública e da agência de segurança. Algumas fontes locais afirmaram que manifestantes participariam do protesto vestindo camisetas com o rosto de Vladimir Putin. Durante as manifestações o que se via eram bandeiras de Montenegro e da Sérvia. Adrija Mandic (NOVA), que havia chegado da Rússia poucas horas antes, discursou à multidão dizendo que não haveria qualquer negociação com Djukanovic. Outros três partidos de oposição também foram criticados por não participarem das manifestações.

Em 15 de março foi a fez da direita nacionalista sérvia do Serbian Oath Keepers lançar uma campanha por manifestações anti-OTAN em Montenegro.

Apesar das novas manifestações centrarem-se aparentemente apenas em questões políticas internas elas deram continuidade à agenda das manifestações em setembro e outubro do ano passado, que demandavam também a não adesão de Montenegro à OTAN. Os primeiros protestos aumentaram as tensões no governo e levaram ao pedido de moção de não confiança a Djukanovic. Caso o primeiro-ministro tivesse perdido a votação em janeiro, haveria a escolha de um novo líder, e isto colocaria em risco o processo de integração à aliança militar.

Outro fator relevante é o paralelo entre o agravamento da crise e a intensificação dos contatos dos líderes da Frente Democrática com figuras importantes do governo russo. O pedido de moção de não confiança do primeiro-ministro ocorreu três semanas após à viagem de Knezevic (DNP) a um fórum em Moscou, seguido por uma nova viagem desta vez acompanhado de seu colega Bulatovic (NDP) e Mandic (NOVA). Esta nova viagem ocorreu três dias depois da votação de moção, e que inaugurou o rompimento da coalização governista então formada pelo DPS e o SDP. Por fim, a manifestações de rua, liderados pela Frente Democrática, voltaram com um pouco mais de força quando governo e oposição não entraram num acordo sobre eleições "livres e justas" e o controle da TV pública e do serviço secreto, tendo sido este último denunciado pela OTAN de estar infiltrado de agentes russos, fator que adiou o processo de integração do país à aliança. A pergunta que fica é: até que ponto o Kremlin está conseguindo penetrar e influenciar a política de Montenegro através da cooptação de aliados? Não tenho esta resposta, mas é evidente que a evolução destes acontecimentos favorecem a Rússia, e que uma das chaves é a relação da Frente Democrática com o Kremlin num contexto de crise política em Montenegro.

(Ministros das relações exteriores dos países membros da OTAN no da assinatura do Protocolo de Adesão de Montenegro, em Bruxelas. Djukanovic e Stoltenberg estão ao centro da foto.)

Por outro lado o processo de integração à OTAN não parou. Com aval dos ministros das relações exteriores dos países membros e a assinatura do Protocolo de Adesão, em 19 de maio Montenegro foi oficialmente convidado à participar da organização como "convidado" , isto é, um observador. Assim o país passou a ter uma cadeira própria para acompanhar os encontros oficiais. Segundo avaliou um especialista em segurança citado pela reportagem do The Atlantic, isto causará "profunda consequências políticas", já que a integração de Montenegro abre mais um capítulo na evolução política dos Bálcãs, traumatizados pelas guerras dos anos 90. A integração também vem num "tempo oportuno" de dificuldades políticas na Europa, a crise dos refugiados e a crise na Ucrânia.

No dia da assinatura do Protocolo, uma recente pesquisa comentada no Balkan Insight mostrou que os montenegrinos estavam divididos em relação à entrada do país na OTAN, sendo 45% a favor da medida. Por outro lado, um levantamento feito pelo DNP de Knezevic mostrou que 61% dos habitantes eram a favor de um referendo sobre a questão. O líder do partido comentou novamente que a maioria da população era contrária à integração.

Desde o rompimento entre o DPS e o SPD Djukanovic passou a governar com maiores dificuldades. A oposição recusou-se a participar o novo gabinete do governo composto após a ruptura e boicotou até mesmo a sessão parlamentar de aniversário dos dez anos de independência de Montenegro dirigida por Pajovic e comemorada em 3 de junho.

No período das comemorações foram divulgados na imprensa dados a respeito da posição da população sobre a independência. Uma pesquisa destacada por Knezevic afirmou que 50% do país era favorável à sua independência e 30,9% contrários; Djukanovic comentou sobre número gerais, dizendo que em torno de 60% da população seria favorável a situação de independência do país e 40% contrário. Na vizinha Sérvia uma pesquisa realizada em maio mostrou que apenas 20% da população estava interessada em reestabelecer a união com Montenegro. Apesar da sociedade não estar tão ativa quanto nas questões políticas e a maioria ser favorável à manutenção da independência ela ainda encontra-se socialmente dividida, principalmente se levado em consideração a posição da considerável minoria sérvia que compõe em torno de 30% da população.


