quarta-feira, 15 de julho de 2015

Ucrânia: uma crise planejada?

(Passeata da União da Juventude Eurasiana)

Guerras, conflitos, manifestações em massa, tudo isso ocorre sempre com algum planejamento por trás ou pelo menos com algum tipo de estímulo ou "empurrão" que desencadeie os efeitos desejados.

Em agosto de 2014, já durante a guerra em andamento na Ucrânia, o professor Anton Shekovtsov publicou em seu blog fotografias comparativas de membros da chamada União da Juventude Eurasiana (Eurasian Youth Union) entre os anos de 2006 e 2014. As fotos tiradas em 2006 mostram cinco membros deste movimento num acampamento de verão para doutrinação e treinamento de quadros ultranacionalistas. Segundo Shekovtsov, esses membros deveriam lutar ativamente contra movimentos democráticos, uma referência às chamadas "Revoluções Coloridas" que ocorreram nos países vizinhos à Rússia em 2004 e 2005. Já as fotos de 2014 mostram, um a um, os mesmos membros da União ocupando postos chave na administração da autoproclamada "República Popular de Donetsk", região dominada por combatentes pró-Rússia que clama autonomia no leste da Ucrânia. Abaixo dois dos exemplos identificados por Shekovtsov.

               
(Andrei Purgin, líder da organização República de Donetsk no acampamento em 2006, e como primeiro-ministro da "República Popular de Donetsk" em 2014)

             

(Oksana Shkoda, no acampamento da União em 2006, e como representante do quartel-general da "República Popular de Donetsk" em 2014.)

A União foi fundada em 2005 pelo ideólogo russo Alexander Dugin e o então vice-chefe da administração presidencial Vladimir Surkov. O Programa do Partido da União da Juventude Eurasiana traça diretrizes a serem seguidas por seus membros. Primeiramente aponta os EUA como o grande inimigo a cercar e penetrar na Rússia com a propagação de sua tirania financeira, plutocrática e degeneração moral. Em seguida, o programa proclama a chamada "Grande Limpeza", uma era de combate aos supostos traidores da nação que ocupam postos chaves na mídia, na burocracia, e de combate ao conformismo para a construção da Grande Rússia. Para realizar esta revolução, o programa estabelece a criação de um Exército Eurasiano e busca inflamar o orgulho eurasiano destacando as supostas virtudes dos povos da Eurásia, e promete de honrar os valores herdados de seus antepassados. Por fim, ele promete cumprir seu destino, de realizar a Revolução Eurasiana e estabelecer o Império Eurasiano, cujos membros viveriam as mais altas virtudes de honra e glória, clama pela criação de um país com um povo "alegre" e "impiedoso" e convida os jovens juntarem-se ao "coletivo eurasiano", que é a União da Juventude. Todo o programa do partido está fundamentada no pensamento de Dugin, cujas referências ficam claras na sua linguagem, nos inimigos a serem combatidos (EUA e as elites financeiras do Ocidente) e na promessa de resgatar e proteger as culturas dos povos da Eurásia.

(Vladimir Surkov com Vladimir Putin em 2006)

Os que acompanham este blog provavelmente têm uma ideia geral de quem seja Alexander Dugin, mas talvez desconheçam Vladimir Surkov.  Surkov foi vice-primeiro-ministro russo e assistente do presidente russo em assuntos internacionais, e é considerado um dos arquitetos da Rússia atual. Define a si mesmo como "um dos autores do sistema russo", é apelidado de "tecnólogo político de toda Rus[Russia]" e apresenta-se como firme adversário do Ocidente. Quando vice-chefe da administração, Surkov reunia-se com jornalistas russos e determinava o que deveria e o que não deveria ser dito e aparecer nas televisões do país, e estimulava a mídia a apresentar o Kremlin como um poder estável e confiável. Entre outras atividades, publicou obras literárias que expõem o caráter dúbio da moral pública russa, herança característica do período soviético e do qual Surkov é representante.

