segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sanções, OTAN, Olimpíadas e assassinato: ingredientes da piora nas relações entre a Rússia e o Ocidente

(Ocidente e Rússia: pouco amigos.)

As últimas semanas foram marcadas por um aumento da tensão entre a Rússia e o Ocidente. Da OTAN às Olimpíadas, divergências de ordem política, econômica e militar têm colocado russos e ocidentais de lados opostos e piorado a situação internacional de Moscou.

Não pretendo aprofundar os fatos a seguir, mas dar um panorama geral de como os últimos eventos podem afetar a relação da Rússia com o Ocidente e contribuir para a compreensão do clima político que envolve esta relação.

(União Europeia renovou por mais seis meses as sanções econômicas contra a Rússia. Sinal vermelho para o Kremlin.)

Em 15 de junho União Europeia renovou por mais seis meses as sanções econômicas contra a Rússia por sua atuação no conflito na Ucrânia. A medida afeta personalidades da política e da economia e investimentos russos no continente e são válidas até 31 de janeiro de 2017. Nada de novo neste aspecto já que a renovação era esperada. Como resposta, a Rússia anunciou aplicar o princípio de reciprocidade e irá impor sanções à importação de alimentos da Europa. Há uma falta de perspectiva de suspensão das sanções.

(Legisladores no senado de Chipre na capital, Nicósia: país de tradição ortodoxa de históricas relações com a Rússia.)

Em compensação há movimentos dentro de alguns países que questionam a eficácia das sanções e pressionam a União Europeia para suspendê-las. Tais questionamentos partem de grupos eurocéticos e/ou pró-Rússia. Um deles é Chipre. Em 7 de julho seu parlamento pediu o fim das sanções dizendo que elas prejudicavam o comércio entre os dois países, eram contraproducentes, "inaceitáveis" e que os alvos das sanções eram pessoas amigas do país. A Itália também posicionou-se contra a renovação das sanções. A resolução foi adotada em 27 de junho pelo senado à pedido da Liga Norte, partido de estreitas ligações com o Kremlin (a Liga também pediu que o senado reconhecesse oficialmente a Crimeia como território russo, mas esta resolução foi negada). Outros dois partidos pró-Rússia, Cinco Estrelas e Força Itália, também apoiaram a resolução. E há algumas semanas governos regionais italianos têm pedido a suspensão das sanções. Outro país que tomou a mesma medida foi a Grécia, cujo governo de Alexis Tsipras, da coalização esquerdista Syriza, têm se oposto sistematicamente às sanções contra a Rússia. Durante uma visita de Putin ao país no final de maio, Tsipras declarou mais uma vez ser firmemente contra tais sanções. O Syriza governa a Grécia junto com o partido de extrema-direita Gregos Independentes, também pró-Rússia. Membros de ambos partidos possuem estreitas ligações com o Kremlin, como já comentado neste blog.

(Logotipo do encontro da OTAN em Varsóvia com as bandeiras dos países membros.)

Em 8 e 9 de julho foi realizado em Varsóvia, na Polônia, o encontro dos países da OTAN. Os membros divulgaram uma declaração conjunta onde afirmam que a "a comunidade Euro-Atlântica está encarando desafios sem precedentes emanando do sul e do leste", estabelecem acordos entre a organização e a União Europeia para agilizar os preparativos da defesa do continente e melhoram a troca de informações e know how para uma guerra híbrida. As referências ao "sul" e "leste" são, respectivamente, norte da África/Oriente Médio e Rússia, e a menção à "guerra híbrida" é uma resposta à estratégia do Kremlin de penetração na Europa através de campanhas de desinformação, ativismo na internet, atução do serviço secreto e, no caso do extremismo islâmico, o terrorismo. Outro ponto de grande importância foi a aprovação formal do envio de mais tropas da aliança para o Leste Europeu. Um total de quatro mil soldados (mil em cada batalhão) serão alocados na Estônia, Letônia e Lituânia, além do oeste da Polônia, países vizinhos à Rússia. Apesar destas tropas não serem o suficiente para conter uma invasão russa elas são uma clara mensagem ao comportamento de Moscou, que, desde a anexação da Crimeia em 2014 e a infiltração de soldados que deram início a uma guerra na Ucrânia, tem se tornado muito mais provocativo.

