Quando o governo do ex-presidente da Ucrânia, Victor Yanukovich, suspendeu as negociações para avançar o Acordo de Associação com a União Europeia e firmou um acordo com a Rússia, estopim da crise que se abateu sobre o país a partir de novembro de 2013, uma das vantagens oferecidas pelo governo russo foi o empréstimo de U$ 15 bilhões a Kiev, além de desconto no preço do gás. Na ocasião, Moscou chegou a emprestar inicialmente U$ 3 bilhões, mas o governo Yanukovich foi derrubado e o empréstimo foi suspenso. A dívida dos U$ 3 bilhões ainda não foi paga, e seu vencimento ocorrerá mês que vem.
O empréstimo russo apenas fortaleceu a oposição que foi às ruas, que via neste laço financeiro uma dependência de Moscou. Com a crise provocada pelos protestos, a queda de Yanukovich, a ocupação da Crimeia pela Rússia e o conflito armado em andamento no leste do país, além do histórico de corrupção e má administração, a Ucrânia projeta uma queda de até 9,5% no seu PIB (o FMI fala em 11%) neste ano tendo caído mais de 12% no período 2014-15.
(O presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, e a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, num encontro em setembro deste ano.)
O FMI, como de costume, propõe uma série de reformas econômicas, administrativas e financeiras para conceder empréstimos ao país (detalhes dos ajustes e dados gerais da economia ucraniana de março/2015 aqui). Em julho o Fundo aprovou a liberação da primeira parcela no valor de U$ 1,7 bilhão de um total de U$ 17,5 bilhões em ajuda ao longo de quatro anos. Dentre as prerrogativas do empréstimo está a negociação das dívidas com credores internacionais que somam U$ 15 bilhões. E dentre eles está o empréstimo ainda não pago de U$ 3 bilhões à Rússia.
A dívida pendente com a Rússia é o calcanhar de aquiles do atual projeto de empréstimos do FMI à Ucrânia e, em última instância, um mecanismo arrasto da Ucrânia à órbita de Moscou ao mesmo tempo em que este busca cortar a influência do Ocidente sobre Kiev.
Como sugere uma reportagem da Rádio Europa Livre, o empréstimo rápido inicial da Rússia à Ucrânia foi o "cálice envenenado" que agora ameaça a capacidade do país que quitar suas dívidas, um cavalo de Tróia que garantiria influência de Moscou em Kiev. Com a economia em grave crise, altamente endividada e desorganizada, os ucranianos tendem a perder ainda mais confiança no mercado internacional e afugentar investimento estrangeiro, como coloca o relatório do FMI. Segundo as regras do Fundo, um país membro não pode receber empréstimos enquanto estiver endividado com países ou credores. A solução seria, ou o pagamento da dívida (o que não é possível até sua data limite, mês que vem), ou a sua reestruturação. A Rússia, porém, está buscando bloquear futuros empréstimos à Kiev através da não renegociação de sua dívida. Moscou alega que o dinheiro a ser pago é de Estado para Estado, ao passo que a Ucrânia considera esta mesma dívida relacionada a credores comerciais. Em suma, para os russos a dívida é "oficial", mas os ucranianos ela é "comercial". Com a recusa russa de sentar-se à mesa, o primeiro-ministro da Ucrânia ameaçou dar um calote na Rússia.
Sendo a Ucrânia pivô de uma crise mais ampla, o Ocidente reagiu por meio do FMI: o Fundo, cujos votos no Conselho Executivo é comandado principalmente por americanos e aliados, está buscando mudar as regras de empréstimo internacional para permitir que países endividados possam receber ajuda financeira. Desta forma a Ucrânia estaria livre para receber dinheiro do FMI mesmo com a dívida pendente com os russos. A expectativa é que as mudanças nas regras sejam anunciadas no encontro do G-20 na Turquia ainda neste mês.
O FMI já havia perdoado U$ 3,8 bilhões da Ucrânia em 27 de agosto passado como forma de estimular as reformas internas para pagar sua dívida externa. Um corte bastante generoso numa época em que parte do Ocidente passa por uma crise econômica, mas que parece se justificar por razões geopolíticas, isto é, de afastar a Ucrânia da Rússia. Para Kiev foi um "ganho" maior do que o dinheiro depositado por Moscou na esteira de crise que derrubou Yanukovich.
A economia da Ucrânia não deve retomar seu desenvolvimento tão cedo. O relatório do FMI projeta que o PIB do país atingirá o patamar do final da era soviética só em 2019. Isto se tudo der certo, segundo o desejo do Fundo. Mas como a crise na Ucrânia provou, o jogo pesado da Rússia não está nas finanças, mas no seu hard power. O mecanismo financeiro é apenas um ponto menor de tensão para um país que está disposto, a julgar por seu revisionismo nacionalista, sua ação na Crimeia e na recente intervenção na Síria, de ir bem além do que os líderes ocidentais esperam. Isto apesar da crise econômica na própria Rússia. Ainda há muitos capítulos pela frente. Resta saber qual dos lados suportará o desgaste de longo prazo.
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