(Konstantin Malofeev)

Outro membro que também estaria envolvido na crise na Ucrânia é o oligarca Konstantin Malofeev. Ele é acusado por lideranças do Ocidente de financiar os combatente pró-Rússia no país vizinho, e consta na lista de sanções econômica do Canadá e União Europeia. às quais considera "muito estúpidas" e incapazes de atingir seus negócios. Malofeev é presidente da empresa de investimentos Marshall Capital e é descrito na mídia ocidental (o pouco que dele é divulgado) como o "Soros de Putin", numa alusão ao seu apoio financeiro aos projetos do Kremlin, e como o "oligarca de Deus", uma referência ao seu empenho em promover valores cristãos ortodoxos e a restauração da glória do antigo Império Russo. Entre suas ações constam o financiamento ao Congresso Mundial de Famílias, à disseminação de valores tradicionais (i.e. ortodoxos) através de sua Fundação São Basílio, o Grande, à lei contra a propaganda homossexual a menores na Rússia, ao controle da internet e aos rebeldes na Ucrânia.

(Strelkov, Malofeev e Dugin num encontro gravado em vídeo em local não identificado)

A conexão entre Malofeev e o círculo do Kremlin é estreita. Constam na sua lista de contatos o ex-ministro das Comunicações russo Igor Shchegolev, o chefe da estatal Russian Railways Vladimir Yakunin, o provável confessor pessoal de Vladimir Putin e chefe de um dos principais mosteiros da Rússia padre Tikhon, o tecnólogo político, ex-consultor público de Malofeev e ex-primeiro-ministro da autoproclamada "República Popular de Donetsk" Alexander Borodai, o membro do Principal Centro de Inteligência do Estado Maior Geral das Forças Armadas da Rússia e líder dos rebeldes pró-Rússia na Ucrânia Igor Girkin (conhecido como Igor Strelkov) e Alexander Dugin.

A Marshall Capital fornece financiamento a Fundação São Basílio. Nesta empresa, Igor Strelkov teria trabalhado há anos atrás, informação negada pelo oligarca. Strelkov também consta nas sanções econômicas impostas pelos EUA e União Europeia.

Malofeev, Strelkov e Borodai provavelmente formam uma íntima relação. Numa viagem à Ucrânia que teria como objetivo a exposição de relíquias ortodoxas, Malofeev visitou Kiev e teve sua proteção providenciada por Strelkov, que também é amigo de Borodai.


(Igor Girkin - ou Strelkov - líder militar dos combatentes pró-Rússia na Ucrânia)

O oligarca não poupa elogios a Strelkov, a quem chama de "um homem de ideais". Diz ainda que por suas ações na Ucrânia Strelkov seria um "herói de verdade". "Ele tem o espírito de um oficial russo. Como alguém que ama o Império Russo, eu só posso simpatizar com ele."  Dugin também verte muitos elogios e exalta a figura de Strelkov, a quem descreve  como "o mito russo" apresentando-o como modelo do homem russo "ideal", aquele que encarna a identidade da nação. Ele seria o "portador do arquétipo russo". "Ele somos nós", diz Dugin, o homem certo para combater com ódio o inimigo espiritual, numa alusão aos homens que encarnam o modo de vida do Ocidente. Tanto as declarações de Malofeev quanto às de Dugin dão a entender que ambos têm bom conhecimento de quem é Strelkov, que é abertamente apoiado por ambos.

A rede de relacionamentos que aproximam Dugin, Malofeev, Strelkov e Surkov do conflito na Ucrânia é complexa. O papel destes aponta que o governo russo delega para membros de seu círculo de relacionamento a responsabilidade de agir na Ucrânia, evitando a acusação de que Moscou estaria atuando diretamente no seu território. Este é o estratagema utilizado por Putin para afirmar repetidamente que a Rússia não está intervindo no país vizinho, o que equivale a dizer que uma quadrilha não invadiu uma casa porque delegou a outra quadrilha o assalto num acordo firmado por ambas as partes.

