(Passeata da União da Juventude Eurasiana)
Guerras, conflitos, manifestações em massa, tudo isso ocorre sempre com algum planejamento por trás ou pelo menos com algum tipo de estímulo ou "empurrão" que desencadeie os efeitos desejados.
Em agosto de 2014, já durante a guerra em andamento na Ucrânia, o professor Anton Shekovtsov publicou em seu blog fotografias comparativas de membros da chamada União da Juventude Eurasiana (Eurasian Youth Union) entre os anos de 2006 e 2014. As fotos tiradas em 2006 mostram cinco membros deste movimento num acampamento de verão para doutrinação e treinamento de quadros ultranacionalistas. Segundo Shekovtsov, esses membros deveriam lutar ativamente contra movimentos democráticos, uma referência às chamadas "Revoluções Coloridas" que ocorreram nos países vizinhos à Rússia em 2004 e 2005. Já as fotos de 2014 mostram, um a um, os mesmos membros da União ocupando postos chave na administração da autoproclamada "República Popular de Donetsk", região dominada por combatentes pró-Rússia que clama autonomia no leste da Ucrânia. Abaixo dois dos exemplos identificados por Shekovtsov.
(Andrei Purgin, líder da organização República de Donetsk no acampamento em 2006, e como primeiro-ministro da "República Popular de Donetsk" em 2014)
(Oksana Shkoda, no acampamento da União em 2006, e como representante do quartel-general da "República Popular de Donetsk" em 2014.)
A União foi fundada em 2005 pelo ideólogo russo Alexander Dugin e o então vice-chefe da administração presidencial Vladimir Surkov. O Programa do Partido da União da Juventude Eurasiana traça diretrizes a serem seguidas por seus membros. Primeiramente aponta os EUA como o grande inimigo a cercar e penetrar na Rússia com a propagação de sua tirania financeira, plutocrática e degeneração moral. Em seguida, o programa proclama a chamada "Grande Limpeza", uma era de combate aos supostos traidores da nação que ocupam postos chaves na mídia, na burocracia, e de combate ao conformismo para a construção da Grande Rússia. Para realizar esta revolução, o programa estabelece a criação de um Exército Eurasiano e busca inflamar o orgulho eurasiano destacando as supostas virtudes dos povos da Eurásia, e promete de honrar os valores herdados de seus antepassados. Por fim, ele promete cumprir seu destino, de realizar a Revolução Eurasiana e estabelecer o Império Eurasiano, cujos membros viveriam as mais altas virtudes de honra e glória, clama pela criação de um país com um povo "alegre" e "impiedoso" e convida os jovens juntarem-se ao "coletivo eurasiano", que é a União da Juventude. Todo o programa do partido está fundamentada no pensamento de Dugin, cujas referências ficam claras na sua linguagem, nos inimigos a serem combatidos (EUA e as elites financeiras do Ocidente) e na promessa de resgatar e proteger as culturas dos povos da Eurásia.
(Vladimir Surkov com Vladimir Putin em 2006)
(Konstantin Malofeev)
Outro membro que também estaria envolvido na crise na Ucrânia é o oligarca Konstantin Malofeev. Ele é acusado por lideranças do Ocidente de financiar os combatente pró-Rússia no país vizinho, e consta na lista de sanções econômica do Canadá e União Europeia. às quais considera "muito estúpidas" e incapazes de atingir seus negócios. Malofeev é presidente da empresa de investimentos Marshall Capital e é descrito na mídia ocidental (o pouco que dele é divulgado) como o "Soros de Putin", numa alusão ao seu apoio financeiro aos projetos do Kremlin, e como o "oligarca de Deus", uma referência ao seu empenho em promover valores cristãos ortodoxos e a restauração da glória do antigo Império Russo. Entre suas ações constam o financiamento ao Congresso Mundial de Famílias, à disseminação de valores tradicionais (i.e. ortodoxos) através de sua Fundação São Basílio, o Grande, à lei contra a propaganda homossexual a menores na Rússia, ao controle da internet e aos rebeldes na Ucrânia.
