terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Movimento Eurasiano no Brasil: trajetória e prisão de Rafael Lusvarghi (parte 1)

(Lusvarghi no leste da Ucrânia no início de 2015.)

Na manhã do dia 6 de outubro, às 9 h, foi preso no Aeroporto Internacional de Boryspil, próximo de Kiev, o brasileiro Rafael Marques Lusvarghi, 32 anos, um dos combatentes estrangeiros ligados aos separatistas pró-Rússia na guerra na Ucrânia. A prisão foi realizada por agentes do Serviço de Inteligência da Ucrânia (SBU) sob acusação de formação de grupo terrorista segundo o artigo 253-8 do Código Penal do país. Lusvarghi é considera um mercenário estrangeiro. Com ele foram encontrados um documento de identidade da República Popular de Donetsk (RPD) contendo a assinatura de Igor Strelkov, militar russo e principal líder da Guerra em Donbass, um passaporte da RPD, um laptop com correspondências trocadas por grupos considerados terroristas e uma medalha como condecoração por serviços prestados em combate, possivelmente dado pelo próprio Strelkov.

(Vídeo no Youtube do Serviço de Inteligência da Ucrânia que mostra Rafael Lusvarghi detido por agentes ucranianos no Aeroporto de Boryspil, em 6 de outubro.)

A prisão do combatente brasileiro levantou questionamentos por parte de simpatizantes pró-Rússia. Lusvarghi foi preso porque o avião em que se encontrava, com rota para Moscou, foi desviado para aterrissar Boryspil. O avião seria da British Airways, levantando a suspeita de que haveria uma interferência do Reino Unido na sua prisão.

Neste mesmo dia uma reportagem do site da Opera, revista brasileira de esquerda simpática à pessoa de Lusvarghi, recebeu uma série de informações de "amigos e militantes da causa novorrusa" através de André Ortega, ex-correspondente da revista que está na Ucrânia. Segundo ele "internautas do mundo russo-ucraniano" desconfiaram que a prisão de Lusvarghi fosse uma armação. A justificativa era de que o vídeo divulgado pela SBU mostrava o rosto do brasileiro embaçado, e sua barba seria mais volumosa do que a apresentada em vídeos recentes. A reportagem diz que os "militantes solidários com a causa novorrusa" estariam preocupados com a segurança do brasileiro, já que o governo de Kiev, onde atuariam "grupos paramilitares neonazis", estaria utilizando tortura contra seus prisioneiros. O texto também acusa "radicais nacionalistas" e a paralisia do governo ucraniano de não cumprirem os Acordos de Minsk, dentre eles a anistia a prisioneiros de guerra.

(Rosto embaçado levantou a suspeita por defensores de Lusvarghi de que o homem preso em Boryspil não seria o brasileiro.)

No dia 9 de outubro a revista publicou outra reportagem com informações de Ortega comentando a trajetória de Lusvarghi até sua prisão. O combatente voltou ao Brasil no final de 2015, onde trabalhou num barco pesqueiro na costa. Ele teria saído da Ucrânia por estar "cansado da vivência na região", por ter vivido a guerra o suficiente e estaria frustrado com a paralisia do conflito e com o cessar-fogo incerto. Sua saída da Ucrânia seria condição para cumprimento do Acordo de Minsk, já que é combatente estrangeiro.

Lusvarghi havia recebido propostas de trabalho em outros lugares do mundo, dentre elas a da empresa Omega em agosto deste ano para atuar como segurança de um navio que sairia de Odessa, na Ucrânia, para Galle, no Sri Lanka. Ele aceitou a oferta, mas ao mesmo tempo reagiu com preocupação. O brasileiro entrou em contato com a empresa para saber dos riscos de passar pela Ucrânia depois de ter lutado em Donetsk e comunicou a respeito da anistia aos combatentes conforme os Acordos de Minsk. Ele também buscou orientação sobre sua situação junto ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil. Segundo Ortega, Lusvarghi aceitou a oferta por ela oferecer apenas uma passagem só de ida, considerar Odessa uma cidade pró-Rússia e por confiar nos Acordos. A Omega teria entrado em contato com o escritório da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), localizado em Londres, que teria garantido não haver riscos para o brasileiro. Ele comprou passagem em 26 de setembro, embarcou para a Turquia dia 5 de outubro e no dia 6 voou para a Ucrânia. Segundo a reportagem, a Procuradoria de Kiev teria expedido mandato de prisão contra o brasileiro em 4 de outubro, um dia antes de sua saída do Brasil, e um "site pro-ucraniano" teria divulgado o trajeto de sua viagem. Estas informações seriam indicativos de que a SBU sabia da passagem de Lusvarghi pela Ucrânia.

Mesmo sem apresentar provas, a revista também sugere que a Omega teria contribuído para a prisão, já que entre seus clientes estaria o Diretório Máximo de Inteligência do Ministério da Defesa Ucraniano.

As informações disponíveis nos parágrafos acima levam a uma contradição: se Lusvarghi foi da Turquia para a Ucrânia, como afirma a Opera, como então seu voo, supostamente da British Airways, estaria indo para Moscou? Caso contrário o avião não teria sua rota desviada para pousar no aeroporto de Boryspil. Ou o brasileiro tinha a Rússia como destino para uma conexão, ou a revista errou (ou omitiu por razões desconhecidas) esta informação.

O site de notícias dos militantes pró-Rússia Slavyngrad.org afirma que o voo do brasileiro fazia a rota Dublin-Moscou. Ele iria à capital russa negociar a oferta de emprego da numa empresa de segurança de navios (não esclarece se da Omega). Lusvarghi teria sido enganado por agentes da SBU, que no contato para a oferta de trabalho teriam se passado por cidadãos russos. O site também levanta a hipótese de que haveria interferência no Reino Unido, questionando a imprudência do voo em fazer escala justamente na Ucrânia, que está em conflito com a Rússia.

A imprensa da RPD, como o esperado, também rejeitou a classificação do brasileiro como "mercenário estrangeiro", chamando-o de "guerreiro internacionalista".

No Brasil o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) recebeu a notícia da prisão do brasileiro no dia 7 de outubro através de sua Embaixada em Kiev. O setor consular da Embaixada entrou em contato com as autoridades ucranianas para visitar Lusvarghi e ter mais notícias do que havia acontecido. A resposta veio dia 14 pelo Itamaraty: o brasileiro estaria bem com acesso a boa alimentação, não sofreu maus-tratos, possuía um advogado, e um procurador ucraniano estava acompanhando o caso. Essas informações foram divulgadas depois que a Embaixada fez uma visita consular a Lusvarghi.

Mas como o combatente brasileiro chegou à Ucrânia? E qual foi sua trajetória antes da prisão?

(Lusvarghi, ao centro, na Legião Estrangeira Francesa em 2006.)