Dada a amplitude da rede russa vinculada ao Kremlin que está agindo na Ucrânia, é altamente improvável que ela tenha sido criada no período entre a derrubada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, em 22 de fevereiro de 2014, e o início da invasão da Crimeia por forças militares russas a partir da cidade portuária de Sevastopol quatro dias depois. Ela não apenas existia antes, a exemplo do acampamento de verão da União da Juventude Eurasiana, como pessoas como Strelkov já atuavam na área militar, atividade sem a qual seria impossível liderar uma milícia armada. Mais importante de tudo, porém, é a ideologia neo-eurasiana que move grupos como a União, o Movimento Eurasiano Internacional e uma série de representantes da política, das Forças Armadas e da mídia. Os ideais de restauração do antigo poder imperial russo, como apoiado abertamente pelos diversos projetos de Konstantin Malofeev, são instrumentos perfeitos para o programa expansionista do movimento eurasi eurasiano. O oligarca vê o conflito na Ucrânia como uma guerra num contexto cultural. A cultura é vista pelo movimento neo-eurasiano de Dugin como um dos fundamentos de formação das civilizações e, daí, de suas forças políticas. Para Malofeev não há diferenças entre russos e ucranianos. Ambos não formam povos distintos, mas um só, ideia também compartilhada pelos eurasianos.

Cabe observar que o povo e o território da Ucrânia são cruciais para a criação da Grande Rússia e do Império Eurasiano idealizado por Dugin, os combatentes na Ucrânia, os oligarcas do Kremlin e posto em prática por Putin. A julgar pelos princípios do Movimento Eurasiano, Moscou não descansará enquanto não realizar seus planos na Ucrânia e, daí, para o resto do mundo. A luta é muito mais profunda do que as sanções econômicas impostas pelo Ocidente a alguns membros do poder russo. Ela perpassa a conquista de corações e mentes e o movimento dos corpos para a batalha campal.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O "não" da Grécia, os BRICS e a vitória do Kremlin


(Os cinco líderes dos BRICS na cúpula em Ufá, Rússia)


Com a vitória do "não" dos gregos às medidas de austeridades pedidas pelos credores europeus no plebiscito realizado domingo passado, dia 5, nem a União Europeia nem a Grécia parecem ter ganhado com o resultado. Os credores não têm sua dívida paga e os gregos continuam endividados. A União Europeia, porém, enfraquece. Quem ganha com isso é o Kremlin.

Alguns movimentos políticos por parte da Rússia, do governo grego e do grupo dos BRICS apontam para esta direção.

Em 11 de maio passado o vice-ministro das Finanças da Rússia, Sergei Storchak, fez um convite por telefone ao primeiro-ministro grego Alexis Tsipras para que a Grécia participasse do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, anunciado no último encontro do grupo em julho de 2014 em Fortaleza. A reação de Tsipras foi de agradável surpresa ao convite, que seria levado em consideração por seu governo, que mostrou-se interessado na proposta. Na ocasião, Storchak também propôs que negócios e viagens de turismo de russos para a Grécia fossem feitos com moeda russa. A intenção, obviamente, seria fortalecer o rublo frente às moedas de outros países.

Em outra ocasião, no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, realizado entre os dias 18 e 20 de junho passados, Tsipras apareceu de surpresa. No seu discurso ele explicou porque estava em São Petersburgo e não em Bruxelas negociando a crise de seu país com os credores europeus.

(Discurso de Alexis Tsipras no Fórum Econômico Internacional, São Petersburgo, Rússia)

"...eu estou aqui exatamente porque eu penso que um país que quer examinar e explorar as possibilidades futuras, deve ter uma política multidimensional e se engajar com países que estão atualmente desempenhando um papel fundamental nos desenvolvimentos econômicos globais."

Em outras palavras, Tsipras afirma diplomaticamente que a Grécia está verificando as possibilidades de conseguir apoio fora da Europa, isto é, nos países emergentes. E dentre os emergentes, o país com o qual a Grécia tem maior proximidade histórica e cultural é a Rússia, a quem chamou de "amigo tradicional".

Além desta declaração, Tsipras destacou o caráter "multipolar" do mundo em ascensão, e afirmou que o "centro de gravidade da economia mundial" já mudou, saindo do Ocidente para os mercados emergentes, e condenou o "reavivamento de uma obsoleta Guerra Fria" como seu "ciclo de retóricas agressivas", militarização e sanções comerciais numa clara condenação à ação ocidental para com a Rússia sobre a crise na Ucrânia.

