(Vladimir Putin e Alexander Shprygin (atrás) na homenagem em 21 de dezembro de 2010 ao torcedor do Spartak de Moscou assassinado por uma gangue do Cáucaso.)
O jogo Rússia X Inglaterra na Eurocopa 2016 foi acompanhado por pancadaria entre hooligans russos e ingleses antes, durante e depois da partida ocorrida em Marselha, França, no dia 11 de junho.
Não está claro quem começou a confusão. As imprensas britânica e russa deram versões opostas aos acontecimentos, afirmando (ou sugerindo) que a violência teria começado do lado adversário. Segundo uma reportagem do inglês Daily Mail, cujo site apresenta muitas imagens fortes de violência, a pancadaria dentro do Stade Velódrome começou após o final da partida quando hooligans russos vestidos com balaclavas invadiram a área dos ingleses e rasgaram suas bandeiras, provocando pancadaria e grande correria. Mas já havia ocorrido violentos confrontos nas ruas de Marselha no dia anterior (10), com diversas testemunhas afirmando que os russos se juntavam em grupos organizados para criar tumulto e jogavam todo o tipo de objeto presente na ruas e com alguns até mesmo usando facas.
(Hooligans ingleses na pancadaria em Marselha.)
Uma reportagem do jornal russo Pravda disse que a confusão no estádio começou com provocações políticas e ofensas por parte dos ingleses e que uma bandeira russa foi rasgada, o que teria resultado na reação destes. O fato teria sido testemunhado por dois jornalistas esportivos britânicos. Outra fonte russa, Russia Today, citando relatos da internet, afirmou que hooligans russos e britânicos teriam se unido para confrontar torcedores locais, sendo a maioria deles "negros e árabes", e que quando houve briga entre russos e britânicos foi por iniciativa dos segundos.
Na noite após a partida quarenta policiais franceses invadiram o hotel onde estavam hospedados os torcedores russos. Os policiais estariam armados, entraram nos quartos e registraram os torcedores com fotografias e cópias das identidades.
A violência resultou em multa de 150 mil euros para a Rússia. A UEFA ameaçou com a desclassificação das seleções russa e inglesa da Eurocopa caso suas torcidas se envolvessem em novos confrontos. A Inglaterra não foi multada.
(Briga no Stade Velódreme, no jogo entre Rússia e Inglaterra, em 11 de junho. Aparentemente os russos estão à esquerda da imagem indo de encontro aos ingleses do lado direito.)
Os britânicos destacaram a cobertura da imprensa russa. Segundo o jornal The Guardian afirmou que os torcedores russos foram retratados por sua imprensa como "heróis" frente à violência dos britânicos. Os russos teriam sido atacados e lutaram de forma heroica contra "hordas" de hooligans, e que num dado momento 250 de seus torcedores repeliram o ataque de milhares de ingleses. Já um artigo no Pravda criticou a mídia ocidental de apenas repetir as informações da polícia francesa e da UEFA (numa alusão à sua posição anti-Rússia), e fez duras críticas às duas organizações. Disse que a polícia seria despreparada para lidar com potenciais problemas num grande evento esportivo que reúne torcedores violentos. Sugeriu também que ela teria agido de forma totalmente parcial, questionando por que não punira os hooligans ingleses que há dias causavam tumulto, por que não era capaz de lidar, por exemplo, com os imigrantes ilegais, e por que com tudo isso só os torcedores russos foram presos e deportados de forma indiscriminada após a violência em Marselha. Sobre a UEFA, o artigo questionou se a organização não teria recebido propina para organizar a Eurocopa na França, com estádios e administração incapazes de garantir a segurança no evento. Sugeriu ainda que a União Russa de Futebol e outros prejudicados deveriam recorrer à corte da União Europeia, segundo o autor um organismo anti-russo. Seria uma oportunidade de mostrar ao mundo a hipocrisia da organização.A deportação de russos da França comentado no Pravda não é tão "parcial" quanto parece. O episódio começou em 14 de junho, quando um ônibus com torcedores russos que se dirigia de Marselha para Lille foi parado pela polícia. O veículo ficou retido por um dia. Das 43 pessoas detidas, 20 foram liberadas, 20 foram levadas para a deportação e outras três ficaram à espera da justiça. Neste ônibus estava a delegação da União dos Apoiadores Russos (RSU), cujo líder era Alexander Shprygin, um dos deportados. A deportação dos detidos ocorreu no dia 17.
