quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sonhos messiânicos: a conquista da Eurásia, do espaço e do Ártico



A Rússia é o maior país do mundo em extensão territorial e inclui, além dos russos étnicos, muitas dezenas de etnias organizadas em uma grande federação, ao menos oficialmente.

A vastidão geográfica da Rússia é objeto de muitos estudos e reflexões dos intelectuais de seu país. Desde o século XIX, foram desenvolvidas algumas correntes de ideias que relacionam a geografia da Rússia e o seu destino enquanto povo. Marlene Laruelle, professora e pesquisadora do Instituto para Estudos Europeus, Russo e Euroasiáticos da Universidade George Washington, nos EUA, publicou em 2012 um artigo que trata das chamadas metanarrativas, discursos que anunciam a predestinação do povo russo à conquista territorial e à realização de um ideal futuro.

Esses discursos permeiam atualmente a cultura russa e expressam o senso messiânico de sua elite intelectual. No artigo de Laruelle, as metanarrativas destacadas baseiam-se na expansão geográfica da Rússia em três vetores distintos: para a Eurásia, para o espaço e para o Ártico. São vetores de expansão para além de suas fronteiras atuais em direção aos povos vizinhos, ao alto e ao norte. São os chamados eurasianismo, cosmismo e articismo.

Os três discursos se difundiram de forma discreta durante o período soviético e ganharam forte impulso no período pós-comunista, quando se multiplicaram estudos que passaram a explicar as questões políticas não mais pela ótica do materialismo marxista, mas pela cultura e a civilização. Esses conceitos trouxeram à tona novas análises sobre a relação dos povos da Eurásia com sua geografia local. Seria a relação entre o povo e seu meio físico causa de sua cultura única. Além do livro O Choque de Civilizações, do americano Samuel Huntington, que foi grande sucesso de vendas na Rússia, duas obras do cientista político Alexander Panarin, The Revenge of History e The Ortodox Civilization in Globalized World se tornaram referência no estudo da cultura/civilização. A perspectiva civilizacional afirma que as diferenças entre os povos são, em última instância, culturais, e que suas culturas são incompatíveis umas com as outras. Os conflitos, portanto, têm raíz cultural, e não política ou econômica. Da mesma forma os modelos políticos e econômicos não poderiam ser implantados de forma unívoca em culturas diferentes.



Na metanarrativa eurasiana, cabe à Rússia rejeitar o modelo ocidental e criar o seu meio de desenvolvimento através da integração dos territórios vizinhos "destinados" a pertencer à esfera russa. O modelo russo seria "imperial", de ênfase aos direitos coletivos (das nações), ao passo que o modelo ocidental é "republicano", baseado nos direitos individuais. O eurasianismo ganha um discurso mais agressivo com Alexander Dugin, que remodela os fundamentos do eurasianismo clássico dos russos emigrados da década de 1920. Sua afirmativa é de que não é a geografia, mas  a geopolítica que determina o papel da Rússia no mundo. Utilizando os clássicos da geopolítica europeia, correntes nazifascistas, estudos das religiões e ocultismo, Dugin afirma que a Rússia é o "centro" do mundo, o núcleo civilizacional das potências terrestres (terulocracias) em oposição às potências marítimas (talassocracias), cuja disputa remonta à Antiguidade. A missão da Rússia seria vencer as potências marítimas, comandadas pelos EUA, e assumir a liderança do mundo a partir da Eurásia.



Na metanarrativa cósmica, o futuro da Rússia estaria não na Terra, mas na conquista do espaço. O cosmismo combina predestinação com tecnologia e imortalidade. Ao invés da ascensão do homem para o Céu, onde há vida eterna, é na ascensão e na conquista do espaço físico que o ser humano, através do apoio tecnológico e em novas condições de vida, teria capacidade de se livrar do sofrimento e alcançar a imortalidade. Segundo alguns de seus ideólogos, os russos são um povo profundamente espiritual e tendem à verticalidade, na busca de Deus, às coisas Alto, em contraste com os ocidentais, muito materialistas e com tendência à horizontalidade. O cosmismo se caracteriza, portanto, por uma projeção de missão religiosa dos russos no mundo imanente. Essa mentalidade permeou os meios científicos soviéticos que buscaram realizar a utopia da conquista espacial e ao mesmo tempo vencer os EUA nessa corrida. Atualmente, o cosmismo é presença marcante no imaginário social do povo russo, como nas obras da literatura.



Na metanarrativa articista cabe à Rússia a conquista do Ártico. Tal perspectiva é comum entre os nacionalistas russos, que herdaram a concepção de Ártico Vermelho dos tempos soviéticos, e que marcou profundamente a cultura popular. O sonho messiânico é conquistar um região hostil, utilizando recursos e meios que só os russos seriam capaz de mobilizar. Os nacionalistas consideram o domínio da região ártica como necessária para reestabelecer a grandeza da Rússia e compensar a perda territorial do sul com o fim da URSS. Outro fundamento para o articismo está no ocultismo e no racialismo. Dugin, por exemplo, afirma que o povo russo é o descendente mais puro dos arianos e atualmente estariam formando uma nova civilização cujo destino é o domínio do Ártico. A disseminação do arianismo e do neo-paganismo contribuem para reforçar a marcha para o norte já que consideram os eslavos e sua antiga cultura pagã descendente dos arianos. Após o fim da URSS, a historiografia russa, a educação e o imaginário popular foram inundados pela concepção racial e neo-pagã da história antiga, e seu conteúdo têm sido utilizado por movimentos nacionalistas de corte racial e xenófobo para fazer oposição à presença dos "povos de cor" na Rússia, como os habitantes do Cáucaso e os chineses.

Por fim, é importante frisar que as três metanarrativas aqui descritas estão relacionadas à modernidade, mais especificamente ao avanço técnico: à integração econômica no eurasianismo, ao avanço aero-espacial no cosmismo e a utilização de recursos naturais no articismo. Laurelle não menciona explicitamente, mas convém notar que os três movimentos buscaram se concretizar na antiga URSS. Os comunistas realizaram, ao mesmo tempo, a expansão territorial pelo planeta, a conquista do espaço e a exploração do Ártico. Se o messianismo comunista falhou nos seus objetivos finais e na realização plena de uma "sociedade ideal", a Rússia parece que continua impreganada e determinada a fazer valer a missão que diz pertencer a ela. Agora é o eurasianismo que busca afirmar-se, mas numa Rússia em crise econômica e cada vez mais hostil ao restante do mundo.

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