Num encontro paralelo ao fórum econômico, Putin e Tsipras acordaram a construção de um novo gasoduto para 2016. O acordo foi comentado aqui neste blog em junho. O Turkish Stream, que deve sair da costa sul russa no Mar Negro até a porção europeia da Turquia e, daí, para a Grécia, Albânia e Itália, é um projeto rival do plano ocidental do Southern Corridor, que liga os poços de petróleo e gás do Azerbaijão, no Mar Cáspio, atravessa a Geórgia e a Turquia e liga-se com o gasoduto Nabuco West na Bulgária. Ademais (e talvez mais importante), os governos russo e grego acordaram a divulgação de um memorando sobre planos futuros de negociação para o mês de novembro. A Rússia, porém, não anunciou qualquer ajuda econômica à Grécia.

(Comemoração em Atenas da vitória do "não" no referendo realizado em 5 de julho)
 
Com a crise grega sem solução, o governo organizou um plebiscito para que a população decidisse sobre o apoio ou não às medidas de austeridade propostas pelos credores europeus. O "não" venceu com 61% dos votos. A reação dos líderes europeus foi de respeito ao resultado, e as negociações continuam. Já Vladimir Putin ligou para Tsipras, declarou apoio à decisão do povo grego e pediu que se continuassem os esforços de negociação entre a Grécia e os credores para resolver a crise da dívida. A conversa também tratou de temas referentes aos dois países, como a possibilidade de investimentos russos no país europeu e o já mencionado gasoduto Turkish Stream. Tal conversa é mais um sinal claro de que Moscou pretende puxar Atenas para a sua esfera de influência caso o país saia da zona do euro ou mesmo bloco europeu. Apesar de tanto o apoio de Putin quanto à condenação das sanções contra a Rússia por parte de Tsipras ficarem principalmente na retórica, a aproximação política e os acordos econômicos entre os dois países têm se mostrado preocupante para os líderes da Europa.

Quanto aos BRICS, o encontro do grupo realizado entre anteontem (8/7) e hoje em Ufá, na Rússia, não prometia abordar a questão grega em sua declaração final, ainda que o tema seja discutido durante os encontros, como também não estava em pauta uma ajuda financeira à Grécia. O foco da cúpula são o fortalecimento do grupo, a maior  integração econômica entre seus membros e a criação do Novo Banco de Desenvolvimento. De qualquer forma, quando o tema é Grécia, dentre os membros do BRICS é a Rússia quem levanta a discussão.

Ainda que a possibilidade de entrada da Grécia no NBD fique apenas no discurso, há negociações efetivas para ajudar o país europeu. Além dos negócios e investimentos da Rússia, a China tem negociado diretamente com o governo grego a crise de sua dívida e indicado a possibilidade de investimentos no país. É evidente que o movimento do governo de Pequim está em acordo com Moscou, já que ambos participam não só dos BRICS como da Organização para Cooperação de Shanghai, criada em 2001 com o objetivo de integrar econômica e militarmente China, Rússia e países da Ásia Central. Ambos países têm interesse não apenas na questão da segurança na Ásia, mas também que a crise da Grécia não venha afetar de forma ainda mais séria a Europa e, por consequência, piorar a situação da economia russa, cujas previsões são de retração do seu PIB para 2015 está na ordem de 3%.

Ainda que a possibilidade da Grécia de se juntar ao NBD dos BRICS seja alvo de uma crítica irônica do economista criador da sigla de dá nome ao grupo, John O´Neill, não pode ser descartada uma ajuda econômica ao país, e muito menos a possibilidade de grandes investimentos vindos de fora da União Europeia. Isso explica em parte as persistentes críticas do governo grego às sanções ocidentais à Rússia devido à crise na Ucrânia. O´Neill tem razão quando diz que a Grécia não cumpre os requisitos para participar de um banco para países emergentes. A Grécia não é emergente, e não tem qualquer condição econômica de contribuir com um banco cujo financiamento anual por parte de seus fundadores será de U$ 10 bilhões. O interesse da participação grega no banco parte principalmente da Rússia, mas o economista questiona o que os demais membros do BRICS teriam a ganhar com integração de um membro estranho à formação original do grupo. Apesar de todas essas questões, a tendência é de que uma possível participação da Grécia no novo banco ainda seja discutida.