Rafael Marques Lusvarghi nasceu em Jundiaí, no interior de São Paulo, numa família de classe média e descendente de húngaros. Sua trajetória foi descrita por ele mesmo numa entrevista concedida ao site História Militar Online (HMO) em setembro de 2015. Esta é a descrição mais completa de sua vida pública disponível nos meios de comunicação brasileiros:

"Meu nome é Rafael Marques Lusvarghi. Sou militar, oficial do quadro de combatentes, e um muito bom. Comecei minha carreira cedo, me alistando na Legião Estrangeira Francesa como paraquedista na Companhia de Montanha do 2REP [ 2eme Régiment de Étrancher Parachutistes) onde participei de algumas missões [que não pode revelar], e também fazendo alguns cursos. Fui dispensado por problema de saúde. Recuperado, de volta no Brasil, passei em concurso para Soldado da PM do Estado de São Paulo em fins de 2005.  
Lá meu serviço foi basicamente interno, com apenas algumas poucas rondas ostensivas e rádio patrulha. Mas mesmo assim aprendi muito sobre funcionamento da área administrativa, e a parte burocrática sem a qual é impossível gerar uma grande força. Apesar de não gostar deste papel, considero indispensável a burocracia e padronização de procedimentos e modos operantes. 
Claro que, ambicioso e orgulhoso, quis crescer e me tornar oficial. Passei no concurso para o CFO [Curso de Formação de Oficiais] no Pará, e fui cursar a Academia de Oficiais da Policia Militar Coronel Fontoura no IESP. Tradicionalista, decidi por me aperfeiçoar na cavalaria e estive presente no Regimento Montado Cassulo de Melo.  
Em 2010 cometi o grande erro de interromper minha carreira militar, pedindo baixa da corporação. Foi para ir viver na Rússia. Nunca tive paciência com a vida civil, a falta de disciplina e hierarquia, o preto no branco.  
De volta ao Brasil em 2014, tomei certas atitudes por motivos que hoje discordo, a maneira como as manifestações se desenrolam no Brasil não é adequado. Gostaria de salientar aqui que sobretudo hoje sou apolítico, até tenho minhas concepções, acima de tudo contra todo esse vitimismo que assola nossa nação, quem quer consegue, quem quer faz, quem chora é fraco, e como dizemos no meio militar, os fracos que se explodam. Logo, me arrependo dos motivos que me levaram as ruas (durante as manifestações da Copa do Mundo no Brasil), mas não me arrependo das lutas que me envolvi. Como cidadão livre e em momento de folga, posso fazer o que bem entender não infringindo a lei. Se eu quiser beber e parar no meio de uma rua sem tráfego, farei, se quiser beber de saia, farei também. E estando certo, luto até a morte pelos meu direitos. Como dizem os US Marines, uma das melhores forças do mundo: Semper Fi, do or die!  
Depois de solto retornei ao meu projeto de participar na guerra civil na Ucrânia, do lado pró-Rússia porque… Sou pró-Rússia incondicionalmente. Mas acontece que realmente são os pró-Rússia os certos nessa questão."

A viagem de Lusvarghi à Ucrânia recebeu significativa atenção da imprensa brasileira. Primeiro porque ele já era conhecido por participar de protestos de rua no Brasil em 2014; segundo, era curioso que um cidadão local fosse a um país tão distante para se envolver num conflito armado sem conexão direta com sua terra natal.

Apesar da sucinta descrição de sua carreira como militar, policial e combatente, Lusvarghi omite alguns detalhes que ajudam a entender a trajetória e as razões que o fizeram estas decisões.

As ações do brasileiro se tornam mais "radicais" depois de sua volta da Rússia em 2010, onde fez curso de administração em Kursk, trabalhou e aprendeu a língua russa. Um de seus professores lhe deu o apelido o apelido "Riurik Varyag Volkovich", numa referência à dinastia Rurik. Lusvarghi pretendia entrar no exército, mas não foi aceito por ser estrangeiro. Voltou para o Brasil em meados de 2013/14. Neste período de retorno ele afirma ter ido à Colômbia e entrado em contato Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a quem teria feito uma "visita" na cidade de Cartagena. Inclusive ele teria entrado na guerrilha, mas saiu porque os guerrilheiros "não têm cultura. (...) eles não têm preparo, não têm plano do que fazer", e se mostrou decepcionado com o processo de paz então em negociação entre o grupo e o governo de Bogotá que levaria à entrega das armas e a transformação guerrilha em partido político.

(À esquerda, detenção de Lusvarghi pela PM de São Paulo, em 12 de junho, cuja foto teve grande repercussão na imprensa brasileira; à direita, a prisão em 23 de junho vestindo kilt escocês.)

De volta ao Brasil, Lusvarghi conseguiu dois empregos em Indaiatuba, interior de São Paulo, um como professor de inglês e outro como assistente de helpdesk numa empresa de informática. Ele participou de protestos promovidos por movimentos e partidos de esquerda contra os gastos da realização da Copa do Mundo de 2014. Numa das manifestações realizadas na cidade de São Paulo em 12 de junho, dia da abertura do evento, ele foi detido depois de se colocar na frente do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Recebeu vários tiros de balas de borracha e só foi contido por cinco policiais ao mesmo tempo. Foi nesta ocasião que ele ficou famoso: numa foto amplamente divulgada pela imprensa brasileira, ele aparece sendo estrangulado por um policial militar, cuja imagem virou um dos símbolos dos protestos contra a Copa.

(Cicatrizes que Lusvarghi mandou marcar no seu rosto num estúdio de tatuagem: etapa de criação de um combatente nórdico.)

Em 17 de junho Lusvarghi se submeteu a uma escarificação num estúdio de tatuagem, técnica utilizada para cortar a pele e deixar um cicatriz, enquanto a seleção do Brasil jogava contra o México na Copa do Mundo. A marca foi inspirada nos personagem Leônidas, do filme 300, Kratos, de um jogo eletrônico de luta, e num ex-colega da Legião Estrangeira. Em 23 de junho Lusvarghi esteve em outro protesto, agora na Avenida Paulista, a principal de São Paulo. Houve novos confrontos com a PM, mas desta vez ele e um amigo estudante de Jornalismo da USP, Fábio Hideki, foram presos acusados de serem black blocs e de portarem explosivos. O futuro combatente estava trajado conforme seus ideais de luta: rosto cicatrizado, cabelos e barbas compridas (numa alusão aos guerreiros nórdicos), kilt (vestimenta escocesa similar a uma saia) e sem camisa. Ele também carregava uma tatuagem no ombro direito com um símbolo e a palavra russa "biersierk", que seria uma referência aos guerreiros da mitologia nórdica.  

(Lusvarghi no dia de sua liberação da penitenciária de Tremembé, SP, em 7 de agosto, com tatuagem no ombro numa referência simbólica à mitologia nórdica.)

Lusvarghi também foi acusado de resistência, ação criminosa, incitação ao crime e desobediência. A Justiça de São Paulo liberou ele e o amigo 45 dias depois, em 7 de agosto, quando laudos do Instituto de Criminalística mostraram que o material que carregavam não era explosivo nem incendiário, e sim latas vazias de achocolatado e iogurte que, segundo a polícia, tinham "cheiro de combustível". O juiz, por sua vez, havia classificou os dois de "esquerda caviar", numa alusão ao fato de que seriam socialistas hipócritas. A prisão fez Lusvarghi perder os dois empregos e uma viagem à Ucrânia, para onde já tinha passagem comprada e deveria embarcar em 28 de junho. Liberto da penitenciária de Tremembé, onde estava preso, o futuro combatente buscou ajuda de "amigo politicamente engajados" (que, segundo ele, não seriam recrutadores) e reuniu documentação para viajar. Em 18 de setembro ele e Hedeki foram "sumariamente" absolvidos da acusação de porte de explosivos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. No dia seguinte, Lusvarghi já estava em Moscou, de onde postou um foto no Facebook em que aparece na Praça Vermelha. Ele chegou à Ucrânia dia 20 para atuar junto aos separatistas pró-Rússia.  