(Mapa da composição étnica de Montenegro mostrando o grupo predominante por município: vermelho = montenegrinos; azul = sérvios; demais cores = grupos minoritários.) 

Com o processo de integração à OTAN em andamento, uma grave crise política não resolvida e uma população socialmente dividida (ainda que não muito ativa politicamente) Montenegro chega à metade de 2016 com muitas coisas a resolver. Uma das perguntas que podemos fazer é: será a Rússia capaz de reverter a adesão à OTAN e atrair Montenegro à sua esfera de influência através da oposição?

Esta seria uma tarefa difícil. Djukanovic, no poder desde 1991, está decidido a estreitar relações com o Ocidente. Uma prova disto está na Constituição do país, adotada 17 de outubro de 2007 quando já era governante, onde o preâmbulo diz explicitamente que o país se dedicará a cooperar com outros países e promover "as integrações europeia e euro-atlânticas" e destaca que suas relações exteriores devem ser "baseadas nos princípios e nas regras da lei internacional" de forma a facilitar seu acesso às organizações internacionais. Desta forma, cabe ao parlamento "decidir a forma de acesso à União Europeia".

A Estratégia de Segurança Nacional é mais direta em relação à OTAN e à UE:

"A estratégia confirma o compromisso de Montenegro em tomar todas as ações necessárias bem como alcançar as condições para sua integração nas estruturas de segurança internacional euro-atlânticas e outras. Neste contexto, o objetivo estratégico de Montenegro é se tornar membro pleno da OTAN e da UE o quanto antes."

(Manifestação pró-Putin durante a visita do presidente russo à Belgrado, Sérvia, em 16 de agosto de 2014: aliados políticos na região dos Bálcãs)

Este movimento de Montenegro entra em choque com as novas ações da políticas externa russa. Desde meados de 2006-07 a Rússia tem tomado atitudes mais assertivas de contestação do "mundo unipolar" lidera pelos EUA e tentado fortalecer sua liderança em sua esfera de influência. Para isso ela criou e fortaleceu instituições, meios de comunicação e redes de contatos pelo mundo, principalmente na Europa, numa espécie de globalização alternativa (ver também aqui). Desde 2014, com a crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia, o país passou para o que dois analistas chamaram de "confrontação aberta com a ordem internacional". Para eles a chamada "Doutrina Putin" advoga um excepcionalismo russo, uma posição de afirmação da Rússia na ordem mundial. O principal ponto de confrontação estaria entre "mundo russo" e o Ocidente enfatizando seus valores e princípios civilizacionais. Neste contexto os Bálcãs ganham destaque pelos lações históricos dos russos com os sérvios e montenegrinos, além de seus vizinhos gregos, romenos e búlgaros, todos eles com populações majoritariamente ortodoxas.

Montenegro, por seu pequeno tamanho e população, fica à mercê da forte influência russa na região através de questões como fontes de energia (com a expansão da rede de gasodutos e oleodutos concorrente aos projetos ocidentais), laços econômicos, alianças políticas, esforços diplomáticos, presença militar (foi negada a instalação de uma base militar russa no seu litoral) e ativismo cultural-religioso. Os investimentos russos no país, a recepção de uma grande quantidade de turistas russos, a grande minoria sérvia e as críticas de alguns analistas sobre a mudança recente do rumo da política externa mostram que a até pouco tempo Podgorica tinha uma relação mais íntima com Moscou. Está claro, portanto, que Djukanovic alterou a política externa do país e agora está tentando pular fora da esfera de influência da Rússia.

As alianças políticas com sérvios, búlgaros, bósnios e gregos; os investimentos, os laços diplomáticos e as redes de energia que correm através de Grécia, Bulgária e Croácia; a maior presença militar no Mar Negro (em especial depois da anexação da Crimeia); e as igrejas ortodoxas nacionais (principalmente da Sérvia) são fatores que podem influenciar a política montenegrina. Apesar de 32% dos investimentos em Montenegro serem de origem russa, este elemento não parece estar em jogo, e a Igreja Ortodoxa do país, que poderia servir de instrumento para mobilização popular, tem baixo nível de confiança em comparação com a Igreja Ortodoxa Sérvia (29,0% e 48,4%, respectivamente). Portanto, o maior desafio de Montenegro está na sua política interna com uma oposição aliada do Kremlin. Este é o único trunfo que Moscou pode utilizar sem afetar diretamente os países vizinhos. A pressa com que Montenegro insere-se na OTAN e na União Europeia e a capacidade da Frente Democrática em virar o jogo, seja com protestos de rua ou pressão parlamentar, serão determinantes para o futuro próximo do país.

* escolhi manter o nome dos partidos conforme as fontes consultadas em inglês; traduções para o português variam conforme a fonte.