sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O caso Litvinenko e o aprofundamento das divergências entre Londres e Moscou

(Alexander Litvinenko, em novembro de 2006 sem cabelo e no leito do hospital onde faleceu.)

Neste dia 21 saiu  "O Inquérito Litvinenko", documento publicado pela Casa dos Comuns de Londres baseado nas investigações sobre a morte do ex-agente da KGB e FSB Alexander Litvinenko em novembro de 2006.

O inquérito afirma na conclusão que é certo que dois agentes da FSB, Andrey Lugovoy e Dmitri Kovtun, agiram na intenção de envenenar Litvinenko, que o então chefe da FSB, Nikolai Patrushev, provavelmente ordenou seu assassinato, e que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, provavelmente aprovou a ação.

(University College Hospital, em Londres, onde Litvinenko foi internado para tratamento.)

Obviamente tal inquérito explodiu como uma bomba tanto no Reino Unido quanto na Rússia. O uso do material radioativo para matar Litvinenko, o polônio-210, só pode ser produzido por reatores nucleares e, portanto, vir de um país que possui capacidade de fabricar os equipamentos. Não poderia haver envenenamento por polônio sem um suporte estatal. Esta era a suspeita do então governo trabalhista de Tony Blair à época da morte de Litvinenko, suspeita compartilhada pelo atual governo conservador de David Cameron.

O ex-espião atuava como investigador e crítico de Putin, e teria colaborado com o MI6, o serviço secreto britânico. Ele teria sido expulso da FSB pelo próprio Putin depois de conceder uma entrevista a um jornalista russo onde expunha o trabalho sujo do serviço secreto que tinha entre seus objetivos matar diversas figuras proeminentes do país. Com esta denúncia pública, Litvinenko colocava a própria vida em risco, bem como de sua família. Disse ele: "Mas agora chegou eu acredito que a hora chegou [de contar o que faz a FSB]. Se eu estivesse com medo, eu não faria o que faço agora. Mas eu temo pela vida de minha mulher, minha filha" [tradução live]. Com ajuda de Bóris Berezovsky, adversário de Putin, Litvinenko fugiu para o Reino Unido em 2000 onde conseguiu asilo político. Quando estava no hospital tentando se recuperar, o ex-espião acuso Putin de ter ordenado pessoalmente sua morte.

Como era de se esperar, as já antagônicas relações entre Reino Unido e Rússia pioraram. David Lidington, secretário de Estado para a Europa, disse que o inquérito piora ainda mais as relações entre os dois países, e exigiu que a Rússia dê uma resposta e se responsabilize pelo ato. O embaixador russo em Londres, Alexander Yakovenko, também endossou a piora das relações e disse que a conclusão do inquérito era "absolutamente inaceitável", deduzindo disto que as exigências feitas pelo governo britânico à Rússia são igualmente inaceitáveis. O porta voz do Kremlin, Dmitry Peskov, desqualificou as conclusões do inquérito dizendo que são baseadas em suposições, e que tal postura contraria a prática legal russa de investigação. As supostas falhas grosseiras da investigação foram tema de um artigo publicado na Sputnik, imprensa oficial russa notória por sua defesa do governo e por suas repetidas críticas ao Ocidente, que afirma que o procedimento teve motivações políticas, foi instrumentalizado para fazer propaganda contra Putin e a Rússia e que sua publicação neste momento aumenta ainda mais a pressão sobre Moscou a respeito de sua intervenção militar na Síria.

(Emblema do Serviço de Segurança Federal da Federação Russa - FSB - e o logo do Serviço Secreto de Inteligência britânico - MI6)

Como sugere um pesquisador da Catham House de Londres, apesar de Reino Unido e Rússia estarem envolvidos numa crescente cooperação do campo educacional e cultural e de haver mais de mil empresas britânicas atuando na Rússia (bem como muito dinheiro russo investido na City londrina), existe pouca boa vontade de ambas as partes de melhorar as relações de Estado para Estado. Londres e Moscou têm um histórico de rivalidade que remonta principalmente ao Grande Jogo, período do século XIX em que o Império Britânico e o Império Russo mediam forças no domínio sobre a Ásia Central, e desde então estão quase sempre em lados opostos nas questões políticas globais. Como lembra o pesquisador, apesar de uma potencial cooperação na questão do terrorismo e na proliferação das armas de destruição em massa, há um hiato de valores entre ambos países, a exemplo da recorrentes acusações de governo britânico sobre as violações dos direitos humanos por Moscou na Chechênia. Também há um histórico de escândalos de espionagem de ambas as partes sobre a atuação dos serviços secretos britânico e russo em território alheio, e uma massiva propaganda antibritânica na Rússia. Em 2006, mesmo ano da morte de Litvinenko, o Kremlin tentou a extradição de Boris Berezovsky, adversário político de Putin então exilado em Londres, sem sucesso. O mesmo agora ocorre com os espiões acusados de matar Litvinenko, cuja crise política resultou na expulsão de ambos diplomatas russo e britânico. Desde então a relação formal entre Reino Unido e Rússia é incipiente. Também é recorrente a existência de pedidos de asilo políticos de russos para o Reino Unido. Berezovsky morreu em março de 2013 sem ser extraditado.

Certamente divulgação do Inquérito Litvinenko piorará ou pelo menos fortalecerá os problemas de relacionamento entre Londres e Moscou. Quando estive em Londres em 2015, tomei o conhecimento de que quando os britânicos vão ao continente europeu eles dizem estar "indo à Europa". É um sinal claro de que, quanto à Europa (e mais ainda à Rússia), Londres prefere preservar sua autonomia em relação ao restante do continente, vide às resistências de adotar a livre circulação de pessoas dentro da União Europeia e a preservação da libra esterlina como moeda. A aliança preferencial do Reino Unido é os Estados Unudos. Não é à toa que Moscou vê Londres não como um potencial aliado, mas um tradicional opositor de sua estratégia eurasiana de cooptar os europeus à sua esfera e combater o poder de Washington. O caso Litvinenko apenas reforça esta constatação.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Referendo na Armênia aprofunda influência russa sobre o país


(Presidente da Armênia, Serzh Sargsyan, votando no plebiscito do dia 6.)