(Strelkov, Malofeev e Dugin num encontro gravado em vídeo em local não identificado)
A conexão entre Malofeev e o círculo do Kremlin é estreita. Constam na sua lista de contatos o ex-ministro das Comunicações russo Igor Shchegolev, o chefe da estatal Russian Railways Vladimir Yakunin, o provável confessor pessoal de Vladimir Putin e chefe de um dos principais mosteiros da Rússia padre Tikhon, o tecnólogo político, ex-consultor público de Malofeev e ex-primeiro-ministro da autoproclamada "República Popular de Donetsk" Alexander Borodai, o membro do Principal Centro de Inteligência do Estado Maior Geral das Forças Armadas da Rússia e líder dos rebeldes pró-Rússia na Ucrânia Igor Girkin (conhecido como Igor Strelkov) e Alexander Dugin.
A Marshall Capital fornece financiamento a Fundação São Basílio. Nesta empresa, Igor Strelkov teria trabalhado há anos atrás, informação negada pelo oligarca. Strelkov também consta nas sanções econômicas impostas pelos EUA e União Europeia.
Malofeev, Strelkov e Borodai provavelmente formam uma íntima relação. Numa viagem à Ucrânia que teria como objetivo a exposição de relíquias ortodoxas, Malofeev visitou Kiev e teve sua proteção providenciada por Strelkov, que também é amigo de Borodai.
(Igor Girkin - ou Strelkov - líder militar dos combatentes pró-Rússia na Ucrânia)
O oligarca não poupa elogios a Strelkov, a quem chama de "um homem de ideais". Diz ainda que por suas ações na Ucrânia Strelkov seria um "herói de verdade". "Ele tem o espírito de um oficial russo. Como alguém que ama o Império Russo, eu só posso simpatizar com ele." Dugin também verte muitos elogios e exalta a figura de Strelkov, a quem descreve como "o mito russo" apresentando-o como modelo do homem russo "ideal", aquele que encarna a identidade da nação. Ele seria o "portador do arquétipo russo". "Ele somos nós", diz Dugin, o homem certo para combater com ódio o inimigo espiritual, numa alusão aos homens que encarnam o modo de vida do Ocidente. Tanto as declarações de Malofeev quanto às de Dugin dão a entender que ambos têm bom conhecimento de quem é Strelkov, que é abertamente apoiado por ambos.
A rede de relacionamentos que aproximam Dugin, Malofeev, Strelkov e Surkov do conflito na Ucrânia é complexa. O papel destes aponta que o governo russo delega para membros de seu círculo de relacionamento a responsabilidade de agir na Ucrânia, evitando a acusação de que Moscou estaria atuando diretamente no seu território. Este é o estratagema utilizado por Putin para afirmar repetidamente que a Rússia não está intervindo no país vizinho, o que equivale a dizer que uma quadrilha não invadiu uma casa porque delegou a outra quadrilha o assalto num acordo firmado por ambas as partes.
Dada a amplitude da rede russa vinculada ao Kremlin que está agindo na Ucrânia, é altamente improvável que ela tenha sido criada no período entre a derrubada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, em 22 de fevereiro de 2014, e o início da invasão da Crimeia por forças militares russas a partir da cidade portuária de Sevastopol quatro dias depois. Ela não apenas existia antes, a exemplo do acampamento de verão da União da Juventude Eurasiana, como pessoas como Strelkov já atuavam na área militar, atividade sem a qual seria impossível liderar uma milícia armada. Mais importante de tudo, porém, é a ideologia neo-eurasiana que move grupos como a União, o Movimento Eurasiano Internacional e uma série de representantes da política, das Forças Armadas e da mídia. Os ideais de restauração do antigo poder imperial russo, como apoiado abertamente pelos diversos projetos de Konstantin Malofeev, são instrumentos perfeitos para o programa expansionista do movimento eurasi eurasiano. O oligarca vê o conflito na Ucrânia como uma guerra num contexto cultural. A cultura é vista pelo movimento neo-eurasiano de Dugin como um dos fundamentos de formação das civilizações e, daí, de suas forças políticas. Para Malofeev não há diferenças entre russos e ucranianos. Ambos não formam povos distintos, mas um só, ideia também compartilhada pelos eurasianos.
Cabe observar que o povo e o território da Ucrânia são cruciais para a criação da Grande Rússia e do Império Eurasiano idealizado por Dugin, os combatentes na Ucrânia, os oligarcas do Kremlin e posto em prática por Putin. A julgar pelos princípios do Movimento Eurasiano, Moscou não descansará enquanto não realizar seus planos na Ucrânia e, daí, para o resto do mundo. A luta é muito mais profunda do que as sanções econômicas impostas pelo Ocidente a alguns membros do poder russo. Ela perpassa a conquista de corações e mentes e o movimento dos corpos para a batalha campal.