Shprygin não é um torcedor qualquer. Ele tem um longo currículo como líder de torcida, agitador político, organizador de eventos esportivos e de relações com o Kremlin. Torcedor do Dínamo de Moscou, ele também é fundador e líder organização nacionalista União dos Apoiadores Russos de 2007. Fez parte da delegação oficial russa que visitou as cidades-sede da Eurocopa em março deste ano. Na ocasião as delegações locais de Toulouse e Marselha se recusaram a receber Shprygin sob a justificativa de que teria problemas com a polícia. Ele também faz parte do comitê local da Copa do Mundo de 2018 para as partidas de Moscou. Ao viajar para a Eurocopa num voo fretado, seis membros da delegação da RSU tiveram o visto de entrada na França negados.
A organização Fare Network, ligada à UEFA e à FIFA e responsável pelo monitoramento de discriminação e violência nas torcidas de futebol, afirma que Shprygin é um dos principais responsáveis por introduzir práticas e simbologias nazistas nas partidas desde anos 90, e que ele estaria ligado a grupos de extrema-direita, ultranacionalistas e teria relações íntimas com políticos russos do alto escalão. Em maio a Fare teria avisado a UEFA sobre o credenciamento do líder russo na organização, que respondeu já fazer a triagem de seus credenciados.
(Igor Lebedev, que deu apoio explícito aos hooligans, é vice-presidente da Duma, deputado pelo ultranacionalista LDPR e membro do comitê executivo da União Russa de Futebol. Shprygin é seu assessor pessoal.)
A relação oficial de Shprygin com organizações esportivas internacionais está relacionada à sua intimidade com o Kremlin. Ele trabalha como assessor do vice-presidente da Duma. Igor Lebedev é deputado pelo Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR) que, apesar do nome, é extremo-nacionalista e antiocidental. Ele tem este nome desde 1991, mas foi fundado em 1989 por Vladimir Zhrinovsky, considerado um dos principais representantes do nacionalismo russo e conhecido por suas posições extremistas. O LDPR se insere na gama de grupos e movimentos considerados por analistas ocidentais como "ultranacionalistas" e de "extrema-direita".
(Ministro dos Esportes da Rússia, presidente da União Russa de Futebol e membro do conselho da FIFA: pouca moderação.)
Lebedev faz parte do comitê executivo da União Russa de Futebol. Em 31 de julho de 2015 ele desistiu de se candidatar à presidência da organização para apoiar Vitaly Mutko, atual presidente da União e ministro dos esportes da Rússia. O apoio veio numa troca de favores. Depois de um encontro entre os dois, Lebedev disse que "ele [Mutko] me apoiará para as eleições do comitê executivo, e eu o apoiarei nas eleições para presidente". Mutko faz parte do conselho da FIFA e é peça-chave na organização da Copa do Mundo 2018.A proximidade de Shprygin com organismos esportivos oficiais da Rússia ajuda a explicar (mas não justificar) a reação pouco diplomática de Lebedev e Mutko a respeito da violência em Marselha. No dia da pancadaria, Lebedev deu apoio aos hooligans pelo twitter dizendo que eles "defenderam a honra de nosso país" e "não deixaram os torcedores ingleses ofender nossa terra". Disse ainda que "não vejo nada de errado com a briga entre torcedores", e completou: "muito pelo contrário, bem feito rapaziada! Vão em frente!" Já Mutko estava presente no jogo Rússia X Inglaterra, e foi filmado aplaudindo os torcedores russos depois do jogo e da pancadaria. Comentou que no jogo não houve confronto entre as torcidas, que isto era um "exagero" e que estava "tudo bem". O ministro conversou com Shprygin e não falou nada sobre a briga. Apenas parabenizou o grupo pela "vitória", uma possível referência ao confronto no estádio já que o jogo acabou empatado em 1 a 1. Mais tarde Mutko minimizou a situação e disse que a violência de alguns torcedores eram uma "vergonha para o país".
Shyprygin também é próximo de Vladimir Putin. Em 2010 o líder de torcida foi fotografado junto do presidente russo na homenagem a um fã do time Spartak assassinado em Moscou. Ele também já esteve em reuniões presididas por Putin, como em janeiro de 2012 quando estavam presentes os então presidentes da FIFA e da UEFA, Joseph Blatter e Michel Plattini. Não é possível saber exatamente quão próximos são Shprygin e Putin, mas citada reunião o presidente referiu-se ao líder de torcida como "Sasha", diminutivo de Alexander, o que sugere alguma intimidade entre os dois.
