quinta-feira, 16 de março de 2017

Trump sobre a Ucrânia: ele sabia o que realmente estava dizendo?

(O então candidato Trump na entrevista com Stephanopoulos, em julho de 2016.)

Numa entrevista realizada pelo jornalista da rede americana ABC, George Stephanopoulos, o então candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, foi confrontado a responder sobre sua possível relação pessoal com Vladimir Putin e como pretendia reagir à anexação da Crimeia pela Rússia e à crise que se seguiu. A entrevista foi realizada em julho de 2016 e causou muita controvérsia principalmente sobre as respostas de Trump sobre a Ucrânia.

No livro Who Lost Russia? How the World Entered a New Cold War, do jornalista britânico e editor internacional do The Sunday Times, Peter Conradi, há um parágrafo onde o autor resume as repostas de Trump sobre o tema:

"Dúvidas sobre Trump foram alimentadas por uma curiosa entrevista na televisão em julho de 2016 em que Trump declarou sobre Putin: 'Ele não está entrando na Ucrânia, ok, só para você entender. Ele não está entrando na Ucrânia, tudo bem?' Questionado por George Stephanopoulos se ele percebia que Putin 'já estava lá', Trump respondeu, 'Ok - bem, ele está lá de alguma forma.' Mais significativa foi a promessa de Trump de 'dar uma olhada' sobre o reconhecimento da tomada da Crimeia pela Rússia. 'Sabe, o povo da Crimeia, pelo o que eu tenho ouvido, gostaria mais de estar com a Rússia do que onde eles estavam', disse. Trump tentou esclarecer sua posição sobre o conflito entre a Ucrânia e a Rússia numa série de tweets na manhã seguinte, depois que ele foi criticado por sua resposta confusa, mas não voltou atrás na suas ideias sobre a Crimeia." (p. 316-317, tradução livre)

Observando a entrevista na íntegra e prestando atenção no trecho em que ele aborda o tema aqui discutido (entre 6:01 e 7:23 do vídeo), é possível perceber que Trump não é claro e mostra-se relativamente inseguro ao dar respostas rápidas sobre a Ucrânia. Depois de dizer claramente que Putin não estava penetrando no país vizinho e ser questionado diretamente por Stephanopoulos que, sim, ele estava entrando lá, Trump respondeu, de forma pouco convincente, que o presidente russo estava lá "de alguma forma", denotando não saber da questão ou evitar um confronto verbal com Putin e suas propostas de campanha. A presença russa na Ucrânia é amplamente reconhecida pela academia no Ocidente, como já comentei neste blog e como mostra a recente divulgação de telefonemas entre um assessor do Kremlin e aliados políticos na Ucrânia, além do próprio Conradi.

 (Trump tentando esclarecer suas declarações na entrevista: "Quando eu disse numa entrevista que Putin 'não está entrando na Ucrânia, você pode anotar,' eu estou dizendo se eu fosse presidente. [Putin] já está na Crimeia!" Sua explicação não convenceu os críticos.)

Ao dizer que iria "dar uma olhada" sobre o reconhecimento da anexação da Crimeia, Trump foi vago sobre a questão. No momento ele havia sido confrontado por Stephanopoulos, que lembrou sua posição sobre um possível reconhecimento da Crimeia como parte da Rússia. "Dar uma olhada" e afirmar por terceiros que a população da península preferiria estar com a Rússia do que com a Ucrânia denota possível falta de conhecimento sobre os detalhes e as reais implicações do problema. A anexação da Crimeia envolve direito internacional, desafio à ordem mundial pós-Segunda Guerra e também a opinião pública da península, majoritariamente habitada por russos étnicos e historicamente pró-Rússia. Apesar de Trump reconhecer a existência de uma opinião pública pró-Rússia, a equação não é simples, dado que o referendo realizado em 16 de março de 2014 e que oficializou a anexação da região ocorreu sob ocupação militar, colocando em cheque a legitimidade do referendo e abrindo um precedente para novas intervenções do tipo.


(Sergei Lavrov e a então Secretária de Estado de Obama, Hillary Clinton, num encontro em Genebra em 6 de março de 2009 com o objetivo de renovar as relações entre Moscou e Washington. O botão deveria ter a palavra "reset" escrita na caixa em inglês e russo. A tradução russa, porém, estava errada: escreveram "sobrecarga" no lugar de "reset", um prenúncio do que estava por vir.)

Conradi lembra no seu livro que o reset do governo Obama com a Rússia a partir de março de 2009 com o objetivo de melhorar as relações entre os dois países foi um desastre, e que a atitude de Washington de não confrontar diretamente a Rússia em crises internacionais como na Ucrânia e na Síria encorajou Moscou a seguir adiante com o projeto de restauração de seu status de superpotência, principalmente a partir do terceiro mandado de Putin (2012-2018). Trump foi claro e direto nas crítica à Obama e na "bagunça" em que se tornou a Ucrânia (termo usado por ele na entrevista) durante sua presidência, mesmo tendo a OTAN à sua disposição.

Trump também foi questionado por quê ele abrandou a política oficial do Partido Republicano sobre a Ucrânia, referindo-se à discussão sobre ajuda ao país com armas letais na guerra contra os separatistas pró-Rússia. O candidato respondendo diversas vezes que "não estava envolvido" nesta decisão e que apenas sabia deste abrandamento. Sua promessa era de "dar uma olhada" no seu conteúdo. A questão voltou à tona recentemente quando um dos membros da Convenção Nacional Republicana afirmou que Trump estava no evento e que teria pedido para que o partido não jogasse os EUA numa "Terceira Guerra Mundial" numa disputa pela Ucrânia. Este abrandamento também seria uma forma de alinhar o partido com a proposta do candidato de diminuir as tensões com a Rússia.


(O livro de Peter Conradi: a dúvida se a Rússia pós-URSS deveria ser tratada como uma potência vencida ou um parceiro em pé de igualdade, a persistência da mentalidade da Guerra Fria, a expansão da OTAN, a paranoia de Putin sobre as "Revolução Coloridas" e a falta de pulso do Ocidente frente às investidas de Moscou ocorreram devido ao que o autor chamou de "incompreensões fundamentais" de ambos os lados, resultando na situação atual.
Quadro difícil para Donald Trump.)

Esta entrevista ajuda a explicar as críticas e preocupações com Trump já que, na época, ele era o possível ocupante da Casa Branca, e que as relações com a Rússia estavam (e ainda estão) entre as prioridades do governo americano. Suas respostas sobre a Ucrânia apontam para duas questões: um relativo desconhecimento da crise neste país e a intenção de evitar críticas incisivas a Putin com o objetivo de evitar tensões com a Rússia e não entrar em contradição com suas propostas de campanha. Apesar das incertezas sobre o que faria na presidência, Trump deu claros sinais de compromisso com a OTAN e de apoio à Ucrânia com a nomeação de James Mattis como secretário de defesa, firme apoiador da organização, e a explícita condenação da anexação da Crimeia na ONU. Quanto às sanções à Rússia, estas foram renovadas em 2 de fevereiro, mas seu futuro ainda é discutível dado o pequeno alívio às sanções pelo Tesouro americano e às possíveis estratégias que Trump poderá adotar para aliviar as tensões com Moscou.

O governo Trump está recém no início e ainda é cedo para afirmar como lidará com a Rússia no longo prazo e como a Ucrânia se encaixará nesta equação.

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