No último dia 6 de dezembro a Armênia, pequeno país do Cáucaso ao sul da Rússia, foi às urnas para votar pela mudança do regime político do país para parlamentarista ou mante-lo como presidencialista. Segundo os resultados oficiais a maioria votou o "sim" pela mudança de regime:

Sim: 66,35%
Não: 32,35%
Comparecimento às urnas: 50,5%
Proporção do "sim" do total de eleitores: 32,17%

Com o "sim" a Armênia adotará a nova ordem institucional a partir de 2016. A principal mudança será o aumento do poder do primeiro ministro em detrimento o presidente. O presidente continuará a ser eleito diretamente pela população, mas não possuirá vínculo partidário. Já o primeiro ministro, este sim terá o poder real do país, passando a ser indicado pelo partido majoritário no parlamento e tendo entre outras prerrogativas a chefia das forças armadas. Outro elemento será a diminuição do número de deputados parlamentares, de 131 para 101.

Com a mudança constitucional, o atual presidente, Serzh Sargsyan, poderá sair da presidência e ocupar o cargo de primeiro-ministro. Este é o principal ponto criticado pelos partidos e ativistas da oposição. Sargsyan está no seu segundo mandato de cinco anos, que se encerrará em 2018, sendo inelegível para um terceiro. Mas caso Partido Republicano da Armênia (PRA), do qual é líder, vença o próximo pleito, ele será apontado como primeiro-ministro e continuará como líder efeitov do país. O PRA é majoritário no parlamento desde as eleições de 2000, e na oposição não há partido ou liderança capaz de fazer frente ao atual status quo. Alguns de seus críticos afirmam que o principal mecanismo de intervenção da população sobre a política nacional é a eleição para presidente, cujos poderes ficarão muito mais limitados, não podendo sequer vetar projetos parlamentares. De agora em diante serão as eleições parlamentares, dominadas pelo PRA, o centro da vida política da Armênia.

As suspeitas das reais intenções do referendo, o terceiro no país desde a sua independência da União Soviética em 1991, geraram protestos nas ruas ainda no final de novembro e mobilizações pelo "não" por parte de grupos civis e partidos de oposição na TV e na internet. Tais manifestações vieram na esteira dos protestos de rua ocorridos durante o verão contra o aumento das tarifas de energia elétrica, e que desencadearam mais protestos contra a corrupção e a falta de sensibilidade por parte do governo federal para com a sociedade armena.

Mas onde está a Rússia na dinâmica sociopolítica que agitou o referendo na Armênia?

Em primeiro lugar, russos, assim como ocidentais, estiveram no pequeno país do Cáucaso como observadores internacionais do referendo. As posições não poderiam ser mais evidentes: ocidentais e ativistas independentes apontam diversas fraudes que podem inclusive ter alterado o resultado final da votação. Já os russos consideram que o pleito ocorreu dentro da normalidade e sem problemas significativos. Entre os convidados pelo parlamento da Armênia estavam a presidente do Conselho da Assembleia Interparlamentar da Comunidades dos Estados Independentes (CAI-CEI) Valentia Matvyienko, também deputada da Duma e membro do Partido Rússia Unida de Putin, o presidente do Parlamento Europeu e a presidente da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.

(Protesto no centro de Yerevan, dia 7, contra o resultado e as alegadas fraudes um dia depois do referendo que mudou o regime político do país.)

No dia seguinte ao referendo um protesto no centro de Yerevan e o partido de oposição Congresso Nacional Armeno (CNA) rejeitaram seu resultado final denunciando compra e o registro duplo de votos. Uma ativista russa independente presente no país descreveu um processo de fraude chamado de "carrossel", onde o eleitor vendia seu voto para um terceiro após registrá-lo na urna. Um levantamento feito pela ONG Compass Research, instituto de pesquisa da própria Armênia, verificou o desaparecimento de nomes e a repetição de identidades de centenas de eleitores na lista de votantes em diversas zonas eleitorais.

Por outro lado, o presidente da Comissão Central Eleitoral Russa, Vladimir Churov, afirmou que não foi observado qualquer fraude no referendo apesar alguns observadores terem notado pequenos problemas de organização. Churov é conhecido na Rússia como "O Mágico" por dar validação a eleições claramente fraudadas. Ele já foi alvo de protestos como os ocorridos na Rússia em dezembro de 2011 após as eleições parlamentares deste país onde os manifestantes pediam sua renúncia, além da libertação de presos políticos e novas eleições. Um membro da missão da CAI-CEI e membro da Duma (parlamento russo), além de outros dois observadores também da Duma, afirmaram que o referendo foi tranquilo e sem violações da lei.

As posições de validação dos representantes russos não é acidental. A Armênia é o único país do Cáucaso (os demais são Geórgia e Azerbaijão) a possuir uma parceria estratégia com a Rússia, e é bom para os interesses de Moscou haver um regime político forte e estável neste país.



No Cáucaso, a Armênia é o único país a fazer parte da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) que abrange, além de outros países da Ásia Central, Rússia e China. É também o único a fazer parte da recém formada União Econômica Eurasiana (UEE) em 2014 e, junto com o Azerbaijão, faz parte da Comunidade dos Estados Independentes (CEI).

Por outro lado os países vizinhos aos armênios, a Geórgia e o Azerbaijão, possuem problemas de relacionamento com a Rússia e a Armênia, respectivamente, sendo o primeiro em função de sua aproximação com o Ocidente e a guerra de 2008 e o segundo em função de disputas territoriais. Ao sul o Irã possui uma boa relação com Moscou, mas tem relações tensas com o Azerbaijão. Já ao oeste a Turquia mantém fechada sua fronteira com a Armênia depois de ter apoiado o Azerbaijão na Guerra de Nagorno-Karabakh (1988-1994) vendendo armamentos para Baku. Ademais, Turquia e Rússia têm relações intensas mas instáveis, a exemplos dos projetos de transporte de gás russo pelo território turco e a crise política provocada pela derrubada de um caça russo por forças turcas nas últimas semanas.