(Lusvarghi, à esquerda da bandeira do Brasil, com separatistas pró-Rússia no inverno 2014/15.)

Logo que chegou à Ucrânia, Lusvarghi entrou no Batalhão de Prisrak, em Donbass, onde a maioria dos integrantes eram voluntários. O conhecimento e experiência nas áreas militar, policial e em armamentos ajudaram-no a se firmar como combatente. Sua trajetória no primeiro ano de guerra foi intensa. O primeiro combate que participou foi em Vergulovka, em outubro de 2014. Em março de 2015 já comandava o próprio pelotão com cinco brasileiros denominado Unidade Internacionalista Ernesto "Che" Guevara, numa alusão ao guerrilheiro comunista argentino. O pelotão foi criado com autorização do batalhão ao qual fazia parte. Os integrantes vinham de diversas regiões do Brasil, possuíam perfis variados e tinham como função fazer reconhecimento do inimigo e praticar atos de sabotagem. Até este período Lusvarghi teria participado diretamente da morte de pelo menos quatro solados ucranianos, segundo sua própria declaração numa entrevista. Em 26 de abril ele ficou gravemente ferido nas pernas, tronco e braço ao ser atingido por tiros ou estilhaços de uma bomba na violenta batalha pelo Aeroporto Internacional de Donetsk. Recuperado no hospital da cidade, voltou à batalha mais de dois meses depois. Sua função militar durante quase todo este período foi de comandante de bateria de morteiros. 

Com a divulgação de suas fotos pelo Facebook onde aparece em combate, Lusvarghi tem atraído mais pessoas do Brasil para lutar do lado dos militantes pró-Rússia. Hoje há em torno de dez brasileiros no campo de batalha.

(Lusvarghi realizando manutenção da metralhadora DShK 12,7 mm, no Aeroporto de Donetsk, em abril de 2015, pouco antes de ficar gravemente ferido numa violenta batalha.)

A volta da Rússia, o contato com as FARC, a participação dos protestos de rua no Brasil (de cujas motivações declara arrependimento) e a ida definitiva à Ucrânia revelam uma insistente busca do brasileiro por atividades mais perigosas. Algumas de suas declarações ajudam a entender as motivações pessoais e políticas para tais atitudes.

Logo após ser liberado da prisão, em 7 de agosto de 2014, ele foi entrevistado pelo site G1 das Organizações Globo. Num dado momento o jornalista questionou sua ideologia, e teve a seguinte resposta:
"Esquerda. Eu diria anarquista, mas anarquista é uma utopia. Então eu ficaria no stalinismo. Eu diria anarquista se achasse que funciona, mas é utopia. Então eu me classifico como stalinista."

Na mesma entrevista o jornalista lembrou que Lusvarghi havia declarado anteriormente que era fã do ex-governador do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, por ser um nacionalista. Mas quando questionado se ele tinha simpatia pelo movimento integralista (movimento de direita fascista e nacionalista no Brasil dos anos 1930), ele mostrou rejeição ao espectro oposto da esquerda: "Eu não gosto de nada que tenha a ver com a direita", respondeu.

(Brasileiro com símbolos do comunismo: admiração às ideologias de esquerda e uma crescente adesão ao nacionalismo russo a partir de 2014.)

Nos últimos dias de setembro de 2014, pouco menos de dois meses depois da entrevista ao site G1, Lusvarghi, recém chegado à Ucrânia, trocou mensagens com o jornal O Estado de São Paulo onde mais uma vez respondeu às perguntas sobre suas posições políticas:


"Na parte política, eu me oponho ao avanço imperialista na Ucrânia, às garras do grande capital financeiro internacional, a uma base da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, liderado pelos EUA) apontando mísseis para a Rússia." 

 Na entrevista concedida à Istoé, uma das revistas de maior circulação do Brasil, em janeiro de 2015, o brasileiro já combatia em Donbass há quatro meses. Na ocasião ele revelou um pouco de sua motivação de ir participar da guerra na Ucrânia. Seu interesse pela Rússia é antigo, e acompanha tudo ligado ao país. "Além de também descender dos povos do Leste, meu interesse vem de infância, por tudo que é relacionado à Rússia, história, cultura, mentalidade do povo", diz, definindo-se como de esquerda e stalinista. Quando foi questionado por que ele acreditava que o leste da Ucrânia deveria se tornar independente, ele citou vários casos históricos de independência (inclusive o de Kosovo, criticado pela Rússia) e justificou o movimento separatista pelo "direito à autodeterminação dos povos". Noutra questão, lhe perguntaram a razão pela qual se alistou como voluntário num exército estrangeiro, e ele respondeu:

"...luto aqui exclusivamente pela Grande e Sagrada Mãe Rússia, a terra dos meus ancestrais, pois o sangue que corre na minha veia é o mesmo do povo daqui. Politicamente sou totalmente contra o liberalismo, a política atual da União Europeia e dos EUA. Mas minha luta é, acima de tudo, pela independência do povo russo e pela união desse povo sob égide de um só país e uma só liderança."

O irmão do combatente, Lucas Lusvarghi, conta que desde criança ele se interessa pelas questões militares, principalmente história da guerra, e estudava muito geografia, história e estratégia.

O brasileiro também deixa claro noutras declarações sua predileção pela luta armada e a preferência pela Rússia. Na entrevista concedida ao site HMO, em setembro do mesmo ano, perguntaram por que ele saiu do Brasil para se juntar aos separatistas. A resposta foi esta:

"1) Não vou negar. Gosto de guerra. Além do mais, não é mentira, só vive em paz quem aprende a lutar. 2) Sou pró-Rússia de carteirinha, foi só isso que me trouxe aqui, absolutamente nenhuma ideologia política." 

Ele também foi questionado por um leitor sobre como conseguia conciliar sua autodeclarada posição de "esquerda", divulgada na Revista Istoé, com a obediência a uma autoridade como Igor Strelkov, segundo o questionador um "monarquista de direita" e que "se declara abertamente czarista e nacionalista 'branco'" (numa referência às forças antibolcheviques na Guerra Civil Russa em 1917-1922). Eis o que o brasileiro respondeu:

"Quando eu disse stalinista, e me posicionei como de esquerda, a mais de um ano atrás, eu quis dizer que era um admirador, não um portador dessa bandeira. Várias vezes eu deixei claro ser uma pessoa prática, que não compra ideias em pacotes fechados, mas um pouco aqui, um pouco ali. Eu mesmo não carrego nenhuma bandeira... (...) Deve ser feito o melhor para a nação. Respondendo sua pergunta, não vejo problema em ser comandado por quem quer que seja... manda quem pode, obedece quem tem juízo." 

Outro leitor perguntou se, mesmo sendo "seguidor de ideologia de esquerda", ele acreditava na liberdade dos pró-Rússia depois do conflito:

"Não sou de esquerda, e nosso combate é justamente para que o governo de Kiev não proíba o idioma e cultura russa no leste do país." 

Numa de suas últimas entrevistas, concedida ao site Slavyngrad.org, Lusvarghi posicionou-se como um nacionalista de linha claramente eurasiana. O entrevistador lhe perguntou por que foi à guerra, já que, nas suas palavras, "amar a Rússia é uma coisa, mas morrer pelos russos é outra totalmente diferente". A resposta do brasileiro remete à linguagem típica do movimento eurasiano:

"Bem, em primeiro lugar, Brasil e Rússia estão muito proximamente alinhados pelos BRICS. Seja lá qual for o interesse da Rússia também favorece o Brasil de uma perspectiva geopolítica. Os BRICS podem se tornar um substituto da hegemonia dos EUA e da Europa no mundo - mas apenas de se as ações finalmente tomarem o lugar das palavras que ouvimos agora.
A influência dos EUA no Brasil é muito forte. Tudo o que os EUA tocam se apaga: valores familiares e religião, embora eu não seja muito religioso. Tudo se torna um tanto sem sentido."