Além do interesse econômico por parte dos BRICS de evitar que a crise na Europa se agrave, a Rússia, como já comentei neste blog (aqui e aqui), também não quer ver sua estratégia de liderança na Eurásia ser atingida com a perda de um acesso à política interna da União Europeia através da Grécia (temos que lembrar que o Syriza, coalizão de extrema-esquerda que governa a Grécia, é aliado político e estratégico do Kremlin). Apesar de Atenas ter feito pouco para frear as sanções do bloco contra Moscou, ela continua integrada e participativa nas suas decisões. Ao mesmo tempo, a Grécia se aproxima de instituições alternativas ao modelo europeu, podendo jogar, nas palavras de Tsipras, através de uma política "multivetorial". Por fim, a União Europeia se vê enfraquecida de forma direta não apenas pela crise grega, mas pela postergação de sua solução e pela a aproximação da Grécia com parceiros fora da Europa, e de forma relativa pelo fortalecimento do BRICS que, capitaneados pela Rússia e a China, poderá ser usado como mecanismo de sedução e caminho alternativo aos países que rejeitem os projetos ocidentais.

A diplomacia silenciosa da China, sua distância da Europa e, claro, o foco do tema deste blog não permite afirmar o quanto a questão grega significa para Pequim. Mas uma coisa é evidente: nem a Grécia e muito menos a Europa saem ganhando com o desenrolar dos últimos acontecimentos. Quem ganha é o Kremlin, que busca enfraquecer o bloco europeu utilizando os mecanismos de competição do BRICS, as negociações diretas com Atenas e tentativa de cooptar aliados através de negociações secretas com lideranças que são ao mesmo tempo críticas à forma atual da União Europeia e simpáticas à Moscou.

Assim como a Ucrânia, a Grécia é pivô de uma luta entre Ocidente e Rússia, não pela via militar, mas pela via econômica e política. Assim fica claro porque, apesar da dívida, Bruxelas não desiste de negociar com Atenas. Os europeus correm o risco de ficar não apenas sem o dinheiro da dívida, mas também sem um país aliado dentro do seu próprio continente.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

A nova ordem mundial russa e seus parceiros

                           (Marine Le Pen, líder da Frente Nacional da França, e Vladimir Putin)

No breve artigo Russia´s Bedfellowing Policy and the European Far Right, publicado no Russian Analytical Digest (nº 167 de 06 de maio de 2015), a professora de Relações Internacionais da Universidade Georgetown Marlene Laruelle analisa a estratégia geral do governo da Rússia no aliciamento de "parceiros" dentro da Europa.

No segundo mandato de Vladimir Putin (2004-2008) o governo russo, aproveitando o boom econômico que o país vivia com os elevados ganhos no comércio de gás e petróleo, investiu pesado na promoção de sua globalização. Grande parte da herança da vasta rede de contatos do período soviético que existia ao redor do mundo, como os partidos comunistas, havia se retraído com o fim do regime e a subsequente crise econômica dos anos 90 do século XX. Com a volta da prosperidade econômica, o governo passou a investir em canais de televisão, rádio, grupos internacionais de discussões acadêmicas e fundações de promoção de "valores russos" com a finalidade de formar uma ordem mundial alternativa à ocidental tendo como referência a Rússia.

Hoje o país busca novos parceiros no exterior, principalmente na Europa, para estender os braços de sua nova ordem. Como diz Laruelle:

"Essa política de 'parceria' tem sido construída sobre uma agenda ideológica que leva algum tempo para se desenvolver. Ela pode ser brevemente definida a seguir: a Rússia denuncia a hipocrisia e os duplos padrões da ordem mundial ocidental, que pretende que os países ocidentais, especialmente os Estados Unidos, promovam uma agenda idealista de promoção da democracia, direitos humanos, e o direito de intervir em questões humanitárias. Entretanto, a política externa de Washington, insiste a Rússia, é de fato baseada em interesses puramente realistas e estratégicos: ela busca preservar a supremacia de suas capacidades militar, financeira e industrial, para manter seus aliados - Europa, Japão, Israel - numa situação de dependência de segurança, e para garantir que não haja qualquer competição que surja de países ou blocos regionais." (Tradução livre.)