O cruzamento das relações e tensões descritos acima mostram que a Armênia é um parceiro necessário para a Rússia no Cáucaso ou, nas palavras do analista Gaïdz Minassian referenciado no parágrafo anterior, um "entreposto russo" na região. Dessa forma Moscou garante algum grau de estabilidade ao Cáucaso, contrabalanceando a influência ocidental sobre a Geórgia, utilizando a Armênia como passagem ao Irã e o Oriente Médio ao sul e apaziguando as divergências entre Yerevan-Baku e Yerevan-Ancara. Outro ponto é a intenção russa de manter congelado o conflito entre Armênia e Azerbaijão sobre o território de Nagorno-Karabakh, enclave de maioria armênia dentro do território azeri. Para Moscou é importante não atiçar o conflito para não estimular movimentos separatistas dentro de sua federação, bem como impedir uma maior inclinação dos armenios em direção ao Ocidente. Além da aliança militar com a Rússia, o país recebe vultuosos investimentos das grandes estatais deste país, que dominam a produção e distribuição de energia além de investirem pesado em transporte, telecomunicações, alumínio, diamante e urânio. A Armênia também recebe um montante de aproximadamente U$ 1 bilhão ao ano em remessas de emigrados na Rússia. Tais investimentos garantiram à Armênia um crescimento econômico acima de 10% em parte dos anos 2000. Apesar do apoio econômico e militar, Yerevan vem com insatisfação a falta de firmeza russa em apoia-la nas suas pretensões territoriais sobre Nagorno-Karabakh.

(Yerevan, capital da Armênia. Ao fundo o Monte Ararat, o mais alto e símbolo do país.)

Sua relevância estratégica e as divergências existentes com a Rússia dá Armênia maior margem de manobra e uma relativa (mas limitada) aproximação com o Ocidente. Moscou não gostaria de ter problemas com seus parceiro ao sul, e portanto "permite" que Yerevan mova-se, até certo ponto, para o oeste. É a chamada de "finlandização" de sua política externa, numa referência ao comportamento Finlândia durante a Guerra Fria, cuja fronteira com a então União Soviética obrigava o país a se equilibrar politicamente entre os blocos comunista e ocidental. A Armênia vive hoje situação similar, porque apesar do apoio militar, da presença de uma base russa e de grandes investimentos no seu país, ela também atua em conjunto com a OTAN em ações internacionais, como no Kosovo, e mantém parceria com esta organização. O país também está negociando o aprofundamento das relações com a União Europeia. Em novembro de 2013, porém, o governo voltou atrás na última hora e desistiu de assinar a nova etapa do Acordo de Associação na expectativa de aprofundar suas relações com o bloco, seu principal parceiro econômico e responsável por 39% de suas trocas comerciais. Foi exatamente a mesma atitude sobre o AA que desencadeou a crise na Ucrânia que derrubou o governo Yanukovich em fevereiro de 2014.

O governo Sargsyan, assim como o governo Putin, é herdeiro político dos tempos soviéticos. A exemplo dos colegas russos, seu partido, o Republicano da Armênia, possui uma inclinação "eurasiana" no que diz respeito ao seu apelo cultural e nacionalista. Um exemplo desta inclinação está nas duras críticas que o partido recebeu do ex-presidente e líder do partido de oposição Congresso Nacional Armeno (o mesmo que não aceitou o resultado do referendo), Levon Ter-Petrosyan, ao acusar o PRA de colocar sua ideologia etnorreligiosa (i.e., racista, segundo sua declaração) acima dos princípios constitucionais da Armênia. Há uma proximidade ideológica deste partido com o movimento eurasiano na Rússia, que propõe a união de todos os povos associados aos russos a se unificarem sob um mesmo Estado liderado por Moscou.

(Serzh Sargsyan e Vladimir Putin em encontro dia 8 de setembro passado na Rússia.)

Sargsyan mantém certo distanciamento do Ocidente. Além de rejeitar o Acordo de Associação com a UE, seu governo não pretende incluir o país na OTAN. O resultado do referendo permitirá que ele saia da presidência em 2018 e, caso seu partido continue a dominar a vida política no país como vem fazendo nos últimos quinze anos, se torne o poderoso novo primeiro-ministro. Como de costume, Moscou continuará a agir de forma pragmática com os armênios e certamente vê com bons olhos o fortalecimento de uma autoridade que, além de ser capaz de controlar o país mesmo com as insatisfações políticas e protestos de seus opositores, é claramente contrário às chamadas "revoluções coloridas" como a ocorrida Ucrânia e que criou dores de cabeça para Moscou e Yerevan. Não importa muito quantas fraudes hajam no referendo, e nem importa se elas realmente aconteceram na proporção em que apontam os observadores ocidentais e críticos de Sargsyan. Os russos já sabiam o que tinham a dizer sobre o resultado final.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Putin tenta ganhar tempo na Ucrânia

(Christine Lagard, diretor geral do FMI, e Vladimir Putin, presidente da Rússia num dos diversos encontros paralelos realizados no encontro do G20.)


O presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou de surpresa, no dia 16 de novembro durante o encontro do G20 na Turquia, que estava disposto a negociar com a Ucrânia a reestruturação de sua dívida de U$ 3 bilhões que venceria dia 20 de dezembro. A proposta é oferecer à Kiev a possibilidade de pagar sua dívida em três vezes, um bilhão a cada ano até 2018.

Moscou, porém, considera que o empréstimo realizado à Ucrânia no final de 2013 ainda no governo Yanukovich é uma negociação entre Estados e não aceita a reestruturação da dívida nos moldes dos credores comerciais tal como afirma Kiev. Isto implicaria possivelmente perda financeira para a Rússia, a exemplo de uma das renegociação que o governo ucraniano realizou com o fundo de gestão de investimentos Franklin Templenton, que reduziu em 20% o valor total de U$ 15 bilhões a ser pago. É este tipo de reestruturação proposto pelo FMI para que o fundo conceda novos empréstimos à Ucrânia.

 (Barricada e mensagens antiocidentais colocada por militantes pró-Rússia em frente à sede do governo em Donbass. Conflito na região já deixou mais de 8 mil mortos e mais de 1,4 milhão de desabrigados.)