Ainda em 2014 Lusvarghi havia se declarado abertamente de "esquerda", "stalinista" e mesmo "anarquista". Nas entrevistas concedidas ao final do mesmo ano quando já estava na Ucrânia, ele demonstra um relativo distanciamento de uma extrema-esquerda "pura" à qual simpatizava quando estava no Brasil. Ao compararmos as declarações sobre suas motivações políticas e sua ideologia, o brasileiro demonstra uma "evolução" de uma extrema-esquerda para o nacionalismo russo entre 2014 e 2015.

Lusvarghi vê a si mesmo com um militante e herdeiro legítimo da "causa" nacionalista da Rússia sob um viés de esquerda, antiamericano e antiocidental. Desde que chegou na Ucrânia sua posição política, a julgar pelas declarações à imprensa brasileira, se tornou mais pró-Rússia do que exclusivamente esquerdista. Diria que uma mescla de ambos, numa absorção da ideologia de esquerda no nacionalismo russo. Ele não declara abertamente se teve algum envolvimento pessoal com as ideias e o movimento político eurasiano, como o pensamento de Alexander Dugin ou a União de Juventude Eurasiana, que desde de pelo menos 2006 já preparava uma uma futura guerra na Ucrânia. Esta hipótese é levantada quando Lusvarghi recorre à mesma linguagem do movimento ao se declarar radicalmente contra o liberalismo ocidental, faz referências à geopolítica da Rússia e ao mesmo tempo demonstrar admiração a figuras aparentemente antagônicas no campo ideológico como Stálin e Strelkov. Outro indício, este mais evidente, é uma foto publicada em 18 de julho de 2015 na "Frente Brasileira de Solidariedade com a Ucrânia", grupo criado no Facebook em apoio aos separatistas pró-Rússia, onde Lusvarghi aparece segurando uma bandeira símbolo do Movimento Eurasiano. 

(Lusvarghi, à direita, com seu colega de combate Luizz Davi: Movimento Eurasiano na guerra na Ucrânia.)

O neoeurasianismo desenvolvido por Dugin tem como uma de suas principais características a combinação de elementos da extrema-esquerda e da extrema-direita num mesmo movimento político. Isto fica claro nas declarações do pensador russo durante o debate com o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, onde ele propõe uma aliança entre todos os elementos sociais capazes de fazer frente ao globalismo norte-americano. Carvalho, por sua vez, alerta exatamente a este aspecto do neoeurasianismo de Dugin, capaz de absorver os extremistas de ambos espectros e fazê-los trabalhar juntos em nome de uma ditadura global, como comenta no artigo Eurasianismo e Genocídio

A ligação de Lusvarghi ao movimento eurasiano fica mais clara na entrevista concedida à seção em português da Vice News e divulgada nove dias após chegar na Ucrânia. Ele afirma que "respondeu ao chamado da Frente Brasileira de Solidariedade com a Ucrânia" e da Brigada Continental, braço armado da Unidade Continental, nas suas palavras uma "síntese entre as FARC e o Hezbollah", para lutar no país. A Brigada, diz, é uma unidade dentro do batalhão Prisrak, do qual faz parte, e braço armado da Unidade, que teve origem em janeiro de 2014 em Belgrado, na Sérvia, e é composto principalmente por sérvios e franceses.

("Glória a Rafael Lusvarghi": capa estilizada de página no Facebook utilizada para trocar informações e recrutas combatentes brasileiros para a guerra exalta a figura de seu principal representante.)

Mas o mais importante aqui é a menção de Lusvarghi à "Frente Brasileira de Solidariedade com a Ucrânia". Ainda que não seja possível provar, este é possívelmente o grupo ao qual pertencem os "amigos politicamente engajados" que teriam ajudado Lusvarghi a ir para a Ucrânia depois de sair da cadeia. O grupo possui uma página no Facebook que é utilizada para recrutar futuros combatentes brasileiros para o separatistas pró-Rússia. Lá também são disponibilizadas informações sobre o conflito e notícias da imprensa russa ou pró-Rússia. Seus membros ativos fazem críticas aos países ocidentais e ao governo de Kiev, inclusive comemorando a morte de soldados mortos do lado ucraniano, e exibem símbolos e linguagem característicos da ideologia neoeurasiana. Muitos trocam mensagens pedindo informações de como chegar no campo de batalha. O grande símbolo da página, que até a presente data possui quase doze mil curtidas (muitos apenas como observadores), é o próprio Lusvarghi, pioneiro e referência para os brasileiros que querem lutar do lado russo da guerra. A capa da página apresenta uma imagem sua de forma estilizada com a saudação "Glória a Rafael Lusvarghi" em russo. 

Em 7 de outubro, um dia após a prisão, foi criado no Facebook uma página para pedir a libertação do brasileiro: "Free Rafael Lusvarghi". Até a presente data contava com mil curtidas.

(Imagem retirada da página do Facebook que pede a libertação de Lusvarghi: similaridade com a figura de Jesus Cristo - acrescentada a luz do alto que ilumina seu rosto - reforça uma imagem idealizada do brasileiro.)

No próximo texto veremos como é feito este recrutamento, a rede de contatos no Brasil e quem são os brasileiros que, além de Lusvarghi, estão lutando do lado dos separatistas pró-Rússia.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Putin calls officials families back home: revealing a misunderstanding

(Russian President pictured on November 11th 2015: if it was a year ago, the Putin´s call to the return of the government officials´ families wouldn´t have the same impact.)

The news that Vladimir Putin would have ordered that government high-ranking members take their families back to Russia caused an uproar in Western media. The order had been issued for members of the federal and regional authorities, lawmakers and public companies employees. The event was interpreted as an emergency action in preparation for a possible nuclear war with US and NATO.

Apparently, the main responsible for this interpretation were the British tabloids like the Daily Star and the Daily Mail. This latter cited as source the Russian site news Znak, based in Yekaterimburg, saying that Putin would have ordered that government´s high-officials come and take their families back to Russia "amid hightened tensions over the prospect of global war". The non-acompliance of the order would have as punishment the prejudice to the officiers´ careers. Although the Daily Mail says that the reason of the order wasn´t clear, the event was interpreted in the context of the sudden deterioration of relations between Russia and the West, especially in the diplomatic and military divergences about the Syrian Civil War and positioning of the missiles in Europe, that I mentioned in my last text in this blog. The report also cites a Russian political analyst that says Putin would be preparing the Russian elite for a "big war".

In my last text I suggested that the relation between the Putin´s order and a possible world war wasn´t correct. I also commented that could be a relation between this call and the political reform the president is leading in the country. But according to the informations there seems no relation between this fact and the mentioned political reform. The reason would be another.

(Russian students in an exchange program in Michigan, USA, in 2013: Kremlin wants to reduce the Western cultural influence.) 