(Encontro dos BRICS em Fortaleza, Brasil, em julho de 2014.)

A Rússia, continua Laruelle, afirma que todo a atual ordem mundial busca favorecer os EUA legal e financeiramente, além de garantir aos americanos o domínio das informações através do sediamento de servidores da internet. "Por outro lado", diz a professora, "a Rússia busca denunciar essa forma de realpolitik, e estabelecer alternativas ao domínio global americano", como os BRICS, a Organização para a Cooperação de Shanghai, posições assertivas junto à ONU, a confrontação à OTAN, o apoio a regimes opositores do Ocidente (como Síria e Coréia do Norte) e políticas que desafiem a supremacia americana na indústria aeroespacial e de informação. Isso tudo, claro, serve aos próprio objetivos estratégicos da Rússia, a exemplo de sua busca de uma parceria estratégica com a China.

(Membros, observadores e parceiros da Organização Cooperação de Shanghai.)

A criação de mídias russas, como a Russian Today e a Sputnik, colocadas aqui neste blog, são exemplos explícitos dessa empreitada. Da mesma forma o patrocínio das grandes fortunas dos oligarcas russos íntimos do governo a eventos como o Congresso Mundial das Famílias mostram que uma intricada teia de relacionamentos entre políticos, multibilionários, intelectuais e organizações acadêmicas, políticas e sociais estão criando uma rede centrada no Kremlin e promovendo uma agenda ideológica ao nível internacional. Toda essa estrutura visa, em última instância, combater e substituir, segundo a linguagem eurasiana, a "unipolaridade" do poder global norte-americano pela "multiporalidade" liderada pela Rússia.


(Canal de televisão da Russia Today - RT. O sugestivo título da notícia faz referência ao Grupo Bilderberg, composto por bilionários e líderes políticos ocidentais.)

Interessante notar que a aliança que o governo de Moscou busca com a extrema-direita e fascistas na Europa, como também com a extrema-esquerda, baseia-se numa postura crítica que tanto os líderes russos quanto tais grupos europeus têm a respeito do papel dos EUA no mundo, da atual organização da União Europeia, da democracia ocidental e do liberalismo nos valores morais (com exceção da extrema-esquerda neste último ponto). A extrema-direita, porém, não constitui um bloco monolítico pró-Rússia, sendo alguns deles anti-russos, especialmente os grupos nacionalistas de países que já estiveram sob o domínio de Moscou nos tempos soviéticos, como os da Europa Oriental e Ucrânia. Dessa forma, a Rússia consegue aliança com extremistas que estão fora do mainstream da política europeia e busca, através de contatos, reuniões e grupos de discussão, traze-los para o centro do cenário político com a finalidade de torna-los palatáveis às democracias ocidentais. Ao mesmo tempo, enquanto o governo russo tem se esforçado para, de um lado, promover grupos fascistas na Europa e, do outro ele combate grupos de mesma linha ideológica na Ucrânia. Como diz Laruelle:

"O Kremlin está, portanto, desempenhando uma ação de difícil equilíbrio. Ele denuncia o papel do ultranacionalismo na revolução Euro-Maidan e a influência de grupos neofascistas na Ucrânia, enquanto que partidos com ideologia similar, mas pró-Rússia, são apresentados como autênticos representantes dos valores conservadores europeus." (Tradução livre.)

Podemos concluir do comentário da autora que, se para os EUA valem o princípio de dois pesos, duas medidas na hora de aplicar sua política de interesses estratégicos, exatamente o mesmo vale para a Rússia na sua estratégia de influenciar a política europeia e, numa dimensão mais ampla, a política global. Apesar do jogo russo ter como principal arena a Europa, sua pretensão não é meramente regional. A eurásia é o seu trampolim para o mundo.