Além do apoio explícito de Lebedev e da minimização de danos de Mutko, reação na Rússia à detenção de torcedores e à violência foi de crítica à ação da polícia e à suposta parcialidade das autoridades no tratamento com os russos. O ministro das relações exteriores, Sergei Lavrov, fez duras críticas à detenção dos torcedores dizendo que elas eram "absolutamente inaceitáveis". Disse ainda que as autoridades francesas não comunicaram a embaixada ou o consulado de Marselha de que fariam a interceptação do ônibus da torcida, e que as informações foram conhecidas apenas pelas redes sociais. Apesar de admitir o "comportamento inaceitável" de alguns torcedores russos, Lavrov criticou a atitude provocativa dos ingleses, e disse que as autoridades francesas estavam ignorando voluntariamente o comportamento destes últimos e que esperava um tratamento igual para ambos os grupos. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse esperar uma investigação justa a respeito dos confrontos em Marselha.
Já Vladimir Putin, que estava no Fórum Econômico de São Petersburgo, criticou os hooligans russos dizendo que a briga com os ingleses era uma "desgraça" e que esperava que a lei fosse igualmente aplicada a todos os envolvidos. O presidente, porém, fez um comentário irônico dizendo "eu realmente não entendo como duzentos de nossos torcedores poderiam bater em vários milhares de ingleses". Foi uma clara referência à informação divulgada na imprensa local de que poucos russos teriam colocados muitos ingleses a correr.
A repetida ênfase dada pelo Kremlin de que as autoridades francesas deveria dar tratamento igual tanto aos russos quanto às demais nacionalidades mostra a desconfiança dos líderes do país sobre a política ocidental. O mesmo é válido para a imprensa.
(Hooligans neonazistas do Spartak de Moscou: penetração de movimentos extremistas no futebol russo desde a década de 90.)
A "cultura" esportiva da qual Shprygin faz parte foi comentada numa longa reportagem pelo jornal escocês Herald Scotland. Os hooligans russos referem a si mesmo como "ultras" e tem origem nos clubes de futebol de Moscou e São Petersburgo. Eles se inspiram no período em que os hooliganismo inglês estava mais ativo, na década 1970. Têm um comportamento ascético, não fumam nem bebem, praticam treinos físicos, táticas de ação em grupo e viajam a outras cidades para confrontar torcedores de outros clubes. Segundo um analista, eles seriam quase na sua totalidade "de direita", "racistas" e "homofóbicos", e muitos deles acreditam ter o dever de defender os valores tradicionais russos. Os ultras também organizam os chamados "vagões brancos", que é a ação violenta contra pessoas de "aparência não-eslava" e adversários ideológicos dentro dos metrôs urbanos. Possivelmente devido à proximidade da Copa 2018, a polícia russa tem combatido firmemente a violência nos clubes de futebol e tem conseguido evitar tumulto dentro das cidades, obrigando os hooligans a travarem suas batalhas em áreas afastadas.
A reportagem levanta a questão da existência de uma relação entre os ultras, grupos extremistas e o Kremlin, e de como o Estado estimula a ação de tais grupos. Diz que não há consenso entre pesquisadores sobre o nível de controle do Kremlin sobre os hooligans, uns afirmando que entre eles predominam pessoas comuns, outros dizendo que eles foram criados pela FSB, serviço secreto sucessor da KGB. Os vínculos entre as partes não são muito claros.
Um especialista ouvido pelo Herald explicou que o Kremlin tem uma política de cooptação de grupos nacionalistas, dentre eles os ultras. Ele diz que o grupo juvenil Nashi, criado pelo governo, por exemplo, é composto por membros das torcidas dos times moscovitas CSKA e Spartak. Mas o episódio que solidificou a relação do Kremlin com os torcedores de futebol foi um protesto realizado em 11 de dezembro de 2010 na Praça Vermelha, em Moscou, reunindo entre seis e sete mil pessoas. O estopim foi o assassinato de um torcedor do Spartak dois dias antes numa briga com uma gangue de imigrantes do Cáucaso. O protesto foi o convocado por organizações extremistas como o Movimento Contra a Imigração Ilegal, grupo xenófobo conhecido por difundir a rejeição à imigração e por organizar marchas em defesa dos "brancos" contra "pessoas de cor". Houve confrontos com a polícia, agressões a pessoas de aparência não-eslava e trinta feridos. No dia 21, Vladimir Putin esteve no túmulo do torcedor para colocar flores e prestar-lhe homenagens. Num discurso ele chamou a atenção de que "extremistas" estavam tentando se infiltrar nas torcidas de futebol, e pediu aos torcedores para não deixarem "ninguém deixar manipular vocês". Foi nesta homenagem que Shprygin apareceu ao lado de Putin.
(Shprygin fazendo a saudação nazista com membros da banda Korrozia Metala, em 2001, é um dos indicativos de suas inclinações ideológicas.)