The Snopes.com, that in it´s Twitter account appears as "the definitive Internet reference source for urban legends, folklore, myths, rumors, and misinformation", says the Daily Mail´s attitude would be instilling fear in the population to misinterpret the Znak´s news, written in Russian, and mixing internal issues with recent international tension. Explains the report:
 The Daily Mail cited the Russian-language news web site Znak, which posted a piece entitled "Home!" Translated from Russian, the piece said that Putin's administration had issued an informal request, not an order, that Russian officials and their family members who are living abroad return home. The piece discussed not a pending military conflict, but a public perception problem stemming from Russian elites' sending their children to be educated at expensive Western schools while their homeland is in the midst of challenging the West and jockeying with the U.S. for global power. It does not seem to be a red flag that World War III is imminent.
The report also cites a Russian political scientist, who said the education of the country´s elite children generates constant derision and complaints to the government. "You can not serve two gods, one must choose", he said, alluding that the families must choose, or Russia, or the West.
According to Russia Today the Znak´s report cites five government´s anonymous sources who said have received an unoficial recomendation of the Kremlin about their families abroad. The Russians in foreign universities should continue their studies in Russia, otherwise this could mean the end of their careers.

The Snope.com´s analysis was base for another report written by The New Zeland Herald´s staff wrriters, from New Zeland, one of the few Western countries´ newspaper to give this version of the facts. 

The Putin´s call would have relation, therefore, with an internal matter: the attempt to "purify" the country´s elite from the Western cultural influences. Since his second term (2004-2008), Russia has invested in a public diplomacy expanding the reach of it´s media, think thanks, cooperation agencies in the political and cultural area and, of course, the political alliance system with European extremists, separatist groups and an estrategical alliance with China and the BRICS. The goal is to create a challenging global order to the American one, and this includes the cultural dimension.
 
(In the Western media spread images that combinated a Putin´s aggressive figure with a nuclear explosion: conclusion on a global conflict are hasty and exagerated.)  
 
The "informal order" for returning of the officials´ families sounded worrisome due to the deep crisis between Russians and the West in recent days, what really gave the impression that was a preparation for a more serious conflict even without a clear signal of what was the order´s purpose. Beacuse of this the Western agencies that gave this interpretation immediately related the Putin´s call with the events of the last weeks. This doesn´t mean, however, that the Kremlin isn´t preparing for a wider war. The explosive rethoric like the Liberal Democratic Party of Russia leader and Putin ally, Vladimir Zhirinovsky, who "warned" (indeed threatened) the US about a possible nuclear war only reinforces this perception, and is one reason for the sensationalism in Western media. But Russian leaders also make their histrionic words a propaganda war. Any final conclusion that it´ll be a global conflict US-Russia enters the realm of speculation. We have to wait to see what will be the next steps on both sides.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Kaliningrad and the sudden deterioration of the Russia-West relations

(Russian military vehicle with Iskander-M missile on board: movel system could carry nuclear warhead, and adaptations extend it´s reach.)

On last day 7, Friday, the Iskandr-M missile system arrived on Kaliningrad Oblast, Russia´s territory sandwiched between Poland and Lethonia on the Baltic Sea cost. The first information came from Estonian government and was taken to the public on the same day by ERR news portal. Soon the information spread and caused reaction in Europe, mainly in Poland and the Baltic countries.

(Kaliningrad´s territory: Russia´s advanced post in Eastern Europe sorrounded by European Union and NATO members.)

(Iskander-M missile range: with adaptations, this system in Kaliningrad could reach Berlin and Copenhaguen, in addition to cover almost whole of Poland and southern Sweden.)


The missiles were on board a civilian vessel called Ambal that left the small town of Ust-Luga, near to Saint Petersburg, bound to Kaliningrad. According to an expert heard by The Guardian, the Iskander-M missiles, known as SS-26 by NATO, are highly sophisticated and there is no similar weapon in the world. They can reach the missiles defense system installed by the US in Poland, the three Baltic countries, change directon in the flight and can carry as much common explosives as nuclear warheads. Another expert heard by Observer, John Schindler, says the system is offensive an can have it´s range expanded to 700 km and reach Berlin. This range also covers parts of southern Sweden and the Dannish capital Copenhagen.

The transport of Iskander-Ms by a civil vessel and the installation in an region sorrounded by European Union and NATO member countries suggest, within the context of a rapid deterioration in relationship between Russia and the West since the war in Ukraine, that this military movement aims to destabilize the Eastern Europe security. So says the expert quoted in Observer:

 There’s a reason that the Kremlin promised to not ship this missile system to Kaliningrad back in 2009, in exchange for President Obama’s scuppering of missile defense in Poland and the Czech Republic. Activating an Iskander-M unit in Kaliningrad, west of the Baltic republics, is rightly seen as destabilizing by NATO’s whole eastern flank which, despite security promises by the White House, remains vulnerable to Russian attack. For Warsaw and several other NATO capitals, this move resembles a Baltic version of the Cuban Missile Crisis.

The reference to 2009 is concern the Obama administration´s decision, in September, to eliminate the European BMD (European Ballistic Missile Defense), created by the George W, Bush government and known as anti-missile shield, and replaces it with the PAA (Progressive Adaptative Aproach), a new system that would act responsively and, at least officialy, would be aimed against Iran engaged in developing nuclear weapons. Then Russian president Dmitri Medvedev called the move "a responsable move" and said he was willing to talk. So many Russian as American analysts considered the Obama´s attitude a victory of Russian diplomacy. His critics accused him of giving in to pressure without getting anything in return, while his supporters said Moscow didn´t want a fight immediately and it was up to Americans wait and watch what would be the new Russian attitudes.

Judging by Schindler´s criticism, Moscow took advantage of the Obama government´s mistake to allocate Iskander-M missiles in Kaliningrad. In the current situation, an American and/or NATO reaction, as a new anti-missile shield, for example, could be dangerous.

(Cartoon quips dismantle of the W. Bush´s anti-missile shield project to Europe by Obama. He appears smiling to the Russian president Medvedev as someone which prefers to please the enemy instead protect Europeans.)

Russia, in turn, downplayed the missiles issue. The country´s press (Sputnik, Russia Today and Russia Insider) highlighted the words of the Russian Ministry Defense spokesman, Igor Konashenkov, who declared that Iskander-Ms were deliberately exposed to the American satellites during transport, that their displacement to Kaliningrad was part of military drills and that American intelligence has already detected the movement. The latter information came from an anonymous source to Reuters: the displacement of Iskander-Ms to the province "could be innocuous", since in 2014 Russia placed a similar missile system in the region. The Russian government´s message was clear: Moscow didn´t have anything to hide and it´s military activities were routine.

Neighbouring countries to Kaliningrad reacted to the missiles deployment with concern and complaints: Poland considered the Russian atitude highly troubling, the Estonian government, through it´s Minister of Defence, said Russia plans to dominante the Baltic Sea, and Lithuania promised a protest to Moscow.

(Russian military aircraft Na-72 - one of the Antonov models - for transporting of heavy loads that invaded the Estonia´s airspace on October 6th.)

The neighbours´ reaction is justified. The invasions of the airspace of the Baltic countries by Russian planes are common. On day 6, one day before the news about the missiles, the Russian SU-27 aircraft broke into Finnish airspace over Gulf of Finland waters near the city of Parvoo. The invasion occured at 4:43 pm, local time, and lasted one minute. Another raid happened a little later, at 9:33 pm. In the day after, at 6:23 pm, four hours after the disclosure of the firts news about the missiles in Kaliningrad, the aircraft An-72 of the Russial Aerial Force broke into the Estonian airspace in the region of Vaindloo island for almost one minute and a half. On the Russian side the response to the facts was simple: Moscow denied the airspaces violations. Their aircrafts would be on the planned route and over international waters.