(Vladimir Putin com o primeiro-ministro finlandês, Salui Niinisto: o presidente russo foi claro no que pensa sobre uma possível integração da Finlândia à OTAN.)

Uma semana antes da reunião da OTAN, Vladimir Putin esteve na Finlândia onde se encontrou com o primeiro-ministro do país, Salui Niinisto. Tendo em vista as recentes tensões envolvendo a invasão do espaço aéreo dos países na região do Mar Báltico por aviões russos e os exercícios militares da OTAN na Polônia, a Finlândia tem levado em consideração sua entrada na organização. Putin disse apreciar a neutralidade militar finlandesa, mas que sua entrada na OTAN causaria uma resposta da Rússia sugerindo que realocaria suas forças militares junto à fronteira dos dois países. A declaração foi uma mensagem clara da irritação que os recentes movimentos militares da aliança causam no Kremlin, e foi entendida por alguns meios de comunicação ocidentais como uma ameaça. Apesar da Finlândia ser militarmente neutra, com o encontro de Varsóvia o país passou a ter (assim como a Suécia, outro país neutro) uma cadeira permanente para conversações dentro da organização. Caso no futuro os finlandeses passem a integrar o grupo, a Rússia terá mais uma fronteira (desta vez extensa, com 1340 km) com tropas militares adversárias. O movimento de tropas da OTAN junto à Rússia é um fator incômodo e um desafio à Moscou, que vê a necessidade de responder à altura da presença militar ocidental.

(Bicampeã olímpica em Atenas e Pequim, tricampeã mundial e tetracampeã mundial indoor no salto com vara: para Yelena Isinbayeva o banimento dos russos do atletismo é o "funeral" do esporte e "uma evidente ordem política".) 

Nos esportes a Rússia também teve prejuízos. No dia 17 de junho, a Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF, sigla em inglês) baniu os atletas russos do atletismo das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro sob acusação de que muitos deles utilizavam substâncias proibidas para melhorar o desempenho esportivo. Tais usos eram sistemáticos e faziam parte de uma política de dopagem apoiada pelo Estado. Segundo o relatório publicado pela Agência Mundial Anti-Doping (WADA) houve muitas fraudes na coleta para análise: muitas delas foram canceladas ou recusadas, outras foram perdidos e amostras de urina foram trocadas. Neste últimos caso o trabalho teria sido feito pelo serviço secreto russo. O banimento vem na sequência da punição sofrida pelos mesmos atletas em novembro de 2015. Na ocasião ele foram suspensos de todas as competições internacionais devido ao mesmo escândalo. As investigações apontaram que as fraudes nos testes anti-doping haviam sido generalizadas.

O Comitê Olímpico Russo (ROC) e outros 68 atletas tentaram reverter o banimento para os Jogos do Rio, mas até o momento sem sucesso. O Comitê Olímpico Internacional (COI) disse que os atletas russos poderiam competir caso provassem que estavam limpos do uso de substâncias proibidas, e que sua presença nos jogos seria sob bandeira neutra. No dia 25 de julho, outros sete atletas russos, desta vez do nado sincronizado, também foram banidos pela Federação Internacional de Natação (FINA, sigla em francês).

(As Olimpíadas de Moscou, em 1980, teve boicote norte-americano em resposta à invasão soviética do Afeganistão: esporte e política nunca estiveram totalmente separados. Soviéticos responderam boicotando os jogos de Los Angeles quatro anos mais tarde.)