O aceno de Putin à Ucrânia é mais do que mera necessidade financeira, vide a crise econômica que deve derrubar o PIB russo em 3,5% neste ano. É também estratégico. Primeiro, ele busca um aparente relaxamento das tensões entre russos e ocidentais, principalmente por terem, apesar dos diversos atritos, um inimigo em comum a ser combatido: o extremismo islâmico. O anúncio ocorreu num evento de grande visibilidade como o encontro do G20 e a três dias após os atentados em Paris que deixaram 130 mortos. Mas o mais importante, como sugere o jornalista da Rádio Europa Livre, Brian Whitmore, é que Putin está tentando ganhar tempo no conflito na Ucrânia. Nos últimos dias o conflito tem se intensificado na região de Donbass mesmo após as negociações de paz em mais um dos muitos vaivéns da crise. A estratégia russa de anunciar uma tentativa de acerto da dívida  justamente após os chocantes atentados de Paris durante uma das mais importantes reuniões de líderes mundiais é a ocasião perfeita para Moscou desviar a atenção da Ucrânia. Quem olhará para um conflito que se arrasta à conta gotas e que é de interesse vital para o projeto eurasiano dos russos enquanto o mundo está voltado às questões econômicas típicas dos encontros do G20 e ao mesmo tempo aterrorizado com o massacre na França? Evidentemente saltam aos olhos do mundo a mortandade surpreendente, não uma guerra que se arrasta de forma discreta e indefinida.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O cavalo de Tróia russo e a ação do FMI na disputa pela Ucrânia



Quando o governo do ex-presidente da Ucrânia, Victor Yanukovich, suspendeu as negociações para avançar o Acordo de Associação com a União Europeia e firmou um acordo com a Rússia, estopim da crise que se abateu sobre o país a partir de novembro de 2013, uma das vantagens oferecidas pelo governo russo foi o empréstimo de U$ 15 bilhões a Kiev, além de desconto no preço do gás. Na ocasião, Moscou chegou a emprestar inicialmente U$ 3 bilhões, mas o governo Yanukovich foi derrubado e o empréstimo foi suspenso. A dívida dos U$ 3 bilhões ainda não foi paga, e seu vencimento ocorrerá mês que vem.

O empréstimo russo apenas fortaleceu a oposição que foi às ruas, que via neste laço financeiro uma dependência de Moscou. Com a crise provocada pelos protestos, a queda de Yanukovich, a ocupação da Crimeia pela Rússia e o conflito armado em andamento no leste do país, além do histórico de corrupção e má administração, a Ucrânia projeta uma queda de até 9,5% no seu PIB (o FMI fala em 11%) neste ano tendo caído mais de 12% no período 2014-15.

(O presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, e a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, num encontro em setembro deste ano.)

O FMI, como de costume, propõe uma série de reformas econômicas, administrativas e financeiras para conceder empréstimos ao país (detalhes dos ajustes e dados gerais da economia ucraniana de março/2015 aqui). Em julho o Fundo aprovou a liberação da primeira parcela no valor de U$ 1,7 bilhão de um total de U$ 17,5 bilhões em ajuda ao longo de quatro anos. Dentre as prerrogativas do empréstimo está a negociação das dívidas com credores internacionais que somam U$ 15 bilhões. E dentre eles está o empréstimo ainda não pago de U$ 3 bilhões à Rússia.

A dívida pendente com a Rússia é o calcanhar de aquiles do atual projeto de empréstimos do FMI à Ucrânia e, em última instância, um mecanismo arrasto da Ucrânia à órbita de Moscou ao mesmo tempo em que este busca cortar a influência do Ocidente sobre Kiev.



Como sugere uma reportagem da Rádio Europa Livre, o empréstimo rápido inicial da Rússia à Ucrânia foi o "cálice envenenado" que agora ameaça a capacidade do país que quitar suas dívidas, um cavalo de Tróia que garantiria influência de Moscou em Kiev. Com a economia em grave crise, altamente endividada e desorganizada, os ucranianos tendem a perder ainda mais confiança no mercado internacional e afugentar investimento estrangeiro, como coloca o relatório do FMI. Segundo as regras do Fundo, um país membro não pode receber empréstimos enquanto estiver endividado com países ou credores. A solução seria, ou o pagamento da dívida (o que não é possível até sua data limite, mês que vem), ou a sua reestruturação. A Rússia, porém, está buscando bloquear futuros empréstimos à Kiev através da não renegociação de sua dívida. Moscou alega que o dinheiro a ser pago é de Estado para Estado, ao passo que a Ucrânia considera esta mesma dívida relacionada a credores comerciais. Em suma, para os russos a dívida é "oficial", mas os ucranianos ela é "comercial". Com a recusa russa de sentar-se à mesa, o primeiro-ministro da Ucrânia ameaçou dar um calote na Rússia.

Sendo a Ucrânia pivô de uma crise mais ampla, o Ocidente reagiu por meio do FMI: o Fundo, cujos votos no Conselho Executivo é comandado principalmente por americanos e aliados, está buscando mudar as regras de empréstimo internacional para permitir que países endividados possam receber ajuda financeira. Desta forma a Ucrânia estaria livre para receber dinheiro do FMI mesmo com a dívida pendente com os russos. A expectativa é que as mudanças nas regras sejam anunciadas no encontro do G-20 na Turquia ainda neste mês.  

O FMI já havia perdoado U$ 3,8 bilhões da Ucrânia em 27 de agosto passado como forma de estimular as reformas internas para pagar sua dívida externa. Um corte bastante generoso numa época em que parte do Ocidente passa por uma crise econômica, mas que parece se justificar por razões geopolíticas, isto é, de afastar a Ucrânia da Rússia. Para Kiev foi um "ganho" maior do que o dinheiro depositado por Moscou na esteira de crise que derrubou Yanukovich.

A economia da Ucrânia não deve retomar seu desenvolvimento tão cedo. O relatório do FMI projeta que o PIB do país atingirá o patamar do final da era soviética só em 2019. Isto se tudo der certo, segundo o desejo do Fundo. Mas como a crise na Ucrânia provou, o jogo pesado da Rússia não está nas finanças, mas no seu hard power. O mecanismo financeiro é apenas um ponto menor de tensão para um país que está disposto, a julgar por seu revisionismo nacionalista, sua ação na Crimeia e na recente intervenção na Síria, de ir bem além do que os líderes ocidentais esperam. Isto apesar da crise econômica na própria Rússia. Ainda há muitos capítulos pela frente. Resta saber qual dos lados suportará o desgaste de longo prazo.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Ucrânia: uma crise planejada?