The transport of the missiles to Kaliningrad has relationship to two issues that are also interrelated.

The firts is the Eastern European security. In may this year was ready an anti-missile shield in Bulgaria, and in 2018 will be implemented the same shield in Poland. But both are sponsored by the US. In June a report of the British newspaper Express quoted Kremlin own sources that said Russia would install Iskander-Ms in Kaliningrad permanently. This plan was contemplated since at least 2008, but the expectation was that missiles were installed not before 2018 (another sources claim the plan was only for 2019). Experts said that the creation of the anti-missile shield in Romania would be what Moscow needed to justify it´s atitude, which would be realized before expected this October 7th. The sponsorship of these shields by the Americans was received by Russia as a provocation.

(View of Kaliningrad, the capital of the eponymous province: the region has German achtecture, Orthodox churches and more than 85% of the population is of the Russian ethnicity. Under Putin government the province became again the Russia´s military and cultural showcase in Europe.)

This event is another stage of the Putin government´s new policy for the region. Besides the large reduction of men in relation to Soviet times, when Kaliningrad had up to 200 thousand people of the armed forces and the entry of citizens was restricted, in 2010 there were only ten thousand men among 950 thousand inhabitans. The province, that was anexed by the USSR in 1945 and that was inhabitated exclusively by Soviet citizens after the withdrawl of the German population, became again in recent years an important and strategic Russia´s advanced post in Europe. Kalinigrand has experienced an improvement in it´s life standard with the creation of a special economic zone, and investiments were made in the modernization of the regional military structure in order to cope with NATO´s power. The government has also sponsored cultural events such as the Russian World People´s Council meeting held in April 2015 with Russian intellectuals and Orthodox Church members.

In the end of June 2016 a deep change took place in Kaliningrad´s military hierarchy by the Russian Minister of Defence, Sergey Shoygu. More than fifty high ranking men and Baltic Fleet members were dismissed, according to the ministry for breaking the rules stablished by the organization. The Minister justified the drastic action claiming the "unstable political and military situation" on the Western borders of Russia. It´s a clear reference to the deterioration of the relations between Moscow and the West since the beginning of the conflict in Ukraine.

(Russians and Americans differ on strategy to be adopted in the civil war in Syria, one of the reasons for the deep worsening of relations between two countries. In Picture, vicinity of the Aleppo´s main square, in Syria. Part of the city is razed.)

The second issue is broader and more serious: the significant deterioration in relations between Russia and the US in the last two weeks. In the list of events is the accusation by the Americans that Russia tried to interfere in the US elections hacking the Democratic National Committee in August, creating a crisis in the party, and now would be behind the continuous release of the personal e-mails of John Podesta, Chairman of the Hillary Clinton campaing, by the Wikieaks on October 7th; the preparation by the CIA to counter the Kremlin in the virtual war (news that seems exagerated, as well noted analyst Anton Shekovtsov in his profile on Facebook, because the publicity given to the information); the disruption of two cooperations agreements in nuclear issue between Washington and Moscow by the Russians; the cancellation of the Putin´s visit to France scheduled for October 19th beacuse of the accusation by Paris that Moscow would be commiting war crimes in Syria and divergences between the Russian and American strategies in the conflict; the orientation and mass training by the Russian population for a possible nuclear war; and the Putin´s call to senior officials and their families to return to the country. This last point in particular generated a series of analysis and rumors on the Western side that Russia would be preparing for a big war, including a "nuclear war" or a "World War III", terms that appeared in various medias after many years. The Putin´s call would be informal, and there´s no information that the same call would be for Russians abroad. Morenover, the Russian president is making a major internal political reform reallocating government officials, secret service, high-ranking secretaries and provinces governors. The call may be related to this reform.

Kaliningrad is part of a sudden deterioration of the Russia-EUA/Europe relations, and this situation suggests that the placement of the Iskander-M missiles in the province doesn´t be only for military drills, but also for permanent installation. Despite the deeply worrying signs (could still add the sorrounding of Ukraine in August), the situation doesn´t necessarily indicates a global war in short term. With the approach of the US elections, the Kremlin stepped on the gas to make pressure in results and it´s playing all the cards to react to what it´s Foreign Minister, Sergei Lavrov, called "russophobic hysteria" of the West.

I´ll be back to the general framework described in the end of this text at an opportune time. The situation in worrying, and Kaliningrad is only a chapter of a much broader and deeper crisis.

* Published in Portuguese on October 16th 2016.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Putin chama familiares de oficiais para casa: desvendando um mal-entendido

(Presidente da Rússia em foto de 11 de novembro de 2015: se fosse há um anos atrás, a chamada de Putin para o retorno das famílias de membros do governo não teria a mesma repercussão.)

A notícia de que Vladimir Putin teria ordenado a membros do alto-escalão do governo que levassem seus familiares de volta à Rússia causou furor em veículos de comunicação do Ocidente. A ordem teria sido expedida para membros da administração federal e regional, deputados e empregados de empresas públicas. O episódio foi interpretado como uma ação de emergência na preparação para uma possível guerra nuclear com os EUA e a OTAN.

Ao que tudo indica, os principais responsáveis por esta interpretação foram os tabloides ingleses como o Daily Star e o Daily Mail. Este último citou como fonte o site de notícias russo Znak, com sede na cidade de Iekateriburgo, dizendo que Putin teria ordenado que os alto-oficiais do governo mandassem de volta à Rússia seus familiares "em meio ao aumento das tensões na perspectiva de uma guerra global". O não cumprimento da ordem teria como punição o prejuízo às carreiras do oficiais. Apesar do Daily Mail afirmar que o motivo da ordem não era clara, o episódio foi interpretado no contexto da súbita deterioração das relações entre a Rússia e o Ocidente, principalmente nas divergências diplomáticas e militares sobre a Guerra Civil Síria e no posicionamento de mísseis na Europa, que mencionei no final de meu último texto neste blog. A reportagem também cita um analista político russo que afirma que Putin estaria preparando a elite russa para uma "grande guerra".

No meu último texto sugeri que a relação entre a ordem de Putin e uma possível guerra mundial não era correta. Comentei também que poderia haver uma relação entre essa chamada e a reforma política que o presidente está conduzindo no país. Mas segundo as informações não parece haver relação entre este fato e a mencionada reforma política. A razão seria outra.

(Estudantes russos num programa de intercâmbio em Michigan, EUA, em 2013: Kremlin quer diminuir a influência cultural do Ocidente.)

O site Snopes.com, que em sua conta no Twitter se apresenta como "fonte de referência definitiva na internet para lendas urbanas, folclores, mitos, boatos e desinformação", diz que a atitude do Daily Mail estaria instigando o medo na população ao interpretar de forma errada a notícia do Znak, escrita em russo, e ao misturar questões de ordem interna com a recente tensão internacional. Como explica a reportagem:

O Daily Mail citou o website de língua russa Znak, que postou um texto intitulado "Lar!". Traduzido do russo, o texto diz que a administração Putin emitiu um pedido informal, não uma ordem, para que oficiais russos e os membros de suas famílias que estão vivendo no exterior voltassem para casa. O texto discute não um possível conflito militar, mas um problema de percepção pública decorrente da elite russa mandar seus filhos para serem educados em escolas ocidentais caras enquanto sua terra natal em meio a um desafio com o Ocidente e em disputa com os EUA pelo poder global. Isto não parece ser um alerta vermelho de que a Terceira Guerra Mundial é iminente.

