(Navio da empresa americana Cheniere com tanques de gás natural liquefeito chegando ao porto de Sines, Portugal, dia 26 de abril. )
A revista bimensal New Eastern Europe, especializada em assuntos políticos, econômicos e sociais da Europa Central e Oriental, publicou um breve artigo sobre o fim do quase-monopólio da empresa russa Gazprom sobre o gás vendido à Europa. Segundo o texto, o aumento da produção de gás natural pelos Estado Unidos está estimulando a exportação do produto em forma líquida para a Europa Ocidental. O país já é o maior produtor de gás natural do mundo, ultrapassando a Rússia.
O evento que marcou esta empreitada norte-americana foi a chegada do primeiro carregamento de gás natural liquefeito ao porto de Sines, em Portugal, no dia 26 de abril passado. O navio pertence à empresa Chemiere, que pela primeira vez vende o produto à Europa depois de atender Brasil, Argentina e Índia.
Segundo o artigo da New Eastern a presidência da Gazprom recebeu com relativa indiferença a entrada do gás natural liquefeito na Europa por parte dos americanos, e anunciou que baixará o preço para a venda do gás natural para o continente numa clara tentativa de combater a nova concorrência. Mas se a Rússia, que vende 1/3 de todo o gás natural consumido pela Europa (ver pág. 35-38) tendo o monopólio da venda em alguns países de sua porção oriental, por que ela deveria temer a entrada dos EUA que está vendendo o gás em forma líquida, mais caro do que o russo? E por que o artigo aqui discutido está se apressando em falar do fim do quase-monopólio da Gazprom sobre a Europa?
(Preço do gás natural liquefeito: vendido à Ásia em vermelho; vendido à Europa em azul. Do início de 2014 até agora, a diferença de lucro na venda para os dois continentes é pequena.)
A questão não é a situação atual, mas a perspectiva do mercado mundial de gás natural num futuro próximo. Segundo a New Eastern, dezenove países do mundo já são exportadores mundiais de gás natural liquefeito, o número de exportadores aumentará, o mercado continua em expansão e a tecnologia para a conversão e transporte do gás em forma líquida está barateando. Ademais, com a desaceleração da economia asiática, principalmente a China, e o aumento da produção americana o preço do produto está caindo em todo o planeta.
Isto trás duas consequências diretas para o mercado do gás: diminui a receita da Gazprom e a demanda do produto na Ásia, tornando a Europa mais atrativa para as exportações dos EUA. A previsão é de que 55% de todo o gás natural produzido pelos EUA seja destinado à Europa. Do lado europeu, a previsão é de que o continente aumente ainda mais a demanda pelo gás: em 2013, 65% do gás natural consumido pela União Europeia era importado. Este número deve subir para 77% em 2025. Mesmo que o aumento da demanda signifique a expansão do mercado tanto para os EUA como para a Rússia, o forte investimento americano na produção e no transporte do produto provocará um aumento da concorrência entre os dois países.
(Gasodutos para a Europa: projeto da Gazprom no pontilhado preto; projeto ocidental no pontilhado azul claro. Agora a concorrência amplia-se para o outro lado do continente europeu.)
Isto pode mudar a geopolítica energética da Europa num curto prazo, talvez mesmo de toda a Eurásia, já que a Rússia também abastece o mercado asiático e terá de reconsiderar sua estratégia de venda para outros países num contexto de queda no preço do produto e de busca por novos mercados.
O mais importante, porém, será a diminuição da capacidade da Rússia de usar o gás como arma política contra a Europa. A nova geopolítica terá impacto nos projetos já comentados neste blog, de gasodutos que interligam Rússia e Europa e de gasodutos conduzidos pelos países do Ocidente com a finalidade de competir com o gás russo extraindo o produto do Mar Cáspio pelo Cáucaso. A disputa, portanto, terá como consequência uma maior queda do preço do produto, o aumento das dificuldades econômicas da Rússia e menores investimentos nesta corrida vinda do leste. É um exagero falar no fim do monopólio da Gazprom sobre a venda do gás à Europa como um todo, mesmo porque a Rússia concede apenas 1/3 do gás consumido por todo o continente, sendo o restante vindo principalmente do Oriente Médio, Argélia e Noruega. O monopólio ameaçado está na parte oriental do continente. O que deve ocorrer, isto sim, é a ampliação da geopolítica energética e a oscilação de seu pêndulo para o Oceano Atlântico e a consequente diminuição da capacidade russa de influenciar a política europeia através da manipulação de preços e da oferta de gás, como ocorreu em 2006 e 2009 nas disputas envolvendo a Ucrânia. A nova preocupação da Rússia está do outro lado da Europa.
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