(Passeata da União da Juventude Eurasiana)

Guerras, conflitos, manifestações em massa, tudo isso ocorre sempre com algum planejamento por trás ou pelo menos com algum tipo de estímulo ou "empurrão" que desencadeie os efeitos desejados.

Em agosto de 2014, já durante a guerra em andamento na Ucrânia, o professor Anton Shekovtsov publicou em seu blog fotografias comparativas de membros da chamada União da Juventude Eurasiana (Eurasian Youth Union) entre os anos de 2006 e 2014. As fotos tiradas em 2006 mostram cinco membros deste movimento num acampamento de verão para doutrinação e treinamento de quadros ultranacionalistas. Segundo Shekovtsov, esses membros deveriam lutar ativamente contra movimentos democráticos, uma referência às chamadas "Revoluções Coloridas" que ocorreram nos países vizinhos à Rússia em 2004 e 2005. Já as fotos de 2014 mostram, um a um, os mesmos membros da União ocupando postos chave na administração da autoproclamada "República Popular de Donetsk", região dominada por combatentes pró-Rússia que clama autonomia no leste da Ucrânia. Abaixo dois dos exemplos identificados por Shekovtsov.

               
(Andrei Purgin, líder da organização República de Donetsk no acampamento em 2006, e como primeiro-ministro da "República Popular de Donetsk" em 2014)

             

(Oksana Shkoda, no acampamento da União em 2006, e como representante do quartel-general da "República Popular de Donetsk" em 2014.)

A União foi fundada em 2005 pelo ideólogo russo Alexander Dugin e o então vice-chefe da administração presidencial Vladimir Surkov. O Programa do Partido da União da Juventude Eurasiana traça diretrizes a serem seguidas por seus membros. Primeiramente aponta os EUA como o grande inimigo a cercar e penetrar na Rússia com a propagação de sua tirania financeira, plutocrática e degeneração moral. Em seguida, o programa proclama a chamada "Grande Limpeza", uma era de combate aos supostos traidores da nação que ocupam postos chaves na mídia, na burocracia, e de combate ao conformismo para a construção da Grande Rússia. Para realizar esta revolução, o programa estabelece a criação de um Exército Eurasiano e busca inflamar o orgulho eurasiano destacando as supostas virtudes dos povos da Eurásia, e promete de honrar os valores herdados de seus antepassados. Por fim, ele promete cumprir seu destino, de realizar a Revolução Eurasiana e estabelecer o Império Eurasiano, cujos membros viveriam as mais altas virtudes de honra e glória, clama pela criação de um país com um povo "alegre" e "impiedoso" e convida os jovens juntarem-se ao "coletivo eurasiano", que é a União da Juventude. Todo o programa do partido está fundamentada no pensamento de Dugin, cujas referências ficam claras na sua linguagem, nos inimigos a serem combatidos (EUA e as elites financeiras do Ocidente) e na promessa de resgatar e proteger as culturas dos povos da Eurásia.

(Vladimir Surkov com Vladimir Putin em 2006)

Os que acompanham este blog provavelmente têm uma ideia geral de quem seja Alexander Dugin, mas talvez desconheçam Vladimir Surkov.  Surkov foi vice-primeiro-ministro russo e assistente do presidente russo em assuntos internacionais, e é considerado um dos arquitetos da Rússia atual. Define a si mesmo como "um dos autores do sistema russo", é apelidado de "tecnólogo político de toda Rus[Russia]" e apresenta-se como firme adversário do Ocidente. Quando vice-chefe da administração, Surkov reunia-se com jornalistas russos e determinava o que deveria e o que não deveria ser dito e aparecer nas televisões do país, e estimulava a mídia a apresentar o Kremlin como um poder estável e confiável. Entre outras atividades, publicou obras literárias que expõem o caráter dúbio da moral pública russa, herança característica do período soviético e do qual Surkov é representante.

(Konstantin Malofeev)

Outro membro que também estaria envolvido na crise na Ucrânia é o oligarca Konstantin Malofeev. Ele é acusado por lideranças do Ocidente de financiar os combatente pró-Rússia no país vizinho, e consta na lista de sanções econômica do Canadá e União Europeia. às quais considera "muito estúpidas" e incapazes de atingir seus negócios. Malofeev é presidente da empresa de investimentos Marshall Capital e é descrito na mídia ocidental (o pouco que dele é divulgado) como o "Soros de Putin", numa alusão ao seu apoio financeiro aos projetos do Kremlin, e como o "oligarca de Deus", uma referência ao seu empenho em promover valores cristãos ortodoxos e a restauração da glória do antigo Império Russo. Entre suas ações constam o financiamento ao Congresso Mundial de Famílias, à disseminação de valores tradicionais (i.e. ortodoxos) através de sua Fundação São Basílio, o Grande, à lei contra a propaganda homossexual a menores na Rússia, ao controle da internet e aos rebeldes na Ucrânia.

(Strelkov, Malofeev e Dugin num encontro gravado em vídeo em local não identificado)

A conexão entre Malofeev e o círculo do Kremlin é estreita. Constam na sua lista de contatos o ex-ministro das Comunicações russo Igor Shchegolev, o chefe da estatal Russian Railways Vladimir Yakunin, o provável confessor pessoal de Vladimir Putin e chefe de um dos principais mosteiros da Rússia padre Tikhon, o tecnólogo político, ex-consultor público de Malofeev e ex-primeiro-ministro da autoproclamada "República Popular de Donetsk" Alexander Borodai, o membro do Principal Centro de Inteligência do Estado Maior Geral das Forças Armadas da Rússia e líder dos rebeldes pró-Rússia na Ucrânia Igor Girkin (conhecido como Igor Strelkov) e Alexander Dugin.

A Marshall Capital fornece financiamento a Fundação São Basílio. Nesta empresa, Igor Strelkov teria trabalhado há anos atrás, informação negada pelo oligarca. Strelkov também consta nas sanções econômicas impostas pelos EUA e União Europeia.