A reportagem cita ainda um cientista político russo, que afirmou que a educação dos filhos da elite do país gera constante deboches e reclamação ao governo. "Você não pode servir a dois senhores, deve escolher", disse, numa alusão de que as famílias devem escolher, ou a Rússia, ou Ocidente.  
 
Segundo a Russia Today a  reportagem do Znak cita cinco fontes anônimas do governo que disseram ter recebido uma "recomendação não oficial" do Kremlin a respeito de seus familiares no exterior. Os russos em universidades estrangeiras deveriam continuar seus estudos na Rússia, caso contrário isto poderia significar o fim de suas carreiras.
 
A análise do Snopes.com foi base de outra reportagem escrita pelo corpo de escritores do jornal The New Zeland Herald, da Nova Zelândia, um dos poucos jornais dos países ocidentais a dar esta versão dos fatos.
 
A chamada de Putin teria relação, portanto, com uma questão interna: a tentativa de "purificar" a elite do país das influências culturais do Ocidente. Desde seu segundo mandato (2004-2008), a Rússia tem investido numa diplomacia pública expandindo o alcance seus meios de comunicação, think thanks, organismos de cooperação na área política e cultural além, é claro, do sistema de alianças políticas como os extremistas europeus, grupos separatistas, uma aliança estratégica com a China e os BRICS. O objetivo é criar uma ordem global concorrente à norte-americana, e isto inclui a dimensão cultural.
(Na mídia ocidental proliferaram imagens que combinavam uma figura agressiva de Putin com uma explosão nuclear: conclusões sobre um conflito global são precipitadas e exageradas.)

O "ordem informal" de retorno das famílias dos oficiais soou preocupante devido à profunda crise entre russos e ocidentais nos últimos dias, o que deu realmente a entender que se tratava de uma preparação para um conflito mais sério mesmo sem um indicativo claro de que este era o objetivo da ordem. Por isso as agências ocidentais que deram esta interpretação imediatamente relacionaram a chamada de Putin com os acontecimentos das duas últimas semanas. Isto não significa, porém, que o Kremlin não esteja se preparando para uma guerra mais ampla. A retórica explosiva como a do líder do Partido Liberal Democrático da Rússia e aliado de Putin, Vladimir Zhirinovsky, que "alertou" (na verdade ameaçou) os EUA sobre uma possível guerra nuclear apenas reforça esta percepção, e é uma das razões para o sensacionalismo na imprensa ocidental. Mas os líderes russos também fazem de suas palavras histriônicas uma guerra de propaganda. Qualquer conclusão definitiva de que haverá um conflito global EUA-Rússia entra no terreno da especulação. Temos de esperar para ver quais serão os próximos passos de ambos os lados.

domingo, 16 de outubro de 2016

Kaliningrado e a súbita deterioração das relações Rússia-Ocidente

(Veículo militar russo com míssil Iskander-M à bordo: sistema móvel poderia carregar ogivas nucleares, e com adaptações ampliar seu alcance.)

No último dia 7, sexta-feira, o sistema de mísseis Iskander-M chegou à província de Kaliningrado, território da Rússia espremido entre a Polônia e a Lituânia na costa do Mar Báltico. A primeira informação veio do governo da Estônia e foi levada ao público no mesmo dia pelo portal de notícias ERR. Logo a informação se espalhou e causou reação na Europa, principalmente na Polônia e nos Países Bálticos.

(Território de Kaliningrado: posto avançado da Rússia na Europa Oriental cercado por membros da União Europeia e da OTAN.)

(Alcance do míssil Iskander-M: com adaptações, este sistema em Kaliningrado poderia atingir Berlim e Copenhague, além de cobrir quase a totalidade da Polônia.) 

Os mísseis estavam à bordo de uma embarcação civil chamada Ambal que saiu da pequena cidade de Ust-Luga, próxima à São Petersburgo, com destino à Kaliningrado. Segundo um especialista ouvido pelo The Guardian, os mísseis Iskander-M, conhecidos como SS-26 pela OTAN, são altamente sofisticados e não há armamento similar no mundo. Eles podem atingir o sistema de mísseis de defesa instalados pelos EUA na Polônia, os três países Bálticos, mudar de direção durante o voo e são capazes de carregar tanto explosivos comuns quanto ogivas nucleares. Outro especialista ouvido pelo Observer, John Schindler, diz que o sistema é ofensivo e pode ter alcance ampliado para 700 km e atingir Berlim. Este raio também abrange parte do sul da Suécia e a capital dinamarquesa Copenhague.

O transporte dos Iskander-Ms por uma embarcação civil e a instalação numa região cercada por países membros da OTAN e da União Europeia sugerem, dentro do contexto de rápida piora nas relações entre a Rússia e o Ocidente desde a guerra na Ucrânia, que esta movimentação militar tem como objetivo desestabilizar a segurança da Europa Oriental. É o que diz o especialista citado no Observer:

Há uma razão para o Kremlin não enviar este sistema de mísseis para Kalinigrado desde 2009, em troca do abandono pelo presidente Obama do sistema de mísseis de defesa na Polônia e na República Checa. O ativamento de uma unidade Iskander-M em Kaliningrado, ao oeste das repúblicas bálticas, é certamente visto como uma desestabilização de toda o flanco oriental da OTAN que, apesar das promessas de segurança pela Casa Branca, se mantém vulnerável a um ataque russo. Para Varsóvia e outras capitais da OTAN, este movimento se assemelha à versão báltica da Crise dos Mísseis de Cuba.

A referência ao ano de 2009 diz respeito à decisão da administração Obama, no mês de setembro, de eliminar o European BMD (em inglês, Defesa de Mísseis Balísticos Europeu), criado pelo governo George W. Bush e conhecido como escudo anti-míssil, e substitui-lo pelo PAA (em inglês, Abordagem Adaptativa Gradual), um novo sistema que atuaria de forma responsiva e, ao menos oficialmente, seria voltado contra um Irã empenhado no desenvolvimento de armas nucleares. O então presidente russo Dmitri Medvedev chamou a mudança de "um movimento responsável" e se colocou à disposição para dialogar. Tantos analistas russos quanto americanos consideraram a atitude de Obama uma vitória da diplomacia russa. Seus críticos o acusaram de ceder à pressão sem conseguir nada em troca, enquanto que seus apoiadores disseram que Moscou não queria um confronto imediatamente cabendo aos americanos esperar e observar quais seriam as novas atitudes russas. A julgar pela crítica de Schindler, Moscou aproveitou o erro do governo Obama para alocar os mísseis Iskander-M em Kaliningrado. Na atual situação, uma reação americana e/ou da OTAN, como um novo escudo anti-míssil, por exemplo, poderia ser perigoso.

(Charge ironiza o desmonte por Obama do projeto do escudo antimíssil de W. Bush para a Europa. Obama aparece sorrindo para o presidente russo Medvedev como alguém que prefere agradar ao inimigo do que proteger os europeus.)

A Rússia, por sua vez, minimizou a questão dos mísseis. A imprensa do país (SputnikRussia Today e Russian Insider) destacou as palavras do porta-voz do Ministério da Defesa russo, Igor Konashenkov, que declarou que os Iskander-Ms foram deliberadamente expostos aos satélites norte-americanos durante seu transporte, que o deslocamento deles para Kaliningrado era parte de exercícios militares e que a inteligência americana já detectara a movimentação. Esta última informação veio por uma fonte anônima à agência Reuters: o deslocamento dos Iskander-Ms para a província "poderia ser inócuo", já que em 2014 a Rússia colocou um sistema de mísseis similar na região. A mensagem do governo russo era clara: Moscou não tinha nada a esconder e suas atividades militares eram rotineiras.

