(Quadro "Retrato de Uma Mulher Desconhecida", de Ivan Kramskoi. Pintura está exposta na Galeria Tretyakov, em Moscou.)
Há algumas semanas atrás fiquei muito impressionado quando via a imagem do quadro reproduzido acima. Seu nome é "Retrato de uma Mulher Desconhecida", do pintor russo Ivan Kramskoi, de 1883. Quando abri a tela parecia que estava em frente a uma mulher de verdade. Seu olhar profundo mistura arrogância com sedução, e ficam mais acentuados pelo contraste do rosto com a vestimenta escura e o ambiente nivoso ao fundo. Parecia que a mulher saltaria do quadro para falar comigo ou ir além de uma mera conversa.
Kramskoi fazia parte de "Os Itinerantes", grupo de pintores russos que buscava educar o povo pela arte, viajando e realizando exposições de suas obras no interior da Rússia. Segundo Orlando Figes no livro Uma história cultural da Rússia, no início da década de 1860 estes pintores se afastaram da Academia de Artes de São Petersburgo (hoje academia Imperial de Artes) e, rejeitando o classicismo europeu desta escola, passaram a trabalhar com aquilo que o autor chama de "estilo russo", inspirando-se nas tradições folclórica e religiosa do povo. A retirada ocorreu com a rebelião de catorze estudantes da academia que ficaram conhecidos como "Vagantes", liderados com Kramskoi, que exigiam liberdade de escolha no conteúdo das pinturas. Muitos artistas desta corrente trabalharam na Escola de Artes Stroganov (hoje Universidade Estatal de Moscou de Artes e Indústria Stroganov), que recebia pessoas de variadas classes sociais e que, portanto, conheciam a diversidade da sociedade russa. Eles eram patrocinados pelos grandes mercadores da emergente Moscou, entre eles Pavel Tretyakov, magnata do setor de ferrovias e colecionador de arte russa que dá nome à galeria onde está o quadro de Kramskoi. O pintor russo foi um dos patrocinados por Tretyakov e era importante retratista da época, tendo reproduzido personalidades do meio cultural como o escritor russo Lev Tostoy e poeta ucraniano Taras Shevchenko, além do czar Alexandre III. Nas palavras de Figes, Kromskoi "pintava contra um pano de fundo simples e se concentrava no rosto, atraindo os espectadores para os olhos e forçando-os a penetrar no mundo interior das pessoas que ontem mesmo tinha tratado como escravas" (p. 296). O autor faz referência ao regime de servidão que vigorou na Rússia até sua abolição pelo czar Alexandre II em 1861.
Na época de Kramskoi toda a intelectualidade russa estava obcecada por compreender o camponês, descobrir a identidade de seu povo e responder à questão: "quem somos nós?". A pergunta atravessou a totalidade do século XIX e, apesar da supressão do regime soviético ao longo do século XX, a busca por uma resposta continuou com os eslavófilos e eurasianistas e se mantém até hoje. Esta dúvida veio com força à tona com a invasão da Rússia por Napoleão em 1812, fazendo desmoronar a ideia de uma Europa como fonte de civilização, o que levou os primeiros artistas e intelectuais russos a questionar a verdadeira identidade de seu povo e o caminho que a Rússia deveria seguir no futuro. Mas a questão já começara a aflorar um pouco antes, em torno de 1800, época em que germinava uma cultura "nacional" russa ainda dominada pela imagem idealizada da Europa. Na visão dos primeiros artistas, a corte imperial e sua cidade europeizada, São Petersburgo, eram artificiais e estranhas à cultura russa. Sátiras e peças teatrais buscavam identificar quem era o "russo" em contraste com o habitante europeu. Nas palavras de Orlando Figes:
"Contra o pano de fundo dessa dominação pela Europa, sátiras (...) começaram a definir o caráter russo em termos distintos dos valores do Ocidente. Esses escritores estabeleceram a antítese entre o artifício estrangeiro e a verdade nativa, razão europeia e coração da 'alma' russa que seria base da narrativa nacional do século XIX. No âmago desse discurso estava o antigo ideal romântico do solo nativo - de uma Rússia 'orgânica' e pura, e não corrompida pela civilização. São Petersburgo era apenas engano e vaidade, um dândi narcisista a observar o tempo todo o seu reflexo no rio Neva. A Rússia real ficava nas províncias, um lugar sem pretensões nem convenções estrangeiras onde as simples virtudes 'russas' se mantinham preservadas." (p. 96)
A figura da mulher desconhecida não era uma camponesa, nem mesmo uma "cidadã" comum como concebemos na sociedade moderna. A julgar pela época e o pano de fundo do quadro, a mulher lembra uma nobre ou membro da classe emergente de comerciantes. Mas esta é parte da Rússia "verdadeira", para utilizar uma palavra que possa definir o ideal almejado pelos artistas russos do século XIX. Apesar de não ser camponesa, a mulher desconhecida compõe parte da síntese nacional sonhada por estes artistas e, mais especificamente, por movimentos como o populista e o "solo nativo". O primeiro surgiu em 1874 e atuou junto aos camponeses promovendo a educação, as artes e o ativismo político de perfil socialista e tinha como objetivo levar a Rússia ao desenvolvimento combinando uma via europeia com as tradições do povo; o segundo, surgido na mesma época, era um movimento cultural composto por escritores que publicavam textos onde exaltavam a unidade nacional e apelavam aos artistas para que retratassem a vida do povo e levassem a eles a cultura do Ocidente. Os populistas e membros do "solo nativo" queriam unir as diferentes partes da sociedade numa única nação, realizar a síntese nacional entre o nobre e o camponês.
O quadro de Kramskoi oferece um mergulho na alma russa através do olhar belo e sedutor da mulher desconhecida, rosto este que nos oferece uma faceta de uma nação multifacetada. É uma tentativa de traduzir o que Kramskoi viu nas ruas ao sondar a pergunta "quem somos nós?" A arte tem esta força, de vermos a realidade do outro, de um povo distante, como se lá estivéssemos e fizéssemos parte de sua identidade.
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