A Federação Atlética de Toda a Rússia (ARAF) e algumas autoridades russas oscilaram entre a defensiva e a acusação. Vladimir Putin e Sergey Lavrov pediram que a questão esportiva não fosse politizada. Porém, Lavrov reclamou com John Kerry a interferência dos EUA no banimento de seus atletas e acusou os americanos de pedirem, através de uma carta enviada ao COI por sua agência anti-doping (USADA), o banimento de toda a delegação russa. O ministro chamou este ato de "demandas provocativas antirrussas". Já Putin suspendeu o vice-ministro dos esportes, Igor Upland, e todos os nomes citados no relatório da WADA, mas defendeu o ministro Vitaly Mutko, aliado político de longa data, e questionou qual seria a razão para que a agência anti-doping dos EUA e demais países pedissem tão apressadamente, com base no relatório da WADA, a suspensão de toda a delegação russa. Por sua parte, Mutko respondeu que a acusação contra ele era "absolutamente irreal e impossível"

As defensivas de Lavrov e Putin sugerem, por um lado, que o escândalo de doping generalizado é real; por outro lado as críticas às organizações anti-doping de outros países sugerem uma motivação política para o banimento dos atletas russos. Real ou não, esta atitude transfere em alguma medida o significado do banimento da esfera esportiva para a política internacional. É mais um ingrediente nas más relações entre russos e ocidentais. Apesar do COI ser uma organização mundial, os organismos internacionais são vistos pelo Kremlin como instrumentos políticos do Ocidente, mais especificamente dos EUA, e o banimento do atletismo russo das Olimpíadas seria mais uma provocação política. O boicote dos americanos às Olimpíadas de 1980 em Moscou em resposta à invasão soviética do Afeganistão (1978-1988) e a resposta soviética de boicote às Olimpíadas de 1984 em Los Angeles mostram que o esporte funciona, também, como instrumento de pressão internacional. Caso se confirme o banimento dos russos para as Olimpíadas do Rio, será a primeira vez que um grande número de atletas (mais de cem) fica de fora da competição desde 1984 por razões de doping ou políticas, e será a terceira vez que uma crise deste tipo envolve os russos.

(Pavel Sheremet e o carro em que estava após a explosão em Kiev, no dia 20 de julho: instabilidade política na Ucrânia.)

Em 20 de julho foi assassinado na Ucrânia o jornalista Pavel Sheremet. Apesar de falecido aos 44 anos, sua carreira foi intensa: nascido na Bielorrússia, era duro crítico do governo de Alexander Lukashenko. Foi preso em 1997 enquanto atravessava a fronteira vindo da Lituânia durante a gravação para uma TV russa sendo acusado de "receber dinheiro de agências estrangeiras" e por "atividade jornalística ilegal". Foi libertado no início de 1998. Em 1999 mudou-se para a Rússia, onde adquiriu cidadania no ano seguinte. Lá também foi um jornalista crítico de Putin, mas sua situação ficou mais difícil quando da anexação da Crimeia em 2014, do qual se tornou forte crítico. Ele acusou abertamente a Rússia de anexar ilegalmente a península e de apoiar os separatistas no leste ucraniano. Neste mesmo ano Sheremet saiu da TV onde trabalhava, ORT, em protesto à atuação do governo russo na mídia, e mudou-se para Kiev. Lá acabou assassinado.