Os países vizinhos à Kaliningrado reagiram à implantação dos mísseis com preocupação e reclamações: a Polônia considerou a atitude russa altamente preocupante, o governo da Estônia, através de seu ministro da defesa, disse que a Rússia pretende dominar o Mar Báltico, já a Lituânia prometeu fazer um protesto à Moscou.

(Avião militar russo An-72 - um dos modelos Antonov - para transporte de cargas pesadas que invadiu o espaço aéreo da Estônia em 6 de outubro.)

A reação dos vizinhos é justificável. São recorrentes as invasões do espaço aéreo dos países do Báltico por aviões russos. No dia 6, um antes da notícia sobre os mísseis, o avião russo SU-27
invadiu espaço aéreo finlandês sobre as águas do Golfo da Finlândia próximo à cidade de Parvoo. A invasão ocorreu às 16:43, hora local, e durou um minuto. Outra invasão aconteceu pouco depois, às 21:33. No dia seguinte, às 18:23, quatro horas após a divulgação da primeira notícia sobre os mísseis em Kaliningrado, a aeronave An-72 da Força Aérea Russa invadiu o espaço aéreo da Estônia na região da ilha de Vandloo por quase um minuto e meio. Apesar do transponder estar ligado, a aeronave não informou sua rota nem fez contato por rádio. Do lado russo a resposta aos fatos foi simples: Moscou negou a violação dos espaços aéreos. Seus aviões estariam na rota planejada e em águas internacionais.

O transporte dos mísseis para Kaliningrado tem relação com duas questões que também estão inter-relacionados.

A primeira é a segurança da Europa Oriental. Em maio deste ano ficou pronto um escudo antimíssil na Bulgária, e em 2018 será implantado o mesmo escudo na Polônia. Ocorre que ambos são patrocinados pelos EUA. Em junho uma reportagem do jornal britânico Express citou fontes do próprio Kremlin que afirmavam que a Rússia iria instalar os Iskander-Ms em Kaliningrado de forma permanente. Este plano era cogitado desde pelo menos 2008, mas a expectativa era que os mísseis fossem instalados não antes de 2018 (outras fontes afirmam que o plano era apenas para 2019). Especialistas disseram que a criação o escudo antimíssil na Romênia seria o que Moscou precisava para justificar sua atitude, que viria a se concretizar antes do esperado neste 7 de outubro. O patrocínio destes escudos pelos americanos foi recebido pela Rússia como uma provocação.

(Vista da Kaliningrado, capital da província de mesmo nome: a região possui arquitetura alemã, igrejas ortodoxas e mais de 85% da população é da etnia russa. Sob governo Putin a província voltou a ser a vitrine militar e cultural da Rússia na Europa.) 

Este acontecimento é mais uma etapa da nova política do governo Putin para a região. Apesar da grande redução de homens em relação aos tempos soviéticos, quando Kaliningrado chegou a ter 200 mil homens das forças armadas e a entrada de cidadãos era restrita, em 2010 havia apenas dez mil homens num universo de 950 mil habitantes. A província, que foi anexada pela URSS em abril de 1945 e que foi habitada exclusivamente por cidadãos soviéticos após a retirada da população alemã, voltou a ser nos últimos anos um importante e estratégico posto avançado da Rússia na Europa. Kaliningrado tem experimentado uma melhora no seu padrão de vida com a criação de uma zona econômica especial, e investimentos foram realizados na modernização da estrutura militar regional com o objetivo de fazer frente ao poder da OTAN. O governo também tem patrocinado eventos de ordem cultural, como o encontro do Conselho dos Povos do Mundo Russo realizado em abril de 2015 com intelectuais russos e membros da Igreja Ortodoxa.

No final de junho de 2016 foi realizada uma profunda mudança na hierarquia militar de Kaliningrado pelo ministro da defesa russo, Sergey Shoigu. Mais de cinquenta homens de alta patente e membros da Frota Báltica foram demitidos, segundo o ministério por infringirem as regras estabelecidas pela organização. O ministro justificou a drástica atitude alegando a "instável situação política e militar" nas fronteiras ocidentais da Rússia. É uma clara alusão à deterioração das relações entre Moscou e o Ocidente desde o início do conflito na Ucrânia.

(Russos e americanos divergem sobre a estratégia a ser adotada na guerra civil na Síria, um dos motivos da profunda piora nas relações entre os dois países. Na foto, imediações da principal praça de Aleppo, na Síria. Parte da cidade está arrasada.)

A segunda questão é mais ampla e mais grave: a significativa piora nas relações entre Rússia e EUA nas últimas duas semanas. Na lista de acontecimentos está a acusação por parte dos americanos de que a Rússia tentou interferir nas eleições americanas ao hackear o Comitê Nacional do Partido Democrata em agosto, gerando uma crise no partido, e que agora estaria por trás da contínua liberação de e-mails pessoais de John Podesta, chefe de campanha de Hillary Clinton, pelo Wikileaks em 7 de outubro; a preparação por parte da CIA de contra-atacar o Kremlin na guerra virtual (notícia que parece exagerada, como bem observou o analista Anton Shekovtsov em seu perfil no Facebook, devido a publicidade dada à informação); o rompimento de dois acordos de colaboração na área nuclear entre Washington e Moscou por parte dos russos; o cancelamento da visita de Putin à França agendada para o dia 19 de outubro em razão da acusação por Paris de que Moscou estaria cometendo crimes de guerra na Síria e por divergências entre as estratégias russa e americana no conflito; as orientações e o treinamento em massa da população russa para uma eventual guerra nuclear; e a chamada de Putin para que altos funcionários do governo e suas famílias voltassem para o país. Este último ponto em particular gerou uma série de análises e rumores do lado ocidental de que a Rússia estaria se preparando para uma grande guerra, inclusive uma "guerra nuclear" ou uma "Terceira Guerra Mundial", termos que apareceram em diversos veículos de comunicação depois de muitos anos. O pedido de Putin teria sido informal, e não há informações de que o mesmo pedido valeria para cidadãos russos no exterior. Ademais, o presidente russo está fazendo uma grande reforma política interna remanejando membros do governo, do serviço secreto, secretários do alto-escalão e governadores das províncias. A chamada pode ter relação com esta reforma.

Kaliningrado insere-se na súbita deterioração das relações Rússia-EUA/Europa, e esta situação sugere que o posicionamento dos mísseis Iskander-M na província não seja apenas para exercícios militares, mas também para instalação definitiva. Apesar dos sinais profundamente preocupantes (poderia ainda acrescentar o cercamento da Ucrânia em agosto), esta conjuntura não indica necessariamente uma guerra global em curto prazo. Com a aproximação das eleições nos EUA, o Kremlin pisou no acelerador para exercer pressão sobre seu resultado e está jogando toda as cartas possíveis para reagir ao que seu ministro do exterior, Sergei Lavrov, chamou de "histeria russofóbica" do Ocidente.

Voltarei ao quadro geral descrito no final deste texto num momento oportuno. A situação é preocupante, e Kaliningrado é apenas um capítulo de uma crise muito mais ampla e profunda.