sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Fórum Conservador Russo: a tradição messiânica da Rússia e a estratégia conservadora


          A imagem acima é o logotipo do Fórum Conservador Russo Internacional, um evento que reuniu lideranças políticas europeias na Rússia em 2014 e 2015. Ao centro Nossa Senhora traz o Menino Jesus nos braços sobre o símbolo bizantino da águia bicéfala. A águia foi adotada pelo Grão-Duque de Moscóvia, Ivan III, e representa a união entre o poder espiritual e temporal da Rússia. O reino, que viria a se tornar Império Russo no reinado de Ivan IV, o Terrível, atribuía a si o legado do Império Bizantino. Os bizantinos desenvolveram o conceito de harmonia, o casamento perfeito entre Igreja e Estado, representada pelas duas cabeças da águia unidas a um mesmo corpo. Na proclamação e coroação de Ivan IV como czar em 1547, o rito declarou abertamente que a Rússia era a "Terceira Roma", transformando a doutrina que circulava entre os reinos eslavos pelo menos um século antes em elemento do poder de Estado. E era necessário que um "autocrata eleito por Deus" governasse com firmeza seu reino para que este cumprisse seu papel escatológico. A Rússia estava destinada por Deus a proteger e guiar a Cristandade, que teria sido traída pela heresia de Roma com o cisma de 1054 e derrotada em Constantinopla pelos muçulmanos em 1453. A única forma do czar cumprir tão grandiosa tarefa era ser divinamente inspirado. Deus era a fonte de sua legitimidade, que se sustentaria até a Revolução de 1917.

          Aos pés da águia bicéfala estão de um lado o cetro, símbolo de autoridade, e do outro o globo terrestre. A alusão é clara: a Rússia tem a função divina não apenas de guiar a Cristandade, mas o mundo todo, toda a criação. Daí a figura do sol ao fundo, a luz, Deus, fonte de todas as coisas e sob qual todas as coisas se submetem. O sol abraça e abençoa toda a criação, tendo a Rússia a autoridade sobre o mundo como protetora e guia da Cristandade. Por fim, Nossa Senhora, que é a principal intercessora junto à Deus no cristianismo e a quem o cristianismo ortodoxo russo possui particular e profunda devoção, apresenta-se como elo entre a Rússia que está representada pela a águia detrás dela e Deus que está em seus braços na Pessoa de Jesus.  

          A síntese da imagem é a liderança mundial pela Rússia, autoridade política e espiritual do mundo, guiada por Deus através das mãos de Nossa Senhora.

          O Fórum Conservador Russo Internacional já traz no nome sua pretensão: ser russo e internacional ao mesmo tempo, dando destaque ao papel da Rússia na liderança de uma nova ordem mundial construída sobre os escombros da atual. Ao sediar um evento deste tipo, o país está assumindo este papel, ao exemplo do que diz o comunicado sobre a missão do Fórum:

"Vemos quantos países euro-atlânticos realmente tomaram o caminho para rejeitar suas raízes, incluindo os valores cristãos que constituem a base da civilização ocidental. Princípios morais contrários a qualquer identidade tradicional - nacional, cultural, religiosa ou mesmo sexual. Existe uma política que coloca uma família e uma união homossexual no mesmo nível, [como se] a fé em Deus ou a fé em Satanás [fossem equivalentes]. Os excessos do politicamente correto vão tão longe que estão discutindo seriamente em criar eventos que visam propagar a pedofilia. As pessoas em muitos países europeus estão envergonhadas e com medo de falar sobre sua filiação religiosa. Os feriados podem ser cancelados ou são apresentados como algo vergonhoso, escondendo a essência desses feriados, sua base moral. E este modelo está tentando se impor agressivamente a todos, o mundo inteiro. Estamos convencidos de que este é um caminho direto para a degradação e a primitivização, uma profunda crise demográfica e moral. O que mais pode ser evidente de uma crise moral se não a perda da capacidade [da população] de auto-reprodução [?]. E hoje quase todos os países desenvolvidos não conseguem crescer mesmo com a ajuda da migração. Sem os valores estabelecidos no cristianismo e em outras religiões mundiais, sem as normais morais que foram formadas por milhares de anos, as pessoas inevitavelmente perderão a dignidade humana. E consideramos natural e corretos proteger esses valores." *

          Em seguida a esta declaração, o site do Fórum segue com um discurso de Vladimir Putin aos participantes do Clube Valdai, em setembro de 2013, onde o presidente defende os valores tradicionais, afirma que o Estado poderia ser um parceiro nesta defesa e alerta para a ameaça da perda de soberania dos países ocidentais. O Clube Valdai é um think thank vinculado ao Kremlin e voltado à pesquisa de política externa da Rússia, e todos os anos recebe a participação de Putin.


(Um dos eventos do Fórum em São Petersburgo, Rússia, 21-22 de março de 2015. Esta foi a foto do Fórum mais divulgada pela imprensa ocidental.)

          O Fórum tem como missão criar um novo conceito de desenvolvimento humano em resposta ao liberalismo do Ocidente, integrar as organizações políticas conservadoras e fortalecer os vínculos comerciais, culturais e espirituais estabelecidos historicamente entre a Rússia e a Europa. Tomado como um congresso científico, seu público-alvo são as organizações públicas, políticas e patriotas russas e estrangeiras, representantes dos governos regionais, nacional e de universidades, cientistas russos, especialistas em História, Sociologia, Demografia, Direito, Economia, Finanças e membros da indústria. A intenção é influenciar organizações políticas e sociais da Rússia e do exterior, além de figuras públicas das áreas citadas anteriormente, escritores e personalidades públicas.