Malofeev, Strelkov e Borodai provavelmente formam uma íntima relação. Numa viagem à Ucrânia que teria como objetivo a exposição de relíquias ortodoxas, Malofeev visitou Kiev e teve sua proteção providenciada por Strelkov, que também é amigo de Borodai.


(Igor Girkin - ou Strelkov - líder militar dos combatentes pró-Rússia na Ucrânia)

O oligarca não poupa elogios a Strelkov, a quem chama de "um homem de ideais". Diz ainda que por suas ações na Ucrânia Strelkov seria um "herói de verdade". "Ele tem o espírito de um oficial russo. Como alguém que ama o Império Russo, eu só posso simpatizar com ele."  Dugin também verte muitos elogios e exalta a figura de Strelkov, a quem descreve  como "o mito russo" apresentando-o como modelo do homem russo "ideal", aquele que encarna a identidade da nação. Ele seria o "portador do arquétipo russo". "Ele somos nós", diz Dugin, o homem certo para combater com ódio o inimigo espiritual, numa alusão aos homens que encarnam o modo de vida do Ocidente. Tanto as declarações de Malofeev quanto às de Dugin dão a entender que ambos têm bom conhecimento de quem é Strelkov, que é abertamente apoiado por ambos.

A rede de relacionamentos que aproximam Dugin, Malofeev, Strelkov e Surkov do conflito na Ucrânia é complexa. O papel destes aponta que o governo russo delega para membros de seu círculo de relacionamento a responsabilidade de agir na Ucrânia, evitando a acusação de que Moscou estaria atuando diretamente no seu território. Este é o estratagema utilizado por Putin para afirmar repetidamente que a Rússia não está intervindo no país vizinho, o que equivale a dizer que uma quadrilha não invadiu uma casa porque delegou a outra quadrilha o assalto num acordo firmado por ambas as partes.

Dada a amplitude da rede russa vinculada ao Kremlin que está agindo na Ucrânia, é altamente improvável que ela tenha sido criada no período entre a derrubada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, em 22 de fevereiro de 2014, e o início da invasão da Crimeia por forças militares russas a partir da cidade portuária de Sevastopol quatro dias depois. Ela não apenas existia antes, a exemplo do acampamento de verão da União da Juventude Eurasiana, como pessoas como Strelkov já atuavam na área militar, atividade sem a qual seria impossível liderar uma milícia armada. Mais importante de tudo, porém, é a ideologia neo-eurasiana que move grupos como a União, o Movimento Eurasiano Internacional e uma série de representantes da política, das Forças Armadas e da mídia. Os ideais de restauração do antigo poder imperial russo, como apoiado abertamente pelos diversos projetos de Konstantin Malofeev, são instrumentos perfeitos para o programa expansionista do movimento eurasi eurasiano. O oligarca vê o conflito na Ucrânia como uma guerra num contexto cultural. A cultura é vista pelo movimento neo-eurasiano de Dugin como um dos fundamentos de formação das civilizações e, daí, de suas forças políticas. Para Malofeev não há diferenças entre russos e ucranianos. Ambos não formam povos distintos, mas um só, ideia também compartilhada pelos eurasianos.

Cabe observar que o povo e o território da Ucrânia são cruciais para a criação da Grande Rússia e do Império Eurasiano idealizado por Dugin, os combatentes na Ucrânia, os oligarcas do Kremlin e posto em prática por Putin. A julgar pelos princípios do Movimento Eurasiano, Moscou não descansará enquanto não realizar seus planos na Ucrânia e, daí, para o resto do mundo. A luta é muito mais profunda do que as sanções econômicas impostas pelo Ocidente a alguns membros do poder russo. Ela perpassa a conquista de corações e mentes e o movimento dos corpos para a batalha campal.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O "não" da Grécia, os BRICS e a vitória do Kremlin


(Os cinco líderes dos BRICS na cúpula em Ufá, Rússia)


Com a vitória do "não" dos gregos às medidas de austeridades pedidas pelos credores europeus no plebiscito realizado domingo passado, dia 5, nem a União Europeia nem a Grécia parecem ter ganhado com o resultado. Os credores não têm sua dívida paga e os gregos continuam endividados. A União Europeia, porém, enfraquece. Quem ganha com isso é o Kremlin.

Alguns movimentos políticos por parte da Rússia, do governo grego e do grupo dos BRICS apontam para esta direção.

Em 11 de maio passado o vice-ministro das Finanças da Rússia, Sergei Storchak, fez um convite por telefone ao primeiro-ministro grego Alexis Tsipras para que a Grécia participasse do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, anunciado no último encontro do grupo em julho de 2014 em Fortaleza. A reação de Tsipras foi de agradável surpresa ao convite, que seria levado em consideração por seu governo, que mostrou-se interessado na proposta. Na ocasião, Storchak também propôs que negócios e viagens de turismo de russos para a Grécia fossem feitos com moeda russa. A intenção, obviamente, seria fortalecer o rublo frente às moedas de outros países.

Em outra ocasião, no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, realizado entre os dias 18 e 20 de junho passados, Tsipras apareceu de surpresa. No seu discurso ele explicou porque estava em São Petersburgo e não em Bruxelas negociando a crise de seu país com os credores europeus.

(Discurso de Alexis Tsipras no Fórum Econômico Internacional, São Petersburgo, Rússia)

"...eu estou aqui exatamente porque eu penso que um país que quer examinar e explorar as possibilidades futuras, deve ter uma política multidimensional e se engajar com países que estão atualmente desempenhando um papel fundamental nos desenvolvimentos econômicos globais."

Em outras palavras, Tsipras afirma diplomaticamente que a Grécia está verificando as possibilidades de conseguir apoio fora da Europa, isto é, nos países emergentes. E dentre os emergentes, o país com o qual a Grécia tem maior proximidade histórica e cultural é a Rússia, a quem chamou de "amigo tradicional".