O carro em que estava explodiu no centro da cidade enquanto ia ao trabalho pouco antes das 8 h da manhã. A dona do veículo era sua mulher, Olena Prytula, jornalista e ex-editora do jornal em que ambos trabalhavam, Ukrayinska Pravda. O jornal, fundado em 1990, tem um histórico de oposição ao governo ucraniano. Um de seus fundadores, Georgiy Gongadze, que na época era próximo de Prytula, foi sequestrado e decapitado em 2000 durante o governo de Leonid Kuchma. O caso teve grande repercussão e ajudou a precipitar a "Revolução Laranja" em 2004 que levou ao poder opositor de Kuchma, Viktor Yuschenko. Sheremet era amigo de Boris Nemtsov, um dos principais opositores de Putin na Rússia, e tornou-se mais um dos quase vinte jornalistas assassinados no país desde sua independência em 1991. Uma assessora do Ministério do Interior da Ucrânia afirmou que não poderia ser excluído o possível envolvimento do serviço secreto russo no assassinato. Outra suspeita era de que o alvo era Prytula, já que a bomba fora plantada em seu carro. O trabalho recente de Sheremet versava, também, sobre a corrupção do governo de Poroshenko e a atuação do pró-Ucrânia Batalhão de Azov e liderado pelo extremista Setor de Direita. Poroshenko descreveu o assassinato como "tragédia" e disse que conhecia jornalista pessoalmente.

(O político russo assassinado Boris Nemtsov ao lado de Sheremet ao microfone.) 

Não é possível dizer quem encomendou a morte de Sheremet. Das informações disponíveis é possível levantar hipóteses. E muitas. Desde os batalhões pró-Ucrânia ao serviço secreto da Rússia, de algum membro do governo ucraniano ao governo da Bielorrússia, qualquer um desses grupos ou membros podem ter ligação com o assassinato. Jornalistas e opositores dos governos russo e bielorruso lamentaram a morte de Sheremet e lembraram sua proximidade com Nemtsov destacando o papel que ambos desempenharam ao revelar os esquemas de corrupção dos establishments destes países; outros compararam a morte do jornalista com o assassinato de Alexander Litvinenko pela FSB em Londres em 2006. Ambas as comparações dão a entender que Sheremet foi mais uma vítima dos governos dos países da antiga URSS. Apesar da suspeita do envolvimento russo, duas coisas precisam ser ditas: primeiro que tudo ainda é especulação, e o envolvimento da Rússia é apenas teoria. Segundo que, como anunciaram algumas autoridade ucranianas, o assassinato de Sheremet piora o clima político na Ucrânia e, por consequência, favorece Moscou que considera o governo de Kiev ilegítimo. O Ministério do Exterior russo denunciou estas análises como "russofóbicas".

(Relacionamento cada vez mais difícil.)

A renovação das sanções econômicas da União Europeia contra Moscou, a pressão interna de partidos e políticos aliados dos russos pela suspensão destas sanções, a nova estratégia da OTAN para com a Rússia com a alocação de tropas no leste, o combate na guerra de informações e uma maior aproximação da organização com a Escandinávia apontam para um aumento da tensão entre russos e ocidentais. No caso dos partidos aliados, a pressão dentro do bloco europeu fortalece a necessidade de uma reação à "guerra híbrida" promovida pelo Kremlin que envolve, além da disseminação de propaganda através da mídia, a rede de contatos com extremistas de direita e de esquerda.

Por outro lado a possibilidade (ainda que fortemente especulativa) de que a Rússia tenha alguma relação com o assassinato de Sheremet apenas contribui para o aumento da tensão política na região e uma maior instabilização da Ucrânia. Já o desconforto gerado pelo banimento dos atletas russos das Olimpíadas do Rio desmoraliza as autoridades do país ao expô-las ao mundo como profundamente corruptas e pouco confiáveis. Nos dois últimos casos os precedentes históricos de assassinatos de jornalistas no países da antiga URSS e os episódios de retaliações políticas em eventos esportivos contribuem para ou aumento da desconfiança generalizada em relação à Rússia.

O pedido do ministro russo Sergey Lavrov ao Secretário de Estado americano John Kerry para que o escândalo de doping não se transformasse em mais uma contenda política entre os dois lados é mais um sinal de que a lógica da realpolitik invadiu todos canais de contato entre a Rússia e os países do Ocidente. Cada acontecimento é equacionado dentro do quadro de problemas e discordâncias entre ambos. Todo o cuidado é pouco.



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