(Veículo militar russo com míssil Iskander-M à bordo: sistema móvel poderia carregar ogivas nucleares, e com adaptações ampliar seu alcance.)
No último dia 7, sexta-feira, o sistema de mísseis Iskander-M chegou à província de Kaliningrado, território da Rússia espremido entre a Polônia e a Lituânia na costa do Mar Báltico. A primeira informação veio do governo da Estônia e foi levada ao público no mesmo dia pelo portal de notícias ERR. Logo a informação se espalhou e causou reação na Europa, principalmente na Polônia e nos Países Bálticos.
(Território de Kaliningrado: posto avançado da Rússia na Europa Oriental cercado por membros da União Europeia e da OTAN.)
(Alcance do míssil Iskander-M: com adaptações, este sistema em Kaliningrado poderia atingir Berlim e Copenhague, além de cobrir quase a totalidade da Polônia.)
Os mísseis estavam à bordo de uma embarcação civil chamada Ambal que saiu da pequena cidade de Ust-Luga, próxima à São Petersburgo, com destino à Kaliningrado. Segundo um especialista ouvido pelo The Guardian, os mísseis Iskander-M, conhecidos como SS-26 pela OTAN, são altamente sofisticados e não há armamento similar no mundo. Eles podem atingir o sistema de mísseis de defesa instalados pelos EUA na Polônia, os três países Bálticos, mudar de direção durante o voo e são capazes de carregar tanto explosivos comuns quanto ogivas nucleares. Outro especialista ouvido pelo Observer, John Schindler, diz que o sistema é ofensivo e pode ter alcance ampliado para 700 km e atingir Berlim. Este raio também abrange parte do sul da Suécia e a capital dinamarquesa Copenhague. O transporte dos Iskander-Ms por uma embarcação civil e a instalação numa região cercada por países membros da OTAN e da União Europeia sugerem, dentro do contexto de rápida piora nas relações entre a Rússia e o Ocidente desde a guerra na Ucrânia, que esta movimentação militar tem como objetivo desestabilizar a segurança da Europa Oriental. É o que diz o especialista citado no Observer:
Há uma razão para o Kremlin não enviar este sistema de mísseis para Kalinigrado desde 2009, em troca do abandono pelo presidente Obama do sistema de mísseis de defesa na Polônia e na República Checa. O ativamento de uma unidade Iskander-M em Kaliningrado, ao oeste das repúblicas bálticas, é certamente visto como uma desestabilização de toda o flanco oriental da OTAN que, apesar das promessas de segurança pela Casa Branca, se mantém vulnerável a um ataque russo. Para Varsóvia e outras capitais da OTAN, este movimento se assemelha à versão báltica da Crise dos Mísseis de Cuba.
A referência ao ano de 2009 diz respeito à decisão da administração Obama, no mês de setembro, de eliminar o European BMD (em inglês, Defesa de Mísseis Balísticos Europeu), criado pelo governo George W. Bush e conhecido como escudo anti-míssil, e substitui-lo pelo PAA (em inglês, Abordagem Adaptativa Gradual), um novo sistema que atuaria de forma responsiva e, ao menos oficialmente, seria voltado contra um Irã empenhado no desenvolvimento de armas nucleares. O então presidente russo Dmitri Medvedev chamou a mudança de "um movimento responsável" e se colocou à disposição para dialogar. Tantos analistas russos quanto americanos consideraram a atitude de Obama uma vitória da diplomacia russa. Seus críticos o acusaram de ceder à pressão sem conseguir nada em troca, enquanto que seus apoiadores disseram que Moscou não queria um confronto imediatamente cabendo aos americanos esperar e observar quais seriam as novas atitudes russas. A julgar pela crítica de Schindler, Moscou aproveitou o erro do governo Obama para alocar os mísseis Iskander-M em Kaliningrado. Na atual situação, uma reação americana e/ou da OTAN, como um novo escudo anti-míssil, por exemplo, poderia ser perigoso.
(Charge ironiza o desmonte por Obama do projeto do escudo antimíssil de W. Bush para a Europa. Obama aparece sorrindo para o presidente russo Medvedev como alguém que prefere agradar ao inimigo do que proteger os europeus.)
Os países vizinhos à Kaliningrado reagiram à implantação dos mísseis com preocupação e reclamações: a Polônia considerou a atitude russa altamente preocupante, o governo da Estônia, através de seu ministro da defesa, disse que a Rússia pretende dominar o Mar Báltico, já a Lituânia prometeu fazer um protesto à Moscou.
(Avião militar russo An-72 - um dos modelos Antonov - para transporte de cargas pesadas que invadiu o espaço aéreo da Estônia em 6 de outubro.)
A reação dos vizinhos é justificável. São recorrentes as invasões do espaço aéreo dos países do Báltico por aviões russos. No dia 6, um antes da notícia sobre os mísseis, o avião russo SU-27
invadiu espaço aéreo finlandês sobre as águas do Golfo da Finlândia próximo à cidade de Parvoo. A invasão ocorreu às 16:43, hora local, e durou um minuto. Outra invasão aconteceu pouco depois, às 21:33. No dia seguinte, às 18:23, quatro horas após a divulgação da primeira notícia sobre os mísseis em Kaliningrado, a aeronave An-72 da Força Aérea Russa invadiu o espaço aéreo da Estônia na região da ilha de Vandloo por quase um minuto e meio. Apesar do transponder estar ligado, a aeronave não informou sua rota nem fez contato por rádio. Do lado russo a resposta aos fatos foi simples: Moscou negou a violação dos espaços aéreos. Seus aviões estariam na rota planejada e em águas internacionais.