Além desta declaração, Tsipras destacou o caráter "multipolar" do mundo em ascensão, e afirmou que o "centro de gravidade da economia mundial" já mudou, saindo do Ocidente para os mercados emergentes, e condenou o "reavivamento de uma obsoleta Guerra Fria" como seu "ciclo de retóricas agressivas", militarização e sanções comerciais numa clara condenação à ação ocidental para com a Rússia sobre a crise na Ucrânia.

Num encontro paralelo ao fórum econômico, Putin e Tsipras acordaram a construção de um novo gasoduto para 2016. O acordo foi comentado aqui neste blog em junho. O Turkish Stream, que deve sair da costa sul russa no Mar Negro até a porção europeia da Turquia e, daí, para a Grécia, Albânia e Itália, é um projeto rival do plano ocidental do Southern Corridor, que liga os poços de petróleo e gás do Azerbaijão, no Mar Cáspio, atravessa a Geórgia e a Turquia e liga-se com o gasoduto Nabuco West na Bulgária. Ademais (e talvez mais importante), os governos russo e grego acordaram a divulgação de um memorando sobre planos futuros de negociação para o mês de novembro. A Rússia, porém, não anunciou qualquer ajuda econômica à Grécia.

(Comemoração em Atenas da vitória do "não" no referendo realizado em 5 de julho)
 
Com a crise grega sem solução, o governo organizou um plebiscito para que a população decidisse sobre o apoio ou não às medidas de austeridade propostas pelos credores europeus. O "não" venceu com 61% dos votos. A reação dos líderes europeus foi de respeito ao resultado, e as negociações continuam. Já Vladimir Putin ligou para Tsipras, declarou apoio à decisão do povo grego e pediu que se continuassem os esforços de negociação entre a Grécia e os credores para resolver a crise da dívida. A conversa também tratou de temas referentes aos dois países, como a possibilidade de investimentos russos no país europeu e o já mencionado gasoduto Turkish Stream. Tal conversa é mais um sinal claro de que Moscou pretende puxar Atenas para a sua esfera de influência caso o país saia da zona do euro ou mesmo bloco europeu. Apesar de tanto o apoio de Putin quanto à condenação das sanções contra a Rússia por parte de Tsipras ficarem principalmente na retórica, a aproximação política e os acordos econômicos entre os dois países têm se mostrado preocupante para os líderes da Europa.

Quanto aos BRICS, o encontro do grupo realizado entre anteontem (8/7) e hoje em Ufá, na Rússia, não prometia abordar a questão grega em sua declaração final, ainda que o tema seja discutido durante os encontros, como também não estava em pauta uma ajuda financeira à Grécia. O foco da cúpula são o fortalecimento do grupo, a maior  integração econômica entre seus membros e a criação do Novo Banco de Desenvolvimento. De qualquer forma, quando o tema é Grécia, dentre os membros do BRICS é a Rússia quem levanta a discussão.

Ainda que a possibilidade de entrada da Grécia no NBD fique apenas no discurso, há negociações efetivas para ajudar o país europeu. Além dos negócios e investimentos da Rússia, a China tem negociado diretamente com o governo grego a crise de sua dívida e indicado a possibilidade de investimentos no país. É evidente que o movimento do governo de Pequim está em acordo com Moscou, já que ambos participam não só dos BRICS como da Organização para Cooperação de Shanghai, criada em 2001 com o objetivo de integrar econômica e militarmente China, Rússia e países da Ásia Central. Ambos países têm interesse não apenas na questão da segurança na Ásia, mas também que a crise da Grécia não venha afetar de forma ainda mais séria a Europa e, por consequência, piorar a situação da economia russa, cujas previsões são de retração do seu PIB para 2015 está na ordem de 3%.

Ainda que a possibilidade da Grécia de se juntar ao NBD dos BRICS seja alvo de uma crítica irônica do economista criador da sigla de dá nome ao grupo, John O´Neill, não pode ser descartada uma ajuda econômica ao país, e muito menos a possibilidade de grandes investimentos vindos de fora da União Europeia. Isso explica em parte as persistentes críticas do governo grego às sanções ocidentais à Rússia devido à crise na Ucrânia. O´Neill tem razão quando diz que a Grécia não cumpre os requisitos para participar de um banco para países emergentes. A Grécia não é emergente, e não tem qualquer condição econômica de contribuir com um banco cujo financiamento anual por parte de seus fundadores será de U$ 10 bilhões. O interesse da participação grega no banco parte principalmente da Rússia, mas o economista questiona o que os demais membros do BRICS teriam a ganhar com integração de um membro estranho à formação original do grupo. Apesar de todas essas questões, a tendência é de que uma possível participação da Grécia no novo banco ainda seja discutida.

Além do interesse econômico por parte dos BRICS de evitar que a crise na Europa se agrave, a Rússia, como já comentei neste blog (aqui e aqui), também não quer ver sua estratégia de liderança na Eurásia ser atingida com a perda de um acesso à política interna da União Europeia através da Grécia (temos que lembrar que o Syriza, coalizão de extrema-esquerda que governa a Grécia, é aliado político e estratégico do Kremlin). Apesar de Atenas ter feito pouco para frear as sanções do bloco contra Moscou, ela continua integrada e participativa nas suas decisões. Ao mesmo tempo, a Grécia se aproxima de instituições alternativas ao modelo europeu, podendo jogar, nas palavras de Tsipras, através de uma política "multivetorial". Por fim, a União Europeia se vê enfraquecida de forma direta não apenas pela crise grega, mas pela postergação de sua solução e pela a aproximação da Grécia com parceiros fora da Europa, e de forma relativa pelo fortalecimento do BRICS que, capitaneados pela Rússia e a China, poderá ser usado como mecanismo de sedução e caminho alternativo aos países que rejeitem os projetos ocidentais.

A diplomacia silenciosa da China, sua distância da Europa e, claro, o foco do tema deste blog não permite afirmar o quanto a questão grega significa para Pequim. Mas uma coisa é evidente: nem a Grécia e muito menos a Europa saem ganhando com o desenrolar dos últimos acontecimentos. Quem ganha é o Kremlin, que busca enfraquecer o bloco europeu utilizando os mecanismos de competição do BRICS, as negociações diretas com Atenas e tentativa de cooptar aliados através de negociações secretas com lideranças que são ao mesmo tempo críticas à forma atual da União Europeia e simpáticas à Moscou.