          O evento de 2015 ocorreu entre os dias 21 e 22 de março no Hotel Holiday Inn, em São Petersburgo, e foi organizado pelo Centro Cultural Nacional Russo - Casa do Povo, organização voltada à promoção da cultura russa. A iniciativa veio do partido Rodina, do vice-primeiro-ministro russo Dmitry Rogozin. Segundo um comunicado oficial do governo britânico, participaram membros da direita e da extrema-direita da Alemanha, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Grécia, Itália, Reino Unido e Suécia. Não houve, porém, a participação de políticos do governo russo. Os participantes são principalmente partidos políticos e lideranças políticas e militares que se alinham à proposta do Fórum, como os partidos Ataka da Bulgária, Golden Dawn da Grécia, Fuerza Nuova da Itália e a organização política europeia Aliança pela Paz e Liberdade. (O Partido da Liberdade da Áustria, que havia firmado um acordo de cooperação com o Rússia Unida, partido de Putin, e havia confirmado a presença no Fórum, decidiu de última hora não ir.) Estes partidos possuem simpatia à Rússia e à liderança do Kremlin. Dentre os participantes do Fórum havia também pessoas de perfil neo-nazista e antissemita.

          Ao final do encontro foi divulgada a Resolução dos Participantes, que inicia com a declaração de lamento à destruição dos "valores morais europeus". O texto apresenta sete pontos defendidos pelo membros: 1) a criação uma "nova ordem livre, multipolar e progressista" (principal objetivo do Fórum), a defesa a soberania dos países e o conservadorismo como a melhor forma de atividade social existente; 2) a promoção, através dos partidos e do Parlamento Europeu, dos valores cristãos e propagá-los às massas, a melhora das relações com o Ocidente e o fim da "Guerra Fria" promovida contra a Rússia; 3) a criação um sistema de segurança coletivo na Europa alheio à OTAN, que se transformou em instrumento de uma ditadura, a saída das tropas americanas do continente e a rejeição das intervenções das forças ocidentais em outros países; 4) a Rússia é sucessora legítima da União Soviética e do Império Russo e agora é parte integral das tradições europeias e de sua família estendida; 5) Europa e Rússia possuem um caminho próprio e devem ser libertos do poder americano. O principal exemplo disto é o conflito da Ucrânia, que vê como um problema interno, mas considera que parte de seu território foi artificialmente separado da Rússia, é habitado por russos e pede que o Ocidente pare de apoiar o governo de Kiev; 6) a condenação das sanções contra a Rússia e que prejudicam também a Europa, e o desejo de estimular o comércio entre as duas regiões para transformá-las novamente no centro de progresso da humanidade; 7) por fim, a tarefa mais importante é estimular o crescimento demográfico através do retorno da população aos valores tradicionais, e também intervir mais rapidamente para melhorar a vida urbana e a saúde das pessoas. A Resolução encerra pedindo que as organizações participantes ajam de forma coordenada para atingir estes objetivos.

          O documento repete algumas vezes que os membros do Fórum são "conservadores" e nos objetivos ficam evidentes as referências ao papel especial da Rússia no mundo (a dualidade Rússia-Europa mencionada repetidamente reforça esta ideia).

          O fato do Fórum utilizar um logotipo de forte carga religiosa não significa necessariamente a divinização do evento nem sua pretensão messiânica (o mesmo poderia ser dito, por exemplo, da bandeira do Brasil, cujo lema positivista "Ordem em Progresso" nela inscrito não faz deste país um agente ativo na promoção da filosofia positivista pelo mundo, que promete uma nova era de paz e progresso para a humanidade). Porém, sua simbologia e atuação inserem-se na tradição messiânica da Rússia. A exemplo do que comentei em uma outra postagem neste blog, a Rússia de hoje continua a reproduzir esta tradição com o objetivo de criar uma nova ordem mundial sob os escombros da atual. Seja sob a autoridade divina dos czares, seja sob a divinização do Partido e do triunfalismo comunista, seja sob a escatologia do atual Movimento Eurasiano, o messianismo russo mantém vivo em projetos políticos planetários voltados à formação de uma nova humanidade, um novo mundo criado à imagem e semelhança de seus planejadores sociais.

          O Fórum Conservador Russo Internacional é apenas uma das diversas investidas do Kremlin para alcançar este objetivo. Sua estratégia é revelada na narrativa conservadora e nacionalista onde se misturam elementos de tradição revolucionária (anti-conservadora, portanto), como fascistas, neo-nazistas e extremistas de direita, cujo ponto em comum não está tanto nos valores, mas no sentimento pró-Rússia e anti-EUA. O desconhecimento da missão deste evento pela grande maioria das pessoas mostra que este não é um plano com consentimento dos povos, muito menos de consentimento divino.

* Traduzido do russo pelo Google Tradutor e adaptado pelo autor.

Um comentário:

  1. Mais autêntico que os conservadores britânicos que defendem casamento gay, isso eu tenho certeza. Isso que nem falei de outras marionetes dos banqueiros que até ontem eram ovacionadas pela direita bananeira apenas por serem do primeiro mundo.

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