Depois de ser deportado da França em 17 junho, Shprygin tomou uma atitude surpreendente: voltou rapidamente ao país e foi preso de novo no dia 20. A prisão foi noticiada pelo porta-voz do Ministério do Interior da França e ocorreu dentro do estádio de Toulouse no jogo entre Rússia e País de Gales.
Poucos antes de ser preso, Shprygin conversou por telefone com a agência francesa de notícias AFP. Ele disse que teria sido informado pelas autoridades francesas de que não fora deportado, mas expulso. Portanto, seu visto de entrada na União Europeia ainda era válido. Disse também que estava com os tíquetes para assistir o jogo. O problema é que sua proibição era válida ao território francês. Daí sua prisão. Para mostrar como voltou à França sem ser barrado, Shprygin postou fotos no twitter de um aeroporto europeu que seria o de Barcelona e disse que chegou ao país por terra, numa "uma rota incomum sob a penumbra da noite".
(Shprygin com bandeira russa estilizada após ser liberado pela polícia francesa para ser deportado pela segunda vez em 20 de junho.)
Shrpygin foi solto logo em seguida à sua prisão. O Ministério das Relações Exteriores da França disse que ele seria deportado saindo de Toulouse para Paris e daí para Moscou. Com a derrota para o País de Gales por 3 a 0, a Rússia foi eliminada da Eurocopa 2016.
Neste meio tempo, outro três russos foram sentenciados a mais de dois anos de cadeia. Estes são provavelmente os três hooligans que estavam no ônibus da RSU detido no dia 14, quando 20 foram liberados e outros 20 deportados. A prisão irritou as autoridades russas, que chamaram o embaixador francês em Moscou para consultas.
A volta do líder da RNU à França foi um gesto de audácia e desafio às leis europeias e, de forma geral, ocidentais, ainda mais quando se trata de uma liderança envolvida em atos criminosos como a violência ocorrida em Marselha. É evidente a intimidade de Shprygin com o governo russo, e é muito provável (ainda que não se possa concluir com as informações aqui disponíveis), que torcidas organizadas russas e hooligans recebam apoio direto do Kremlin. Este apoio ficou mais evidente quando membros da RNU foram assistir à Eurocopa na França com um avião fretado e quando Shprygin voltou rapidamente, de forma clandestina, ao país. Não é possível saber quem exatamente financia ações deste tipo, bem como de quais seriam os setores estatais ou privados que dão apoio aos hooligans russos. Isto foge ao escopo desta análise. De qualquer forma, a íntima conexão com políticos de alto-escalão do governo russo, como a relação direta entre Shprygin, Lebedev, Mutko e a proximidade destes com Putin reforçadas pelos preparativos para a Copa de 2018, denotam que o hooliganismo russo recebe, sim, suporte do Estado.
É de extrema ironia a declaração de Putin na homenagem ao torcedor do Spartak de Moscou assassinado em 2010 quando ele disse que "extremistas" estavam tentando se infiltrar nas torcidas de futebol e pediu para que os torcedores não se deixassem "manipular". Era o chefe do Kremlin pedindo para cuidar o que o próprio Kremlin estava fazendo. Isto é muito representativo do comportamento das autoridades russas, que fazem um jogo duplo junto à sociedade e a aplicam esta mesma estratégia na Europa, a exemplo da ação dos hooligans em Marselha.
(Hooligans e o Kremlin: estratégia e intimidade.)
Marlene Laruèlle, ao analisar as divisões ideológicas da "direita radical russa", diz que os variados grupos, apesar de divergirem ideologicamente, têm algumas bases comuns: defendem a unidade nacional russa baseada na história, na tradição e nos laços étnicos e/ou raciais, têm um sentimento antiocidental e veem o país ameaçado por forças externas e internas. Estes parecem ser alguns dos princípios defendidos pelos hooligans russos na esfera ideológica.
Não dá para saber se a ação dos hooligans foi deliberadamente combinada com as autoridades russas. De qualquer forma, o que importa são seus efeitos concretos. A pancadaria em Marselha foi a oportunidade para que o Kremlin, com seus políticos e ministros, reivindicasse das autoridades francesas "tratamento igual" para russos e denunciasse sua suposta parcialidade. O atrito resultante foi mais um capítulo da complexa trama política em que Moscou tenta envolver o Ocidente em tensões políticas e sociais na expectativa de dividi-lo, jogá-lo contra si mesmo e depois oferecer uma "solução" para o problema. Neste contexto o papel de Shprygin, consciente ou não, fica claro. Ele é muito mais do que líder de torcida: é um agente que entrou em campo para colocar em prática a estratégia do Kremlin de dividir para melhor dominar.
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