Assim como a Ucrânia, a Grécia é pivô de uma luta entre Ocidente e Rússia, não pela via militar, mas pela via econômica e política. Assim fica claro porque, apesar da dívida, Bruxelas não desiste de negociar com Atenas. Os europeus correm o risco de ficar não apenas sem o dinheiro da dívida, mas também sem um país aliado dentro do seu próprio continente.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

A nova ordem mundial russa e seus parceiros

                           (Marine Le Pen, líder da Frente Nacional da França, e Vladimir Putin)

No breve artigo Russia´s Bedfellowing Policy and the European Far Right, publicado no Russian Analytical Digest (nº 167 de 06 de maio de 2015), a professora de Relações Internacionais da Universidade Georgetown Marlene Laruelle analisa a estratégia geral do governo da Rússia no aliciamento de "parceiros" dentro da Europa.

No segundo mandato de Vladimir Putin (2004-2008) o governo russo, aproveitando o boom econômico que o país vivia com os elevados ganhos no comércio de gás e petróleo, investiu pesado na promoção de sua globalização. Grande parte da herança da vasta rede de contatos do período soviético que existia ao redor do mundo, como os partidos comunistas, havia se retraído com o fim do regime e a subsequente crise econômica dos anos 90 do século XX. Com a volta da prosperidade econômica, o governo passou a investir em canais de televisão, rádio, grupos internacionais de discussões acadêmicas e fundações de promoção de "valores russos" com a finalidade de formar uma ordem mundial alternativa à ocidental tendo como referência a Rússia.

Hoje o país busca novos parceiros no exterior, principalmente na Europa, para estender os braços de sua nova ordem. Como diz Laruelle:

"Essa política de 'parceria' tem sido construída sobre uma agenda ideológica que leva algum tempo para se desenvolver. Ela pode ser brevemente definida a seguir: a Rússia denuncia a hipocrisia e os duplos padrões da ordem mundial ocidental, que pretende que os países ocidentais, especialmente os Estados Unidos, promovam uma agenda idealista de promoção da democracia, direitos humanos, e o direito de intervir em questões humanitárias. Entretanto, a política externa de Washington, insiste a Rússia, é de fato baseada em interesses puramente realistas e estratégicos: ela busca preservar a supremacia de suas capacidades militar, financeira e industrial, para manter seus aliados - Europa, Japão, Israel - numa situação de dependência de segurança, e para garantir que não haja qualquer competição que surja de países ou blocos regionais." (Tradução livre.)

(Encontro dos BRICS em Fortaleza, Brasil, em julho de 2014.)

A Rússia, continua Laruelle, afirma que todo a atual ordem mundial busca favorecer os EUA legal e financeiramente, além de garantir aos americanos o domínio das informações através do sediamento de servidores da internet. "Por outro lado", diz a professora, "a Rússia busca denunciar essa forma de realpolitik, e estabelecer alternativas ao domínio global americano", como os BRICS, a Organização para a Cooperação de Shanghai, posições assertivas junto à ONU, a confrontação à OTAN, o apoio a regimes opositores do Ocidente (como Síria e Coréia do Norte) e políticas que desafiem a supremacia americana na indústria aeroespacial e de informação. Isso tudo, claro, serve aos próprio objetivos estratégicos da Rússia, a exemplo de sua busca de uma parceria estratégica com a China.

(Membros, observadores e parceiros da Organização Cooperação de Shanghai.)

A criação de mídias russas, como a Russian Today e a Sputnik, colocadas aqui neste blog, são exemplos explícitos dessa empreitada. Da mesma forma o patrocínio das grandes fortunas dos oligarcas russos íntimos do governo a eventos como o Congresso Mundial das Famílias mostram que uma intricada teia de relacionamentos entre políticos, multibilionários, intelectuais e organizações acadêmicas, políticas e sociais estão criando uma rede centrada no Kremlin e promovendo uma agenda ideológica ao nível internacional. Toda essa estrutura visa, em última instância, combater e substituir, segundo a linguagem eurasiana, a "unipolaridade" do poder global norte-americano pela "multiporalidade" liderada pela Rússia.


(Canal de televisão da Russia Today - RT. O sugestivo título da notícia faz referência ao Grupo Bilderberg, composto por bilionários e líderes políticos ocidentais.)

Interessante notar que a aliança que o governo de Moscou busca com a extrema-direita e fascistas na Europa, como também com a extrema-esquerda, baseia-se numa postura crítica que tanto os líderes russos quanto tais grupos europeus têm a respeito do papel dos EUA no mundo, da atual organização da União Europeia, da democracia ocidental e do liberalismo nos valores morais (com exceção da extrema-esquerda neste último ponto). A extrema-direita, porém, não constitui um bloco monolítico pró-Rússia, sendo alguns deles anti-russos, especialmente os grupos nacionalistas de países que já estiveram sob o domínio de Moscou nos tempos soviéticos, como os da Europa Oriental e Ucrânia. Dessa forma, a Rússia consegue aliança com extremistas que estão fora do mainstream da política europeia e busca, através de contatos, reuniões e grupos de discussão, traze-los para o centro do cenário político com a finalidade de torna-los palatáveis às democracias ocidentais. Ao mesmo tempo, enquanto o governo russo tem se esforçado para, de um lado, promover grupos fascistas na Europa e, do outro ele combate grupos de mesma linha ideológica na Ucrânia. Como diz Laruelle:

"O Kremlin está, portanto, desempenhando uma ação de difícil equilíbrio. Ele denuncia o papel do ultranacionalismo na revolução Euro-Maidan e a influência de grupos neofascistas na Ucrânia, enquanto que partidos com ideologia similar, mas pró-Rússia, são apresentados como autênticos representantes dos valores conservadores europeus." (Tradução livre.)

Podemos concluir do comentário da autora que, se para os EUA valem o princípio de dois pesos, duas medidas na hora de aplicar sua política de interesses estratégicos, exatamente o mesmo vale para a Rússia na sua estratégia de influenciar a política europeia e, numa dimensão mais ampla, a política global. Apesar do jogo russo ter como principal arena a Europa, sua pretensão não é meramente regional. A eurásia é o seu trampolim para o mundo.