O transporte dos mísseis para Kaliningrado tem relação com duas questões que também estão inter-relacionados.
A primeira é a segurança da Europa Oriental. Em maio deste ano ficou pronto um escudo antimíssil na Bulgária, e em 2018 será implantado o mesmo escudo na Polônia. Ocorre que ambos são patrocinados pelos EUA. Em junho uma reportagem do jornal britânico Express citou fontes do próprio Kremlin que afirmavam que a Rússia iria instalar os Iskander-Ms em Kaliningrado de forma permanente. Este plano era cogitado desde pelo menos 2008, mas a expectativa era que os mísseis fossem instalados não antes de 2018 (outras fontes afirmam que o plano era apenas para 2019). Especialistas disseram que a criação o escudo antimíssil na Romênia seria o que Moscou precisava para justificar sua atitude, que viria a se concretizar antes do esperado neste 7 de outubro. O patrocínio destes escudos pelos americanos foi recebido pela Rússia como uma provocação.
(Vista da Kaliningrado, capital da província de mesmo nome: a região possui arquitetura alemã, igrejas ortodoxas e mais de 85% da população é da etnia russa. Sob governo Putin a província voltou a ser a vitrine militar e cultural da Rússia na Europa.)
No final de junho de 2016 foi realizada uma profunda mudança na hierarquia militar de Kaliningrado pelo ministro da defesa russo, Sergey Shoigu. Mais de cinquenta homens de alta patente e membros da Frota Báltica foram demitidos, segundo o ministério por infringirem as regras estabelecidas pela organização. O ministro justificou a drástica atitude alegando a "instável situação política e militar" nas fronteiras ocidentais da Rússia. É uma clara alusão à deterioração das relações entre Moscou e o Ocidente desde o início do conflito na Ucrânia.
(Russos e americanos divergem sobre a estratégia a ser adotada na guerra civil na Síria, um dos motivos da profunda piora nas relações entre os dois países. Na foto, imediações da principal praça de Aleppo, na Síria. Parte da cidade está arrasada.)
A segunda questão é mais ampla e mais grave: a significativa piora nas relações entre Rússia e EUA nas últimas duas semanas. Na lista de acontecimentos está a acusação por parte dos americanos de que a Rússia tentou interferir nas eleições americanas ao hackear o Comitê Nacional do Partido Democrata em agosto, gerando uma crise no partido, e que agora estaria por trás da contínua liberação de e-mails pessoais de John Podesta, chefe de campanha de Hillary Clinton, pelo Wikileaks em 7 de outubro; a preparação por parte da CIA de contra-atacar o Kremlin na guerra virtual (notícia que parece exagerada, como bem observou o analista Anton Shekovtsov em seu perfil no Facebook, devido a publicidade dada à informação); o rompimento de dois acordos de colaboração na área nuclear entre Washington e Moscou por parte dos russos; o cancelamento da visita de Putin à França agendada para o dia 19 de outubro em razão da acusação por Paris de que Moscou estaria cometendo crimes de guerra na Síria e por divergências entre as estratégias russa e americana no conflito; as orientações e o treinamento em massa da população russa para uma eventual guerra nuclear; e a chamada de Putin para que altos funcionários do governo e suas famílias voltassem para o país. Este último ponto em particular gerou uma série de análises e rumores do lado ocidental de que a Rússia estaria se preparando para uma grande guerra, inclusive uma "guerra nuclear" ou uma "Terceira Guerra Mundial", termos que apareceram em diversos veículos de comunicação depois de muitos anos. O pedido de Putin teria sido informal, e não há informações de que o mesmo pedido valeria para cidadãos russos no exterior. Ademais, o presidente russo está fazendo uma grande reforma política interna remanejando membros do governo, do serviço secreto, secretários do alto-escalão e governadores das províncias. A chamada pode ter relação com esta reforma.
Kaliningrado insere-se na súbita deterioração das relações Rússia-EUA/Europa, e esta situação sugere que o posicionamento dos mísseis Iskander-M na província não seja apenas para exercícios militares, mas também para instalação definitiva. Apesar dos sinais profundamente preocupantes (poderia ainda acrescentar o cercamento da Ucrânia em agosto), esta conjuntura não indica necessariamente uma guerra global em curto prazo. Com a aproximação das eleições nos EUA, o Kremlin pisou no acelerador para exercer pressão sobre seu resultado e está jogando toda as cartas possíveis para reagir ao que seu ministro do exterior, Sergei Lavrov, chamou de "histeria russofóbica" do Ocidente.
Voltarei ao quadro geral descrito no final deste texto num momento oportuno. A situação é preocupante, e Kaliningrado é apenas um capítulo de uma crise muito mais ampla e profunda.
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